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Capítulo Inicial

O náufrago

Capítulo 1

“Os sonhos têm o poder que mostra o caminho que

devemos seguir.” (Sibupá Xavante)


Oceano Atlântico, 5 de janeiro de 1520.


Sebástian


A tempestade avançava medonha sobre nós. Pelo convés encharcado, os gritos dos marinheiros ecoavam e se perdiam na imensidão da noite repleta de raios e trovões e no barulho ensurdecedor do mar agitado.

— Amarras! Ajustar o quadrante! Virar a bombordo!

Ordens urradas ao léu.

Nossa nau seguia na direção do sul, desbravando o oceano atrás de uma nova rota para a Ilha das Especiarias, as Índias Orientais. Fazia três meses que havíamos deixado a Espanha, sob o comando de Fernão de Magalhães. A frota consistia em cinco navios que agora enfrentavam a fúria marítima.

Eu estava a bordo da nau Santiago, do capitão Juan Serran. Fui voluntário para essa travessia sem garantia alguma de sucesso. Com vinte e três anos de idade, o que me esperava em terra era o trabalho árduo e pouco remunerado das docas do porto de Sanlúcar de Barrameda. Preferi o mar. Não tinha, todavia, qualquer experiência nele. Minha sorte é que o comandante Magalhães aceitava qualquer indivíduo disposto a dar o seu pescoço pela aventura. Novamente: sem garantia alguma, nem mesmo a de retornar vivo às terras de Sua Majestade El Rey da Espanha.

Eu falei sorte? Devia ter dito azar, mas sou supersticioso.

O navio sacudia de um lado para o outro. Às vezes, subia ondas mais altas do que qualquer construção que eu tenha visto. Nem o castelo do rei é maior do que as vagas contra as quais lutávamos. Bravamente, devo acrescentar.

— Sebástian! — Ouvi meu nome entre o pandemônio a bordo. — As amarras!

Procurei pelos cordames que prendiam parte da carga. Caixotes com sabe Deus o quê! Uma onda quebrou contra o casco, inundando o convés superior e os gritos de homem ao mar se fizeram ouvir pela primeira vez.

— Rochedos a estibordo! Rochedos a estibordo!

Olhei naquela direção sem enxergar nada além da espuma branca das ondas iluminadas por um raio.

— Terra a estibordo, capitão!

— Manter o curso a bombordo. Reduzir para cinco nós!

Reforcei a amarração das caixas como pude, lembrando de algumas semanas atrás, quando a situação era outra e muito mais prazerosa. No começo de dezembro, aportamos em uma praia que se assemelhava ao paraíso. Areia branca, calor, água fresca, morros a perder de vista, boa comida e mulheres. Os marujos mais experientes disseram que eram terras do rei de Portugal. Terra Brasilis, foi como chamaram. Inclusive, um lugar de onde deveríamos passar ao largo. Mas precisávamos de água e comida fresca, e os nativos foram amistosos e nos convidaram a terra.

Recepcionaram-nos como aos deuses e nos ofereceram o que havia de melhor em troca de algumas quinquilharias que o comandante Fernão ofereceu. Foi uma verdadeira farra! O que lembro é de passar dez dias bebendo e enroscado em uma nativa, sem nada mais a me cobrir, apenas os cabelos longos e pretos dela.

Com certeza, um destino melhor do que esse que me aguardava, molhado como um pinto que caiu no rio e rezando alto para que Deus não me levasse ao fundo daquelas águas turbulentas, encerrando cedo o meu caminhar sobre a terra.

— Manter a velocidade!

— Segurem-se!

O navio empinou e rangeu, ainda mais alto do que o som do mar e da chuva. O mastro da proa apontou para o céu em um ângulo que eu não tinha presenciado ainda. Homens escorregaram pelo convés, caixas se soltaram das amarras, a água escorreu pelos meus pés. Abracei um dos mastros, aumentando a minha reza na mesma proporção que os sons ao meu redor.

Após a subida vertiginosa, a nau estabilizou sobre a onda, por um instante longo e curto, ao mesmo tempo. Em seguida, iniciou sua descida, o mastro apontando para o fundo do oceano.

— Vamos morrer! — gritou alguém perto de mim.

O baque da nau contra a água arremessou alguns homens ao mar. A onda que se seguiu invadiu o convés, arrastando consigo algumas almas. Eu fui uma delas. Meus braços não foram fortes o suficiente para me prender ao mastro quando bati a cabeça na madeira. A tontura me fez afrouxar os músculos e a água me levou.

Debati-me contra a correnteza, engolindo água. Felizmente, eu sei nadar. Minha testa ardia, imaginei que haveria um corte ali. Perto de mim soavam gritos e o navio era uma imensa silhueta escura entre as ondas revoltas. Tentei nadar de volta a bordo, mas o mar se mostrou mais forte do que os meus braços. O vento afastava a nau e fazia crescer as ondas, muitas arrebentaram sobre a minha cabeça.

Minha sorte no infortúnio foi trombar contra um barril. Ele me acertou nas costas, mas também sustentou o meu corpo. Abracei-me a ele, sem esperança de sobreviver, mas também esperando que viessem procurar por mim, assim que a tempestade amainasse.

Foram horas, tenho certeza. A correnteza me arrastou para longe da nau por toda a noite. Eu tinha vomitado um bocado de água e meus olhos ardiam. Senti frio, lá pelas tantas, e meu corpo tremia. Gritei, algumas vezes, em busca de algum outro sobrevivente. Apenas o oceano me respondeu, de mau humor. Nova onda quebrou sobre a minha cabeça, me fazendo perder o barril. Juntei o que restou das minhas forças para nadar até alcançar uma tábua e me escorar nela. Com imensa dificuldade e após várias tentativas, consegui deitar sobre a madeira e aguardar a minha sina.

Rezei um Padre Nuestro antes de adormecer ou, talvez, morrer.


***


Minha primeira sensação foi a de que não morri. Havia o som do mar, o grito de gaivotas, o frio, a umidade e a areia sólida sob o meu corpo. Algo, porém, fazia cócegas no meu rosto. Meu primeiro impulso foi o de afastar com a mão o que pensei ser um bicho se esmiuçando pela minha barba. Mas assim que abri os olhos, notei o meu engano.

Um rosto feminino e ovalado estava sobre mim. O cabelo muito preto e liso caía ao redor da cabeça e os olhos pequenos e amendoados pareceram assustados com o meu gesto. Meu braço erguido a fez recuar e a jovem sentou sobre os calcanhares, protegendo-se de mim com a machadinha em riste.

Abri as duas mãos e mostrei as palmas. Ergui o tronco, sentando. Minha fronte latejou e fechei os olhos com a força da vertigem que me acometeu. Levei os dedos à testa e senti que havia um corte profundo. A jovem segurou o meu pulso e forçou que eu baixasse o braço, fazendo um sinal negativo com a cabeça.

— Any — ela disse. Não. Ouvi essa palavra algumas vezes da Tainá, a nativa com quem passei os melhores dias da minha vida recente.

Observei melhor a moça. Ao seu lado, havia um cesto trançado. Usava uma vestimenta semelhante a um saco de tecido ordinário, de algodão cru, tingido em algumas partes com faixas de tom vermelho, e acinturado por um cordão largo e colorido. Sobre o peito caíam os fios de seu cabelo solto e vários colares feitos de sementes. Entre os fios, notei uma pena vermelha, usada como brinco. Suas coxas estavam expostas, visto que o tecido terminava logo no início delas. Algumas pinturas delicadas decoravam seus braços nus e o rosto. E ela era encantadora. Muito mais bonita do que a outra nativa que me distraiu na Guanabara.

O que mais se comentava, sobre o Novo Mundo, eram as suas riquezas inimagináveis e seus habitantes, que viviam como se ali fosse o Éden e não houvesse pecado naquelas novas terras. Agiam como selvagens, andavam nus e sem nenhuma malícia. Ao perceber a falta de trajes adequados da moça à minha frente, tive certeza de estar diante de uma índia.

Para evitar que meus olhos se fixassem nas belas e torneadas pernas, observei o entorno. O mar ainda estava agitado, o dia nublado. Pela areia havia alguns destroços da nossa embarcação, o que me fez temer por seu naufrágio.

A praia onde vim dar era cercada por dois morros e o maior deles avançava para dentro do mar, limitando o horizonte à esquerda. Um morro menor e de cume arredondado bloqueava a minha visão pelo lado direito. E, ao lado deste, um curioso amontoado de pedras lembrava um vigilante atento ao mar. O resto da paisagem se resumia a dunas de areia e alguma vegetação baixa, logo atrás de mim.

A nativa desistiu da machadinha, soltando-a sobre a areia úmida, ao lado do cesto. Seu olhar inteligente se voltou para o meu rosto. Ela trouxe a mão até a minha barba e investiu os dedos ali, apertando e puxando os fios. Tainá tinha feito o mesmo. Pelos pareciam encantar e espantar os nativos. Em seguida, notou os meus olhos. O polegar e o indicador se uniram e se afastaram, erguendo a minha pálpebra, para que pudesse observar melhor. Os dela se arregalaram e um som de espanto lhe escapou. Ao contrário do tom marrom de sua íris, as minhas são verdes e desconfiei que este fosse o motivo de sua admiração.

A moça falou, mas não consegui entender coisa alguma, além do tom de interrogação. Ela seguiu o escrutínio do meu corpo, desta vez atentando às minhas vestimentas, até chegar nas botas. Apertou o cano e o peito, com a testa franzida pela incompreensão. Ergueu o meu pé, procurando por algo.

Cutuquei-lhe o braço, pedindo que parasse. Ela soltou a minha perna e eu me desfiz do calçado e da meia encharcada e com um péssimo cheiro, o que fez a nativa se afastar um pouco, cobrindo o nariz. Escorri a água que acumulou na bota e aproveitei para tirar a outra. Meu pé assemelhava-se ao de um morto, esbranquiçado, pegajoso e meio murcho, após passar horas imerso e semanas sem ar.

A moça voltou a falar e outra vez percebi que era uma pergunta. Sem resposta alguma da minha parte, ela apontou para os morros de areia atrás de mim. Pensei que houvesse mais alguém ali, mas não. Levei minha mão ao peito e falei uma das frases que Tainá me ensinou.

Che ha’e Sebástian Diaz. — Eu sou Sebástian Diaz.

Ela sorriu e foi como se o dia nublado e ventoso esquentasse subitamente.

— Che ha’e Aiyra.

— Aiyra — repeti o nome, testando a pronúncia.

Hee! Aiyra… — Ela seguiu falando, animada.

Toquei seu braço, sinalizando que parasse de falar. Aiyra seguiu o meu movimento, abaixando os olhos para a minha mão em seu pulso.

— Che Sebástian. — Insisti.

— Xê-ba-tiam? — Ela tentou.

Sebasstian. — Corrigi lentamente, reforçando a pronúncia correta.

— Xebatiam.

Any. — Neguei. — Sebástian.

Ela moveu as duas mãos, negando. Suspirou pesadamente, movendo os ombros e olhando a paisagem, pensativa. De súbito, pareceu se animar e seu belo rosto iluminou com a provável ideia que teve.

Yguasú Kuimba’e.

— Não entendo o que você fala.

Nde Yguasú Kuimba’e.

Aiyra voltou à fala confusa para mim. Apontava para a água, depois na minha direção. Em determinado momento, entendi que yguasú significava mar. Ela estava se referindo a mim como algo do mar.

Incapaz de explicar a minha origem, atentei a outro fato importante. Meu estômago doía, vazio.

Hi'upyrã. — Pedi, gesticulando diante da boca e com a mão direita sobre o estômago. Comida foi outra boa palavra que aprendi.

Aiyra admirou-se e se pôs de pé. Foi impossível não acompanhar o seu movimento ágil e gracioso, seguindo com o olhar o corpo feminino que se erguia quase desnudo diante do meu. Ela bateu as mãos, tirando a areia, depois pendurou o cesto no ombro, atravessando a corda pelo tronco e guardando ali a machadinha. Gesticulou, falando. Queria que eu me levantasse, que a seguisse.

Só o que conseguiu de mim foi um sorriso bobo e o pulsar forte do meu coração, encantado por toda a graça que via nela.




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