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Capítulos Iniciais

O Farrapo – Volume II

PARTE III

CAPÍTULO I

Pelotas, abril de 1827.

Edward Gracie caminhava sorridente pelo escritório de sua charqueada, com uma carta nas mãos. Finalmente recebia a resposta positiva do estancieiro com quem negociava o casamento do filho. Seria uma garantia e tanto, já que o homem era seu fornecedor de gado, e o charqueador esperava estreitar laços com ele e ganhar algum privilégio com aquele enlace. Além disso, não era fácil encontrar boas moças, de família honrada. Mulheres eram escassas naquela província, e não se contentaria com pouco para o único filho. Satisfeito, foi até a sala procurar a esposa e comunicar-lhe a novidade.

– Manuel respondeu, com sua aprovação. Temos uma noiva para Samuel.

– Até que enfim – Ana Maria não comemorou, apenas reagiu.

– Vou responder marcando o casamento para daqui a dois meses.

– Ele já sabe?

– Não, mas duvido que se oponha.

– Vou ser sincera, eu preferia que ele mesmo escolhesse a noiva, Ed.

– As opções de moças de Pelotas não interessaram o guri, o que esperavas que eu fizesse?

– Que tivesses paciência, uma hora acabaria se decidindo.

– Fiz um bom negócio e não me arrependo. Uma guria de boa família, com bom nome, vai servir. O importante é que lhe dê filhos.

Ana Maria apenas sacudiu a cabeça, pois debater com o marido era como chutar uma pedra, ineficaz e doloroso. E em um ponto Edward tinha razão, já era hora de Samuel casar e começar a própria família. Serviu o chimarrão ao esposo e alcançou-lhe a cuia, no instante em que o filho entrava na sala atrás do pai.

– Despachamos o último iate – informou.

– Safra encerrada, oficialmente.

– Foi razoável – Samuel sentou diante do pai, aguardando sua vez na roda do chimarrão.

– Nem todos os anos são excelentes. Mas tenho boas notícias, estás noivo.

– Noivo? – Samuel olhou espantado para o pai.

– O Manuel me escreveu, aceitando o pedido. Vou marcar o casamento para daqui a dois meses, chega de protelar esse assunto.

– E como é a moça? – Ana Maria perguntou, observando o rosto fechado do filho com a notícia.

– O pai dela disse que é saudável, discreta, que sabe ler e escrever o necessário, e que é muito obediente.

– Já é algo – a mãe continuava esperando alguma reação, mas o filho permanecia calado e pensativo. – O que me dizes, Samuel?

– Parece bom – tirou os olhos do chão ao ouvir seu nome.

– Além do mais, nos garante o fornecimento de gado com alguma vantagem – Edward enfatizou.

– Que seja – Samuel levantou. – Mas eu mesmo vou responder essa carta.

– Até que enfim tomas uma atitude, estavas mais parecendo a noiva – Edward reclamou. – Como se fosses tu a perder o cabaço!

– Edward! – Ana Maria chamou a atenção do marido pelos modos grosseiros.

Samuel virou as costas e saiu da sala para não se indispor com o pai. Foi para o escritório responder a carta de seu noivado e determinar a data. Sentou-se à mesa e esfregou o rosto, pensando no que dizer. Por fim, pegou a pena e deixou que as palavras surgissem.

********

O mês de junho chegou gelado, chuvoso e com uma agitação fora do normal na Charqueada Santa Margarida. Os preparativos para o casamento de Samuel corriam céleres. Doces e cardápios especiais eram providenciados, e Ana Maria dava ordens enérgicas às escravas para que tudo estivesse perfeito.

O quarto de Samuel fora redecorado para que a noiva se sentisse mais à vontade. A cama de solteiro tinha sido trocada por uma mais larga, e cortinas de tom verde-claro substituíram as azul-escuras. O novo colchão ainda não estava amaciado, mas os travesseiros de pena de ganso eram como uma nuvem. O aspecto espartano do aposento se transformara com vasos de flores, castiçais decorados e porcelanas delicadas e românticas. Samuel mal reconhecia o local, cada vez mais feminino.

A princípio, não ficara entusiasmado com o casamento, mas à medida que o dia se aproximava, começou a ficar nervoso, pensando em como seria a noiva, para além dos aspectos de personalidade de que já ouvira falar. Crescera observando o relacionamento dos pais, alternado por momentos de entendimento e cumplicidade e por períodos de puro enfrentamento. Sabia que Edward e Ana Maria haviam se conhecido jovens, que o pai se encantara ao vê-la pela primeira vez, e sempre imaginara que sentiria algo semelhante ao conhecer a mulher com quem gostaria de passar sua vida. Mas, até então, isso não acontecera. E agora não fazia diferença, pois a noiva estava a caminho e ele só desejava que algum sentimento despertasse em seu coração ao vê-la.

O movimento e o som de patas de cavalos e arreios chamou sua atenção, naquela manhã, enquanto retornava, entre os varais vazios de charque, da olaria. Olhou na direção da casa e respirou fundo. Pelo que percebia, Manuel Maciel e sua família chegavam. Era hora de conhecer a noiva. Estufou o peito e caminhou rápido na direção da carroça e dos cavalos que acabavam de parar diante do caramanchão, à entrada da casa.

Justo apressou-se, também, para recepcionar os recém-chegados, que estavam molhados até a alma pela chuva fina e insistente que caíra ao longo de toda a viagem. Uma única sombrinha erguia-se sobre eles e, debaixo dela, Samuel percebeu o tecido azul-claro de um vestido, coberto por uma grossa capa de lã. O coração saltou no peito, nervoso.

Chegou até eles ao mesmo tempo em que o pai. Edward cumprimentou Manuel com entusiasmo e apresentou o filho:

– Muito gosto – Manuel estendeu a mão para Samuel. – Meu filho Paulo – apresentou também o jovem que estava com ele.

Todos deram as mãos, em cumprimento, e Samuel evitava olhar na direção da carroça para não se mostrar ansioso demais. Paulo se dirigiu à irmã e ofereceu-lhe a mão para que descesse. Ela mantinha o rosto baixo, e as faces estavam levemente coradas.

– Minha filha, dona Manuela Maciel – Manuel estendeu o braço na direção da moça.

Samuel deu um passo na direção dela e estendeu-lhe a mão. Manuela ergueu o braço, sem colocar os olhos no noivo. Ele beijou o dorso enluvado e disse:

– Samuel Gracie, senhora. Seja bem-vinda, dona Manuela.

Não houve o menor ruído. Ela apenas tirou a mão e fez uma mesura, com os olhos fixos no chão de tijolos embaixo deles.

– Vamos entrar e sair dessa umidade – convidou Edward. – Minha senhora os espera lá dentro.

Os pais tomaram a frente e Paulo ofereceu o braço à Manuela. Samuel seguiu atrás de todos, buscando observar o corpo da noiva, mas pouco conseguiu ver, a não ser os cabelos castanhos e longos presos na parte superior da cabeça com duas tranças finas que se encontravam em uma presilha de brilhantes. Atrás dele, ficou a escrava que acompanhava Manuela, a quem Justo encaminhou à entrada da cozinha.

Após as apresentações à dona da casa, os convidados sentaram na sala íntima, e Ana Maria mandou que trouxessem chá à Manuela e chimarrão aos homens.

– Fizeram boa viagem? – Edward puxou assunto.

– Qual! Pegamos chuva a maior parte do tempo! – Manuel reclamou.

– Está sendo um inverno muito chuvoso mesmo – Edward concordou.

– Já estiveram em Pelotas? – Ana Maria perguntou, observando a futura nora.

– Sim, e a cada vez me parece maior! – respondeu Paulo.

– Ah, com certeza, São Francisco de Pelotas se desenvolve a olhos vistos, logo chegaremos à vila – informou Edward, orgulhoso.

Samuel tentava não olhar para a noiva com intensidade, não seria adequado. Porém, seus olhos teimavam em correr até ela, que ainda não levantara o rosto nem dissera uma palavra. Era o que se esperava dela, recato e obediência. Apesar disso, desejava, ao menos de maneira furtiva, um olhar, um sinal de curiosidade. Mas nada acontecia.

Uma escrava trouxe chá e chimarrão e estendeu a xícara para Manuela, conforme Ana Maria orientara. Só então, pela primeira vez, a jovem ergueu o rosto. Pegou o que lhe ofereciam e deixou sobre o colo, sentada de forma empertigada e formal. Samuel tentava prestar atenção na conversa ao redor, mas cuidava os movimentos da noiva. Ela levou a xícara aos lábios, lentamente, e mal os umedeceu no chá quente. Voltou a xícara ao colo e se concentrou em esfriar o líquido, mexendo a pequena colher.

Samuel, mais uma vez, não enxergou os olhos da noiva, mas sentiu o olhar da mãe colado em si. Ana Maria encarava o filho, prestando atenção em suas reações. Quando os olhares se cruzaram, a mãe fez um sinal com os olhos, na direção de Manuela, e uma pergunta velada, apenas com o movimento das sobrancelhas. Samuel entendeu e ergueu os ombros, discretamente, como quem responde que não sabe.

– Dona Manuela? – Ana Maria saiu em ajuda do filho. – Qual tua devoção?

Levantou o rosto ao ouvir seu nome, desconcentrando-se da xícara. Virou para Ana Maria e olhou para o pai, esperando permissão para falar, o que foi concedido.

– Santo Antônio – respondeu, voltando ao chá.

Foi um instante, rápido como duas batidas do coração. Samuel viu seus olhos, castanhos e assustados, o rosto arredondado e de pele muito clara, emoldurado pelo cabelo. A boca era fina e a voz era tão suave que ele mal entendeu o que dizia.

– Agradeço a gentileza da senhora em providenciar a festa, Don’ana. Sem minha esposa, que Deus a tenha, não saberia o que fazer – disse Manuel, sorrindo.

– É uma honra, seu Manuel – respondeu Ana Maria, com um aceno de cabeça.

– Ainda assim, agradeço.

– Quem sabe dona Manuela me acompanha, para conhecer a casa? – a anfitriã sugeriu, desejando passar um tempo sozinha com a futura nora.

A moça esperou a autorização do pai e, assim que as mulheres se levantaram, os homens fizeram o mesmo, em respeito. Passou diante de Samuel novamente sem levantar o olhar, o que o angustiou demais. O noivo ou um escravo pareciam ser a mesma coisa. Samuel nunca havia se sentido tão invisível.

Ana Maria conduziu Manuela para dentro da casa, e a nora seguiu-a em silêncio. A sogra mostrou todas as peças sociais, apresentou as escravas na cozinha, passou pelo corredor dos quartos e, abrindo uma das portas, disse:

– Aqui será teu quarto. Esta noite, Samuel dormirá em outro lugar, mas quero que já te sintas à vontade. Vejo que trouxeste uma mucama. – Referiu-se à escrava que desfazia os baús.

A mulher fez uma mesura para a dona da casa e baixou o rosto, parando o que estava fazendo.

– Quitéria – Manuela apresentou.

– Excelente, assim te sentirás logo em casa. – Ana Maria tocou-lhe o braço, e a moça se retraiu.

– Bom, vou te deixar à vontade. Espero que esteja tudo do teu agrado, mas, se precisares de qualquer coisa, é só avisar.

– Obrigada.

Manuela esperou Ana Maria sair do quarto e tirou a capa úmida, entregando-a à mucama. Quitéria sorriu, esperando que a senhora lhe contasse suas impressões sobre o noivo, mas a jovem permaneceu com a mesma cara fechada e sem expressão de todos os dias.

– O que achaste do teu noivo?

– Não sei – respondeu, sentando na ponta da cama.

– Viste que ele tem olhos da mesma cor do céu? – disse, benzendo-se. – Nunca vi nada igual!

– Não notei.

– A senhora não olhou para ele em nenhum momento? – Quitéria espantou-se.

– Não. Mas a voz é bonita.

– Ah, ao menos isso! – Quitéria ergueu os braços. – Vamos trocar esse vestido, senão a senhora vai estar constipada amanhã, na hora do casamento.

Manuela levantou e deixou a mucama auxiliar com os botões e fitas que prendiam o grosso vestido sobre seu corpo. Sempre fazia o que mandavam, fosse o pai, o irmão ou a mucama. Fora criada para obedecer, e sabia que agora devia isso ao marido e aos sogros. Se dependesse de si mesma, não casaria, preferia a vida religiosa, mas o pai tinha outros planos, e só lhe cabia acatar, novamente.

Isto posto, só lhe restava seguir o caminho que a vida traçava, sem criar nenhuma expectativa em relação ao noivo ou ao casamento, porque era assim a vida das mulheres, a mãe lhe dissera pouco antes de morrer. E o pai até que havia demorado a se decidir, escolhera a melhor proposta que recebera, e não foram poucas, Paulo tinha lhe explicado.

Mulheres são uma mercadoria rara, nesse lugar – ele dissera.

O irmão também estava com dificuldade de arranjar uma esposa de bom nome e boa família, um casamento que agregasse prestígio à família, como o de Manuela.

De roupa trocada e cabelo arrumado, a moça se recostou nos travesseiros e observou o quarto. Era luxuoso e bonito, o que a admirou um pouco.

São pessoas de muitas posses – O pai lhe explicara na viagem até ali – Espero que saibas te comportar bem, que não me envergonhes.

E para cumprir a promessa que fizera ao pai, nesse sentido, decidiu ficar no quarto, sem sair até a noite, quando foi anunciado o jantar. Sentou-se à mesa, jantou de cabeça baixa, sem falar nada, e retornou ao quarto assim que pôde. Passou sua última noite de solteira em uma cama estranha, com cheiro de homem.

CAPÍTULO II

Na manhã seguinte, Manuela foi acordada pela mucama, que puxava o reposteiro da cortina deixando a luminosidade entrar no quarto. A chuva havia parado, mas o gelo do ambiente era horrível.

– Estás nervosa, sinhazinha?

– Sim.

– Don’ana disse que deves tomar o desjejum no quarto e não sair daqui até a hora de ir à igreja.

Aquilo não era nem um pouco difícil para ela. Aliás, era tudo o que queria.

Samuel acordou cedo, ansioso. Vestiu-se com sua melhor roupa, uma casaca longa azul-escura e botas altas, traje que já estava separado para aquela ocasião. Saiu do quarto de hóspedes e foi tomar o desjejum com a família.

– Eis o noivo – disse o pai, erguendo-se para cumprimentá-lo.

– Que Deus te abençoe, meu filho, e te dê bons filhos, como eu tive – Ana Maria o abraçou e rezou.

– Amém, mãe! – Samuel deu um beijo carinhoso em agradecimento.

– A moça me pareceu muito educada – elogiou Edward. – Discreta e obediente, bem como o pai disse.

– Até demais – Ana Maria colocou os olhos sobre o marido.

– Está envergonhada, não conhece ninguém, depois melhora – defendeu o sogro.

– Vamos esperar que sim – Ana Maria ainda duvidava.

– Estás nervoso? – Edward sorriu malicioso para o filho.

– Não – Samuel mentiu, descaradamente. Estava uma pilha de nervos.

– Mas ahh, bagual! – Edward deu um tapa nas costas do filho – Saiu igual ao pai!

– Edward!

– Mas não te atires em cima da pobre, vai com calma.

– Deus! – Samuel reclamou.

– Edward, estás constrangendo ao Sam e a mim.

– E nenhum dos dois é ingênuo nesse assunto – riu, debochado.

– Bom, vou indo. Espero vosmecês na igreja – disse Samuel, querendo se livrar do pai.

– Iremos em seguida – avisou Ana Maria.

Samuel saía da sala quando Manuel e Paulo chegaram para o desjejum. Cumprimentaram-se, brevemente, e o noivo buscou seu cavalo. Colocou-se em marcha, na direção da pequena igreja, que ficava a mais de uma hora dali.

Quando o relógio de bolso de Samuel marcou nove horas, a igreja já estava cheia de pelotenses que foram assistir à missa, e de convidados para o casamento que aconteceria em seguida. Charqueadores e suas famílias, estancieiros e comerciantes importantes, a alta sociedade se reunia e aguardava o evento, com roupas engomadas e finas, muitos lastimando que não fossem suas próprias filhas a casar, naquele dia, com aquele belo e rico partido. Manuela era uma moça de sorte, pensavam.

Samuel aguardava ansioso e cumprimentava a todos, com respeito. Viu os pais chegarem e sentarem nos primeiros bancos, ao lado de Paulo. Em seguida, o padre entrou e a noiva foi anunciada. Levantou-se para vê-la entrar, como todos os demais.

Manuela vinha de braço dado com o pai, em um vestido verde-claro, de saia bem rodada. O rosto estava coberto por um véu de renda branca, e não era possível ver nada além do tecido. Manuel caminhou com a filha, lentamente, até entregá-la a Samuel, a poucos passos do altar. A noiva colocou a mão sobre o antebraço do futuro marido, e esse foi o momento em que estiveram mais próximos, até então. O noivo levou-a ao altar e assistiram à missa dali, lado a lado, mas sem trocar um olhar. Por fora, estavam sérios e calmos, mas por dentro havia uma tempestade se formando em seus peitos.

Quando, enfim, o padre pediu a aliança, Samuel tirou o aro dourado do bolso e estendeu para que fosse abençoada. Depois, segurou a mão de Manuela, que tremia levemente. Não conseguia ver seus olhos, escondidos debaixo da renda, e angustiava-se por isso. Sentiu pena dela, percebendo que estava tão apavorada quanto ele mesmo.

O padre Felício disse as últimas palavras e ordenou:

– Pode beijar a tua noiva.

Os dois respiraram fundo, e era impossível dizer qual estava mais nervoso. Não era fácil para ela, tímida e recatada, receber o carinho de um homem que, até um dia atrás, nunca vira. Para Samuel, a situação não era menos constrangedora. A sociedade exigia que soubesse o que fazer e tomasse a iniciativa de tudo, que guiasse a esposa em suas obrigações e que o fizesse sem nenhuma insegurança. Ele era o alfa, o dono e o senhor, e ela só precisava segui-lo e obedecê-lo.

Samuel ergueu o véu, e os olhos da jovem permaneceram baixos. Levou a mão ao seu queixo e levantou o rosto. Não aguentava mais não ser visto. A esposa o mirou, por um instante, com medo e lágrimas retidas, respirando com dificuldade. Teria sido melhor que não tivessem se olhado, pois não eram essas as emoções que ele esperava encontrar naquele momento.

Soltou o rosto da noiva, que logo baixou a face novamente. Beijou-lhe a testa, num gesto quase fraternal. O padre encerrou o casamento e a missa, e o público bateu palmas, festejando o enlace.   Mas o coração de Samuel não estava feliz. Ofereceu o braço à Manuela, e atravessaram o corredor da igreja, na direção da luz do dia gelado de inverno. Entre o jovem casal, a temperatura não era diferente.

Foram seguidos pelos convidados e receberam os primeiros cumprimentos ainda na praça, diante da igreja. Samuel sorria e agradecia, Manuela apenas fazia mesuras diante dos conhecidos do marido.

Os convidados que participariam do almoço seguiram os noivos em direção à charqueada, e lá um farto banquete os aguardava, com um conjunto de tocadores para animar a tarde.

Samuel conversava com Antônio Chaves, outro charqueador, quando sentiu um braço que se enganchava no seu.

– Posso roubar o noivo? – perguntou Isabel Chaves, sorrindo para o primo.

– Isso devias perguntar à noiva – respondeu, liberando o outro para ir.

– Vem aqui. – Puxou-o para caminhar entre as árvores que cercavam a casa. – Estou vendo tua cara amuada, queres me dizer o que houve? Não gostaste da tua noiva?

– Não é isso, a senhora está enganada.

– Estou nada, tu me respeita, guri! – Bateu com o leque fechado no braço dele. – Te conheço desde que saíste dos cueiros, e tua mãe também já percebeu.

– Não há nada para perceber – disse, desviando mais uma vez.

– Vamos sentar ali – falou, indicando um dos bancos debaixo da figueira. – Olha para tua noiva e me diz o que tu sentes.

Samuel procurou Manuela, que estava quieta, sentada ao lado da mucama, numa roda de mulheres casadas.

– Está apavorada – já percebera isso há tempo.

– É comum, também fiquei assim. Eu queria correr, fugir do Eugênio – Isabel riu, lembrando-se de sua própria festa de casamento.

– Dona Manuela não me olha, me evita e se constrange com a minha presença.

– Ela é tímida, recatada. Eu nunca fui assim, mas não é uma qualidade ruim para uma esposa, afinal.

– Evidente que não, mas e… – parou de falar, constrangido com seus pensamentos.

– Mas… – Isabel compreendeu. – Tu és um homem muito bem apessoado e logo ela cairá de amores por esses olhos. Nem de vela na mão encontraria um noivo melhor – gargalhou a amiga.

– Talvez a senhora devesse falar isso para ela.

– E tu achas que não vou? – disse, desafiadora.

– Eu gostaria que fosses – Samuel sorriu de volta.

– Deixa comigo – piscou. – Agora, vai tirar tua esposa para dançar. Depois, eu quero uma marca.

– Será uma honra – beijou a mão da amiga da mãe e foi fazer o que ela dizia.

Aproximou-se do grupo de mulheres e Manuela percebeu, baixando o rosto imediatamente. Samuel respirou fundo, desgostoso. Parou atrás dela e inclinou o tronco para lhe falar.

– A senhora me dá a honra de uma marca?

As demais mulheres se calaram. O pátio parecia se resumir àquele momento e, ao longe, as gargalhadas dos homens romperam o silêncio constrangedor que se fez. Manuela engoliu em seco e confirmou com a cabeça. Entregou a taça de ponche que tomava e levantou, aceitando a mão dele para sair da roda. Samuel sentiu um alívio, chegou a pensar que ela recusaria. Correu os olhos até Isabel, e viu que a amiga sorria.

Levou a esposa até o círculo de pares que aguardavam a próxima música, quando a banda passou a tocar um Caranguejo. Palmas e pés marcavam o ritmo, com trocas de lugares e um rápido sarandeio.   Pôde, assim, observar os olhos da moça e buscar ali algo além de medo ou timidez, mas não encontrou, mesmo ao sorrir. Manuela o encarava, como devia ser, mas a boca permanecia séria, e os olhos tinham um aspecto levemente arregalado, de animal acuado.

Ao final da dança, Manuela agradeceu. Antes que escapasse, Samuel ofereceu-lhe o braço e sugeriu:

– Vamo caminhar, posso te mostrar a charqueada?

– Acho melhor voltar, se o senhor não se importa.

– Não precisas ter medo de mim. Creio que seria bom nos conhecermos um pouco, tu não achas?

– Não é adequado.

– Não há nada inadequado em conversarmos.

– Mas sozinhos?

– Queres levar tua mucama conosco? – Samuel revirou os olhos, achando aquilo uma besteira.

Manuela confirmou com a cabeça e fez sinal para que Quitéria se aproximasse.

– Caminha atrás de nós – ordenou, incomodado.

Começaram a caminhar na direção do lado de trás da casa, para longe do movimento dos convidados, passando perto do arroio e entre os arbustos e as diversas flores que havia ali.

– O que gostas de fazer? – perguntou, puxando assunto.

– Ir à missa e bordar.

– Tem alguma festa de tua preferência?

– A de Santo Antônio.

– E de dançar, tu gostas?

– Não muito.

– Por quê?

– Tenho vergonha e não gosto de dançar com homens estranhos.

– Bom, isso está resolvido, agora que estás casada. – Samuel sorriu.

Ela não riu, não achava que ele se diferenciasse dos outros com quem havia dançado até ali.   Chegaram ao lado oposto da casa, e Samuel caminhou, automaticamente, na direção dos varais.

– O que são esses troncos? – a moça perguntou.

– São varais, onde se pendura o charque para secar.

– São muitos! – disse, admirando a extensão que atravessava o terreno. – E lá, o que é? – referiu-se a uma grande chaminé que soltava uma fumaça escura.

– A olaria.

– Podemos voltar? – Manuela pediu.

– Já?

– Quero sentar.

Samuel fez a volta e retornaram ao grupo de senhoras sentadas embaixo das árvores. Agradeceu o passeio e foi na direção de Isabel, que o chamava com o leque.

– E então? – quis saber, enquanto enganchava o braço no dele.

– Difícil – Samuel encaminhou a amiga para a dança que prometera.

– Vamos torcer para que, até a noite, aquele ponche faça efeito – ela riu, e Samuel sacudiu a cabeça, constrangido.

Cumprimentaram-se, e os acordes de um Tatu soaram, com a voz esganiçada do violeiro cantando a letra.

********

Já anoitecera há tempo, Ana Maria e Manuela já tinham se recolhido, e os homens protelavam a hora de dormir, esperando que o noivo se retirasse. Como Samuel não sabia que aquele comando dependia dele, ouvia ansioso e preocupado a conversa dos homens, até que o pai lhe disse:

– Tu não tens um casamento para consumar?

Sentiu o rosto ferver e olhou furioso para o pai. Paulo engoliu o riso e Manuel se remexeu na cadeira, incomodado.

– Parece que tenho. Boa noite – respondeu, largando o copo sobre a mesa.

Caminhou até o quarto e parou diante da porta. Se dançar já fora difícil e ela nem o encarara depois disso, imaginava o que poderia acontecer quando atravessasse aquela porta. Respirou fundo e decidiu bater, em vez de entrar direto. Quitéria abriu, de rosto baixo, e pediu licença, desejando boa noite. Samuel fechou a porta e caminhou até o lavatório, sem olhar para a cama, onde a esposa estava sentada.

– Vou trocar de roupa – avisou, após limpar as mãos e o rosto.

Ouviu o farfalhar dos tecidos sobre a cama, pois a jovem se virara para o lado oposto para não assistir à cena. Samuel tirou a roupa de gala e vestiu uma camisa de dormir limpa. Só então, olhou na direção da cama.

Manuela estava deitada de costas para ele, com as mãos escondendo o rosto, totalmente coberta, até os ombros. Apenas o cabelo longo e castanho estava derramado pelo travesseiro de linho branco e rendas.

Samuel entrou debaixo dos cobertores e sentiu que a esposa se retraiu para ainda mais longe. Não sabia o que fazer, não porque nunca tivesse passado por aquela situação, mas porque imaginava que ela deveria estar apavorada, como também estava. A consumação do casamento precisava ser feita, esperavam isso dele, mas Manuela não facilitava em nada. A moça não lhe despertava nenhum sentimento, com exceção de pena, mas era uma mulher, e Samuel sabia como encontrar uma forma de se interessar, nem que fosse apenas pelo corpo.

– Manuela, tu podes te virar para mim?

– Por quê?

– Porque temos que fazer isso. Não vou te forçar, portanto, espero que tu aceites.

– Eu não sei o que temos que fazer – disse, ainda de costas, agarrada à borda do travesseiro com as duas mãos.

– Eu sei que não, por isso preciso que tu me deixes te tocar.

Ela se encolheu ainda mais, numa posição de total insegurança, abraçando as pernas com o braço livre.

– Quem sabe conversamos um pouco e tu podes te acalmar? – sugeriu, já quase sem vontade.

– Estou com sono.

Samuel revirou os olhos. Poderia fazer o que fosse, mas ela não lhe dava espaço. Decidiu que não sairia da noite de núpcias sem tê-la consumado. Do contrário, tinha certeza de que o pai colocaria a culpa em sua ineficiência e falaria para sempre do ocorrido.

Tocou o ombro de Manuela fazendo pressão para que se virasse. A jovem se encolheu e Samuel juntou o corpo ao dela, que era pequeno, delicado e fino, quase uma porcelana. Passou o braço por sobre seu dorso e beijou o rosto quente. Afastou o cabelo que caía por seus ombros e beijou o pescoço.

– Para – disse, incomodada.

Samuel afastou novamente o corpo e caiu, pesado, sobre o colchão.

– Manuela, estou ficando sem opções – reclamou.

– Desculpa.

Ela estava em pânico, à beira do choro, sem querer o menor contato com aquele homem seminu deitado ao seu lado. Por que o pai não a mandara para a vida religiosa, como sempre quisera? Por que a obrigava àquilo? As mulheres mais velhas na roda, mais cedo, falavam da sorte que tivera, pois seu noivo era um homem cheio de atributos, que iam desde a boa aparência até o tamanho do pé.   Não entendia que benefício aquilo poderia trazer, mas todas as mulheres haviam se divertido com aquele fato. Sempre achara horríveis os pés masculinos, imensos em suas botas de couro ou de garrão.

Isabel Chaves a levara pelo braço para caminhar, e dissertara sobre outras qualidades do marido, como o bom humor e a gentileza, salientando que, às vezes, também podia ter um mau gênio, mas que, na maioria das ocasiões, era um homem encantador. Também perguntara se alguém lhe falara sobre a noite de núpcias, e como respondera que não, Isabel dissera pobrezinha e batera com o leque em sua mão, como quem consola. Então concluíra dizendo: deixa, ele sabe o que fazer.

E agora estava ali, com aquele homem de tantos atributos, em quem via apenas um desconhecido, e a quem devia algo, pelo visto difícil de dar, pois incluía um contato e uma proximidade a que não estava acostumada.

– Vira para cá – disse Samuel, firme.

Manuela respirou fundo e obedeceu, não porque quisesse, mas porque era a isso que estava acostumada.

– Olha para mim – Samuel percebeu que a esposa reagia àquele tom. De fato, ela olhou. – Fica olhando e esquece o resto.

Colou os olhos nos do marido, que estavam num tom azul-escuro profundo, como o céu ao anoitecer.   Ele apenas a mirou, até sentir que sua respiração havia se acalmado e que ela relaxava. Só então levou a mão ao rosto da moça e lhe fez um carinho, ao qual Manuela reagiu, tentando se afastar.   Samuel a segurou:

– Não te mexe – repetiu, em tom imperativo.

Samuel puxou-a para perto de si e juntou os dois corpos.

– Vou fazer só uma coisa, não te afasta.

Samuel aproximou o rosto e beijou levemente a boca de Manuela. Sentiu que todo o corpo tensionava e tentava escapar, mas segurou-a pela nuca, impedindo-a de fugir. Forçou seus lábios a se abrirem e a língua entrou, buscando a dela, mas só encontrou o vazio. Jogou o peso do corpo contra o da esposa e a derrubou sobre os travesseiros, buscando lembranças mais quentes e interessantes do que aquele corpo frio que estava embaixo do seu.

A pobre estava num pânico tão grande que já nem reagia. Fez o que Isabel lhe dissera, deixou que o marido fizesse o que precisava e só esperou que aquilo terminasse logo, que parasse de tocar seu corpo daquela forma incômoda e constrangedora. Quando a mão grande tocou seu seio, gritou, mas o berro ficou calado dentro da boca, que ele insistia em juntar à sua.

Samuel já não olhava para ela, estava de olhos fechados e de cenho franzido, como se sentisse uma dor. Manuela notou que afastava suas pernas e deitava entre elas, erguendo a barra de sua camisola. Tentou protestar, mas o marido não deixou:

– É assim mesmo, me deixa terminar.

Se era para terminar, então deixaria. Mas não estava preparada para o que viria a seguir. Ele forçou tanto o corpo contra o dela que a jovem sentiu algo arrebentar dentro de si, doendo terrivelmente. Tentou escapar, mexeu os quadris, buscou se livrar daquele peso e da dor que sentia entre as pernas.

– Já vai passar – disse Samuel.

Manuela pensou que ele tiraria aquele volume todo dali, mas o marido se pôs a mexer, de olhos fechados, com mais rapidez. O movimento a sacudia, os seios balançavam dolorosamente, estava morrendo de dor e vergonha. Sentiu as lágrimas escorrerem e entrarem pelas orelhas, enquanto rezava a Deus pedindo que aquilo terminasse ou que morresse antes.

Quando, enfim, ele parou de se mexer e suspirou profundamente, arfando ao seu lado, Manuela voltou a juntar os joelhos e virou de costas.

Samuel sentiu-se péssimo por forçá-la àquilo, por pura obrigação de consumar o casamento. Percebeu-a encolhida e distante, e tentou fazer-lhe um carinho nas costas para consolar seu choro, mas a esposa se afastou ainda mais quando foi tocada. Por fim, virou para o lado oposto e logo dormiu.

Manuela ainda chorou por um tempo. Estava dolorida, suja, lambuzada e imensamente envergonhada e culpada. Acreditava que tinha feito algo errado, que sua inexperiência e timidez eram a causa do jeito horrível com que o marido a havia tratado. As outras mulheres davam risadinhas alvoroçadas quanto ao que acontecia entre um casal, então imaginava que fosse algo bom, não aquilo. Assim, a culpa só podia ser sua.

Quando acordou, no dia seguinte, Samuel já não estava no quarto. Ficou aliviada por não precisar olhar para ele depois daquela noite. Se pudesse, não olharia nunca mais. Levantou para urinar e percebeu que a camisola branca estava ensanguentada e que o lençol estava sujo. O cheiro que subia de suas pernas era enjoativo, e nunca desejou tanto um banho na vida. Foi até o lavatório e encheu a bacia de água, fria mesmo, e limpou-se como pôde. Depois trocou a camisola e fez uma trouxa com a roupa de cama. Embolou tudo e esperou por Quitéria.

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