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Capítulos Iniciais

O Farrapo – Volume I

CAPÍTULO I

Ela acordou com um sacolejar seco, que fazia doer o corpo. Aos poucos, os olhos foram se acostumando à luminosidade e ao verde escuro das copas das árvores, que contrastavam com o azul do céu. Além do som do que pareciam ser as rodas de uma carroça sobre os pedregulhos da estrada, ouvia-se apenas o barulho de cascos de cavalos.

Tentou mexer-se e sentiu uma pressão sobre o ombro esquerdo. Era uma mão grande, masculina. Ergueu o olhar, acompanhando a manga de camisa, que imaginou ter sido branca algum dia, e chegou a um rosto sério, bonito, de olhos muito azuis, que a observavam atentamente. Lara nunca o vira antes.

– Bateste a cabeça, melhor levantar devagar – ele falou, muito sério. Lara percebeu o forte sotaque dos gaúchos da fronteira, com “erres" endurecidos e consoantes bem pronunciadas.

Instintivamente, ergueu a mão para procurar o local da pancada. Sim, estava ali, bem na testa, uma protuberância dolorida e aparentemente grande. Colocou sua força nos cotovelos e procurou sentar-se.     O frio fez os pelos arrepiarem e ela percebeu que havia um pala, de lã muito escura, cobrindo suas pernas. O balanço da carroça fazia sua cabeça doer, e ela fez uma careta.

– A senhora tem mais algum ferimento? – o homem perguntou, correndo os olhos pelo corpo dela.

– Não que eu sinta – respondeu, constrangida pelo escrutínio dele.

Agora sentada e desperta, percebeu que fazia parte de um grupo. Atrás da carroça vinham três homens, montados e cobertos por palas, veste típica dos gaúchos. Seu companheiro de transporte também estava pilchado, usando calça e chiripá, colete de couro de boi amarelo queimado, camisa, botas longas, lenço de seda vermelho e chapéu de barbicacho. Todos os olhares voltavam-se para ela, com curiosidade. A paisagem ao redor era de mata densa, e a estrada levemente íngreme e estreita. Estavam subindo uma serra, e ela não entendeu porque estava sozinha.

– Onde estamos? – perguntou – E o meu marido?

O acompanhante não respondeu. Estava atento à paisagem, às árvores. Lara percebeu que o movimento da carroça diminuiu e que os homens pareciam todos muito tensos, encarando-se e correndo os olhos pela mata circundante, embora tudo lhe parecesse normal.

Ela ia perguntar o que havia, mas sentiu a mão do homem apertando seu pulso.

– Deita! – ele ordenou.

Pensou em protestar, mas, com um movimento muito rápido, ele jogou-se por cima dela. Lara apavorou-se com a reação e tentou desvencilhar-se, debatendo-se, mal conseguindo respirar. O peso do homem era como uma rocha, e ela podia sentir seu calor e seu cheiro, um misto de suor e aguardente.      Seu chapéu cobria parte do rosto de Lara, e sua respiração era forte, agitada. Lara levou apenas dois segundos para entender que a situação era grave.

Os estampidos dos tiros pipocavam, às vezes perto, às vezes longe, e o cheiro de pólvora misturava-se com o do homem. Ela sentiu que ele mexia o braço devagar e tirava algo das costas. Virou o rosto para Lara e disse no ouvido dela:

– Pega!

Lara tateou o fundo da carroça até encontrar a mão dele com um objeto frio e sólido, que percebeu ser uma arma. Surpreendeu-se e virou o rosto, seus olhos encontraram-se, muito próximos. Ele a encarou, paralisado por um momento, e ordenou:

– Te protege!

Depois, virou-se rapidamente para o lado, e ela o viu pegar uma espada e, no intervalo entre os disparos, pular para fora da carroça.

Lara sentiu-se gelada, exposta, absurdamente em perigo. Arrastou-se e encolheu o corpo em um canto da carroça. Procurando manter a cabeça sempre baixa, puxou para cima de si o pelego de ovelha e o pala, que antes haviam lhe servido de cama e cobertor. A cabeça ainda doía, e ela estava confusa, sem entender o que acontecia ali e porque estava no meio daquela briga que, com certeza, não fazia parte das atrações do parque que visitava em Canela.

O que está acontecendo aqui? – pensou, desnorteada.

Agora ela ouvia o tinir de espadas, e lembrou-se do homem armado que sumira pela lateral da carroça. Tomou coragem, já que não ouvia mais tiros, espichou o pescoço para fora do pelego e espiou por sobre a madeira. Quatro homens ainda lutavam, e outros dois estavam caídos no chão, ao lado da carroça. Havia muito sangue ao redor de um deles, e ela deduziu que só podia estar morto. Seus olhos procuraram o loiro e logo o viu, grande e forte, lutando com um... Soldado? – espantou-se.

O machucado em sua testa latejava. O homem havia mandado que ela se protegesse e ali, na carroça, não lhe pareceu seguro, precisava aproveitar a distração dos soldados e correr. Do jeito mais ágil que conseguiu, lançou as pernas por sobre a lateral da carroça e pulou. Caiu no chão, desajeitada, e escorregou no sangue do homem morto que jazia ao lado das rodas. Suas pernas e uma de suas mãos ficaram ensanguentadas, mas não tinha tempo para sentir nojo. Apenas esfregou a mão na parte de trás da calça, correu e meteu-se no mato o quanto pôde.

A vegetação fechada dificultava sua passagem, o terreno alternava-se entre plano e com leves ondulações, que exigiam esforço de suas pernas. Escorregou, a blusa prendeu em galhos e ela precisou desviar, diversas vezes, para não bater a cabeça outra vez.

Uma neblina começou a se formar, e a umidade da mata se intensificou. Lara reconheceu o cheiro forte de musgos, pinheiros e samambaias e viu muita barba de pau pendendo dos galhos. Não sabia quanto tempo havia se passado desde que batera a cabeça e desmaiara após o acidente com o trenó que dirigia, mas não devia estar longe do parque, pois, embora a mata fosse bastante fechada, ainda era típica daquela região. Em compensação, não fazia ideia de como chegar ao parque e nem de quem eram as pessoas que estavam com ela.

Parou de andar e aguçou os ouvidos. Os barulhos da luta haviam cessado. Mas e se os homens que os atacaram viessem atrás dela, talvez pensando que fosse cúmplice? Cansada demais para seguir, sentou-se sobre uma pedra coberta por líquen acinzentado, e respirou, ofegante pelo esforço. Estava com fome e com sede, percebeu. E muito frio. O raro dia quente, de vento abafado, havia se transformado em uma tarde gelada e úmida, como era característico na Serra Gaúcha.

Colocou a mão no bolso traseiro da calça, procurando o telefone que havia posto ali, mais cedo, mas não o encontrou. Devia tê-lo perdido durante o acidente, imaginou.

– Droga! Como vou sair daqui? Como vou chamar o Júlio? – disse, forçando-se a encontrar uma solução.

Sentiu os olhos arderem, na iminência do choro, ao lembrar-se do marido. Ele devia estar desesperado atrás dela, imaginando onde fora parar. E ela mesma não sabia. Não andavam em um bom momento da relação, e haviam viajado justamente para buscar novos ares, para se reconectar, e agora ocorria o oposto, ela estava perdida. Abraçou as pernas, abaixou a cabeça e deixou as lágrimas escorrerem, enquanto uma sensação de impotência gigante tomava seu coração.

Acima do som de seu choro, ouviu o barulho de um galho que quebrava, bem a sua frente. Ergueu os olhos molhados e reconheceu o seu companheiro de carroça. Um misto de desespero e alívio percorreu seu corpo. Ele sobreviveu – pensou. Não sabia se aquilo era bom ou ruim, se podia confiar naquele desconhecido, ainda mais depois de vê-lo lutar com soldados. Havia respingos de sangue em seu rosto e nas roupas, vestígios da luta sangrenta que ele enfrentara. Ficou de pé e, instintivamente, colocou-se na defensiva.

– Não te mexas – ele falou, erguendo a mão.

Em um movimento rápido, envolveu-a com um braço, dando um passo à frente, e ergueu a arma com o outro. Lara encolheu-se quando ouviu o disparo.

– Em quem tu atirou agora? – perguntou, apavorada.

Sentindo que o braço ao seu redor se afrouxava, virou-se para ver a vítima. Um animal, parecido com uma pequena onça, jazia a poucos metros, de olhos parados e boca aberta. Na testa, um fio de sangue escorria.

Lara voltou os olhos ao homem, assustada. Ele olhava para ela também, mas seu rosto estava fechado, e um forte vinco marcava o espaço entre as sobrancelhas. Ele disse, em tom firme e áspero:

– Mandei tu te proteger e ficar com a arma, não correr para dentro do mato. Tu foste imprudente.

– Não me senti segura na carroça – respondeu, não gostando do tom de cobrança dele, que insinuava que ela lhe devia obediência.

– E aqui tu estavas, por certo? E se eu não chegasse a tempo? – girou-a pelos braços, examinando-a.

Só então Lara percebeu que estava arranhada, provavelmente pelo tombo que levara após o acidente, que a fizera rolar por um barranco, ou pelos galhos baixos dos arbustos, que a atingiram enquanto corria.

– De onde vem esse sangue? – ele perguntou, ainda irritado.

Lara estava aturdida. Nada fazia sentido naquela situação, mas o que menos ela entendia era, porque, afinal, ele parecia preocupar-se tanto com ela. Uma forte irritação tomou conta dela, fruto da fome e da adrenalina que havia experimentado.

– E o que te interessa isso? – xingou-o, desfazendo-se de suas mãos – Não te devo explicação nenhuma! Quem precisa de algumas informações sou eu! Quem são vocês e por que estão comigo? Que briga foi aquela? Está cheio de gente morta lá! Se tu realmente te importa, me leva para o parque agora ou me deixa aqui, e vou procurar ajuda. Olha, eu juro que não falo nada sobre a briga, nem vi – sacudiu a mão, como quem afasta uma ideia. – Posso dizer que me perdi na mata depois do acidente, e andei desorientada, não te envolvo nisso.

O homem ouviu o desabafo calmamente. Lara percebeu até uma certa diversão em seus olhos e viu que o canto da boca se erguia em um sorriso. Quando ela parou de falar, ele se aproximou, juntou o corpo dela ao seu e a envolveu nos braços. Uma mão entrou por debaixo de seus cabelos, segurando a nuca para que ela não fugisse do beijo. Lara atordoou-se, por um instante, surpresa, mas logo a violência daquilo a revoltou. Tentou livrar-se dele, virar o rosto, separar as bocas, mas não conseguia. Ele estava colado a ela, com força e determinação, e a mão em seu pescoço a fazia prisioneira de sua boca.

Ele ouviu seu protesto, o som sem palavras que tentava pará-lo, sentiu as mãos que buscavam afastá-lo, sem êxito. Só recuou quando ela mordeu seu lábio.

– Sua... Jaguatirica! – xingou, levando o polegar aos lábios, onde havia uma pequena gota de sangue.

– Nunca mais chega perto de mim – gritou, com raiva, limpando a boca.

Ele ficou parado, olhando furioso para ela. Um calafrio sacudiu o corpo de Lara, que colocou as mãos ao redor dos braços arrepiados e esfregou-os, na vã tentativa de aquecê-los. Ao mesmo tempo, pensava em como fugir dali. Teve medo dele e do que poderia fazer, já que estavam sozinhos no meio do mato e, pelo visto, ainda havia animais selvagens por perto. Deviam estar bem longe da cidade, concluiu. Seus olhos encheram-se de lágrimas novamente, diante da sensação de impotência e da falta de perspectiva. Virou-se para que ele não percebesse sua fragilidade.

Então, sentiu o mundo se aquecer. Ele fez o pala passar sobre sua cabeça e a grossa lã deslizou e cobriu seu corpo gelado, quase até os pés. O calor trouxe uma sensação boa de conforto e segurança, e as lágrimas, que ela ainda tentava reter, escorreram. Quando ela pareceu se acalmar, ele disse, já sem irritação:

– Vamo, agora. Temos muito chão pela frente.

Lara sentia-se quase incapaz de resistir, pois ele era a única pessoa que poderia tirá-la dali naquele momento, mas ainda sentia medo dele.

– Não vou a lugar algum contigo.

– Sim, tu vais e estou te mandando andar.

– Não! – teimou.

Ele inclinou o tronco na direção dela e a encarou, desta vez com raiva.

– Arre, se não sairmos agora, ficará escuro e não acharemos a carroça. Queres passar a noite sozinha, no meio do mato? – apontou para o animal morto.

– Eu dou um jeito – ela falou, mesmo sem saber como.

O rosto do homem abriu-se numa gargalhada debochada. Abaixou-se diante dela, passou os braços ao redor de suas pernas, jogou-a sobre os ombros, como um saco de batatas, e saiu andando.

Lara ficou tão estarrecida que só conseguiu espernear e grunhir, pois uma mão dele segurava seus quadris e a outra seus pés, impedindo-a de descer.

– Me solta, criatura estúpida e machista! – reagiu, socando as costas grandes dele.

– Não adianta lutar, Jaguatirica – ele riu. – Aliás, meu nome é Samuel, e não vou te soltar, não é seguro aqui.

Caminharam um tempo assim, desviando dos galhos e das árvores, até que ela pareceu se acalmar. Samuel parou e perguntou, sério:

– Já posso te pôr no chão ou ainda vais me desobedecer?

– Pode – disse, sentindo que sua dignidade devia estar pendurada em algum daqueles galhos, mais atrás.

Samuel colocou-a no chão, saiu caminhando e Lara seguiu-o, em silêncio. Ele era um homem, no mínimo, peculiar, pensou. Embora fosse autoritário, seco e facilmente irritável, de ter forçado um beijo e de carregá-la contra a vontade, coisas que ela jamais poderia aceitar, ele também tinha uma necessidade de saber se ela estava bem. Era quase um cuidado. Não tinha, exatamente, jeito de ser um homem mau, mas podia ser, e ela não conseguia chegar a uma conclusão.

Chegaram ao lugar onde antes haviam encontrado com os soldados. Lara percebeu que muitos corpos estavam pelo chão, destroçados, olhos fixos, sangue escorrendo. Foi uma carnificina, concluiu. Ficou paralisada, de boca aberta, diante de todo aquele horror. O cheiro enjoativo de sangue se misturava ao da mata. Seu corpo começou a tremer e ela levou as mãos à cabeça. Pensou em correr dali, para longe daquele homem, mas as pernas chumbaram no chão, de pavor. Uma ânsia subiu por sua garganta e ela vomitou o pouco do almoço que ainda restava.

– Não olha – ele disse, tarde demais.

– Ninguém sobreviveu? – falou, apavorada e virando o rosto daquilo tudo.

– Apenas eu.

Ele mexeu na carroça e alcançou um cantil para ela. Lara tomou a água e cuspiu, livrando a boca do gosto amargo de bílis. Olhou, com medo, na direção de Samuel, sujo de sangue, e a visão dele ao lado dos corpos a aterrorizou.

– Sobe na carroça e me espera – ordenou. – Vou pegar os corpos dos meus contratados, antes que as feras apareçam.

– Tu não vai deixar aí, para a Perícia? Temos que chamar a polícia! Vocês foram atacados, foi legítima defesa!

Lara era o desespero em pessoa com aquela situação. Samuel olhou para ela, franzindo o cenho, na tentativa de entendê-la, mas decidiu que não precisava dar-lhe explicações sobre aquilo.

– Sobe! – disse apenas, numa ordem seca.

– Para que lado fica o parque, preciso voltar – Lara tentou localizar-se e percebeu a direção em que eles estavam indo, então o parque deveria ser para o lado oposto – É para lá?

– A senhora vai subir na carroça, foi o que mandei fazer.

– Será que tu pode me ouvir? Não vou contigo, preciso voltar para o meu marido. Tu vai me levar até ele?

Samuel respirou fundo e parou de organizar a carroça, como fazia. Virou-se para Lara e disse:

– Não sei onde é esse lugar em que a senhora quer ir. Quando chegarmos à vila, a senhora pode pedir ajuda.

– Como não sabe? Eu estava no trenó do parque e então ele saiu do trilho, deve ser por lá que tu me encontrou.

– Não sei do que a senhora está falando.

– Me empresta teu telefone, ligo para o Júlio e ele vem me buscar – ela estendeu a mão.

– Não tenho isso – ele ergueu os ombros, de cenho franzido.

– Jesus! Quem não tem um telefone hoje em dia? – revirou os olhos e bateu os braços ao redor do corpo, frustrada. – Tem algum lugar aqui perto onde eu possa conseguir um?

– Logo vai anoitecer, na vila a senhora procura ajuda. Agora, sobe na carroça! – Samuel insistiu, de rosto fechado.

Lara teve medo, desistiu de argumentar e obedeceu em silêncio. Ele tinha um jeito firme de falar, que obrigava os músculos dela a reagir, enquanto o coração saltava no peito. Ela sentou-se no banco e aguardou. Cada corpo que Samuel largava fazia a carroça sacudir. Por fim, amarrou um cavalo que ainda estava por perto na traseira da carroça e sentou-se também. Sem dizer mais nada, sacudiu as rédeas e começaram a andar, ao som do gemido das rodas.

A cabeça de Lara era uma confusão só. Às vezes, olhava para Samuel, que estava sério e concentrado na estrada, que começava a escurecer na frente deles. Depois de muito pensar, criou coragem e disse:

– Queria entender algumas coisas.

Ele apenas assentiu com a cabeça. Estava com o pensamento longe, preocupado e cansado.

– Eu não entendo por que estou contigo.

– Te encontrei caída ao lado da estrada, desacordada e com um baita galo na testa. Embora tenham me dito para te deixar lá, resolvi ajudar.

Lara ficou em silêncio. Aquilo fazia sentido, ela se lembrava de ter perdido o controle do trenó e saído dos trilhos, que pareciam ter desaparecido repentinamente, de ter batido a cabeça e de ter andado desorientada.

– Entendo. E te agradeço, então – falou sinceramente. – Mas, por que tu não me levou de volta ao parque? Ou para um hospital? E onde estamos, que caminho é esse, é Canela ainda?

Samuel olhou confuso na direção dela. Não compreendia o que ela queria dizer e resolveu responder apenas o que entendeu:

– Estamos nos Campos de Cima da Serra.

– Sim, eu sei que estamos na Serra – disse, impaciente. – Mas onde? Canela, Gramado? São Francisco?

– Amanhã devemos chegar à Vila de São Francisco.

– São Francisco de Paula? Mas por que ir até lá para pedir ajuda? – estranhou. – Eu não quero ir para lá, eu preciso voltar para Canela, para o meu marido!

Ele não fazia ideia do que ela falava. Só podia ser algum tipo de confusão, por causa da batida na cabeça, pensou. Certamente estava com os nervos abalados, pela pancada e pela luta a que assistiu, porque parecia quase fora de si. Decidiu não responder.

Lara ficou em silêncio por um tempo, pois percebeu que ele apenas levantara os ombros, sem dizer mais nada. Então, sem ter o que fazer, decidiu que aguardaria chegarem a tal vila para pedir ajuda.

– E por que lutaram contra aqueles homens? – era outra coisa que ela não entendia.

– Buenas, eles eram soldados imperiais, o que mais podíamos fazer? E eles atiraram primeiro! – ele parecia explicar o óbvio.

– Sim, atiraram! Mas por quê?

– Porque somos inimigos, Jaguatirica, por que mais iriam nos emboscar? – a voz dele era grave, forte, fazia Lara temê-lo, ainda mais quando se irritava.

– Meu nome é Lara! – ela reclamou. As respostas dele não ajudaram em nada.

– Bom saber, Jaguatirica – sorriu para ela, levemente. – Vamos parar por aqui esta noite. Já nos afastamos bastante dos soldados e tu deves estar com fome. Eu estou!

– Vamos parar aqui, no meio do nada? – ela espantou-se. – Não íamos a uma vila em São Francisco?

– Só chegaremos lá amanhã e não há outro lugar a pelo menos três horas de viagem – disse, enquanto descia e prendia a carroça a uma árvore.

– É claro que existe, tem que haver! – ela teimou.

Samuel se aproximou dela e pegou-a pela cintura, obrigando-a a descer da carroça. Ficaram muito próximos, e ela sentiu que ele deixou as mãos em seu corpo por mais tempo do que o necessário. Ele era alto, e a cabeça de Lara mal passava de seus ombros. Depois, abaixou o rosto na direção dela e disse, sério e firme:

– Pois te garanto que não há.

– E eu te digo que existe, sim! – insistiu, dando um passo para trás e afastando-se dele.

– Mas como sou eu quem segura as rédeas da carroça, ficaremos aqui – determinou.

– E vamos passar a noite assim, ao relento?

– Se preferir, a senhora pode ficar acordada.

Em seguida, afastou-se, retirou da carroça dois pelegos e um saco. Esticou as peles de ovelha no chão e disse a Lara que sentasse, enquanto ia pegar lenha para a fogueira. Embrenhou-se no mato, e tudo o que ela tinha agora era a escuridão e o silêncio, entrecortado apenas pelo som de insetos e aves noturnas. Olhou para o céu, e havia tantas estrelas como jamais tinha visto. A lua era crescente, mas ainda iluminava pouco. Ao seu redor, só via árvores. Nenhuma estrada, nenhum prédio ou a luz distante de alguma casa, era como se estivesse no meio do nada. Mas ela sabia que havia muito mais por ali. Que caminho Samuel estaria usando para chegar a São Francisco de Paula? – estranhou.

Saiu de seus pensamentos no momento em que ele despejou a madeira na sua frente. Ficou observando como ele lidava facilmente com aquilo. Preparava uma fogueira e montava uma barraca improvisada como se fosse um hábito corriqueiro.

– Deve ter alguma casa ou fazenda aqui perto onde eu possa pedir ajuda – tentou novamente.

– Não que eu conheça.

– Tu não espera que eu fique aqui, sem fazer nada, preciso voltar!

– Dona Lara, querendo seguir, o caminho é por ali – ele apontou na direção do estreito percurso por onde haviam chegado, quase invisível dentro da noite.

– Tu tem uma lanterna, ao menos, para me emprestar?

– Não – Samuel franziu a testa e voltou a cuidar do fogo.

Lara bufou, frustrada. Lembrou-se da rodovia que ligava Canela a São Francisco de Paula, mas, naquela escuridão, não conseguiria chegar e nem sabia para que lado ir. Sentiu-se sem opções, a não ser esperar pelo dia seguinte. Uma perda de tempo totalmente desnecessária, pensou, já que a civilização devia estar por perto, mas ele não parecia disposto a ajudá-la a encontrar.

– Entendi que tu me encontrou desmaiada, longe do parque. Lembro que caminhei um pouco, desnorteada. Mas isso não justifica tu não me levar de volta e estar me mantendo aqui – Lara disse, tentando ficar calma, mas preocupada por estar naquela situação com um desconhecido.

– E eu não sei mais de que forma explicar, dona Lara. A circunstância é essa, e amanhã seguimos até a vila, lá a senhora encontrará ajuda melhor.

– Isso até parece um sequestro, só falta me amarrar – disse, frustrada com a falta de empatia dele.

– Talvez eu devesse mesmo, e amordaçar também – zombou dela, com um sorriso provocativo.

– Tenta, para ver! – Lara cruzou os braços e fechou o rosto.

Samuel riu e remexeu na carroça, de onde tirou uma camisa limpa de uma sacola de pano. Lara virou o rosto para lhe dar privacidade. Depois, ele pegou outro saco e tirou um pedaço de carne salgada e um pão escuro. Também havia um cantil, que estendeu para ela, ao sentar.

– Um gole?

– Sim, obrigada – mas quando provou, percebeu, tarde demais, que era aguardente.      Cuspiu na direção da grama.

– É cachaça? – fez cara de nojo.

– O que pensaste que fosse?

– Água, óbvio!

Ele sacudiu a cabeça e estendeu outro cantil. Depois, alcançou-lhe um pedaço de carne de sol e pão preto:

– Carne e pão, antes que cuspas também – debochou.

Ela fez uma careta de desdém e mordeu o pão. Não gostou, mas a fome era grande. Comeram em silêncio e, depois, Samuel deitou-se. Colocou as mãos atrás da cabeça e ficou olhando o céu, por um tempo. À luz da fogueira, percebeu que ele havia limpado todo o sangue que antes manchava o rosto e as mãos. Imaginou se ele estaria machucado, mas não parecia. Lara deitou-se também e encolheu as pernas sob o pala. A noite estrelada estava muito gelada e, embora o fogo ajudasse, não era suficiente, e ela ainda sentia frio.

– É o céu mais bonito que já vi – ela disse, admirando o infinito acima deles.

– Está uma bela noite, mesmo.

– Incrível como fica diferente, longe das luzes da cidade, tantas estrelas, dá para ver até a poeira entre elas.

– Deveras – a voz dele soou tranquila, embora ela não tenha percebido a ruga de estranhamento em seu rosto.

Lara virou o rosto na direção de Samuel, surpresa pelo vocabulário rebuscado. Ele observava o céu, atento. Depois, olhou para ela e sorriu, levemente. Agora, estava com a cabeça apoiada sobre uma trouxa e com os braços cruzados sobre o peito. A luz da fogueira iluminava seu rosto, trazendo sombras e luzes, e o fogo refletia em seus olhos claros. Era, realmente, um homem muito bonito, ela admirou. Sorriu para ele também e voltou a olhar as estrelas.

– É a primeira vez que acampo – ela disse, estranhando aquela situação.

– Há uma primeira vez para tudo – ele ainda a observava, curioso.

– Sim, mas preferia a cama da pousada.

– Buenas, também prefiro uma cama – ele sorriu, ajeitando melhor a trouxa sob a cabeça.

– Mas tu parece acostumado a isso.

– Sim, e gosto, mas nada como uma cama, não é, Jaguatirica?

– Só não está dormindo em uma porque não quer – ela ergueu os ombros, ainda inconformada com aquilo. – Era só ter voltado à Canela, ao invés de ir buscar ajuda em São Chico.

– Não faria diferença dormir aqui ou embaixo de uma árvore de canela.

– Para ti, talvez não, mas ao menos eu dormiria na minha cama.

– A senhora mora nesse lugar? É uma estância?

– Em Canela? Não, estou a passeio.

E que passeio, pensou frustrada. Na primeira noite na confortável e romântica pousada, o marido apenas virara para o lado, alegando estar enfarado de tanto fondue. Na segunda noite, ela estava perdida no mato com um estranho. Não podia nem imaginar as surpresas que a terceira noite traria.

Samuel não falou mais nada e ela também não. Mas depois de algum tempo, Lara ouviu o farfalhar dele se mexendo. Virou-se para ver o que era, e percebeu que ele se aproximava, puxando o pelego para mais perto dela.

– Chega mais para lá! – reagiu.

– Tu estás com o meu pala, estou com frio – explicou.

– Quer de volta?

– Não, quero dividi-lo.

Lara sentou-se e tirou o pala por sobre a cabeça, orgulhosa. O contraste de temperatura arrepiou a pele aquecida, e ela envolveu os braços com as mãos.

– Acho que este é um ótimo momento para eu te lembrar de que sou casada.

Ao invés de passar o pala pelo pescoço, ele o abriu sobre o corpo, como um cobertor. Em seguida, olhou para Lara e disse:

– Tem espaço para dois aqui – e abriu o braço, chamando-a para deitar-se ao seu lado, mas Lara apenas cruzou os braços, buscando algum calor em si mesma.

Pensou no marido e o coração apertou. Do jeito que estava vestida, apenas com uma camiseta curta, achou que não sobreviveria para encontrá-lo no dia seguinte. A temperatura devia estar perto de dez graus, o frio era demais, e ela sentiu-se atraída para o calor que deveria estar debaixo daquela lã.

Samuel percebeu o medo dela e disse:

– Te acalma, já entendi que és casada. Aliás, desculpa por meus modos mais cedo, isso não vai se repetir – ergueu a ponta do pala e chamou-a para perto.

– Não vou deitar no teu braço – disse séria, de rosto fechado.

– O pala é grande, mas não tanto assim. Se queres te esquentar, vais ter que chegar perto.

– Não tem outra coisa com que eu possa me cobrir?

– Os outros pelegos estão na carroça – ele fez uma expressão para lembrá-la do que eles cobriam.

– Então tu vira para lá e eu viro para cá – determinou.

– Assim não vai dar certo, Jaguatirica.

– Vai ter que dar.

Samuel bufou, virou de costas para ela, e Lara deitou ao seu lado, também de costas. Puxou a ponta do pala sobre si, mas ele mal cobria seus braços, de modo que o ar gelado entrava por baixo de sua blusa curta. Tentou ajeitar-se, ficar mais reta, mas não resolveu. Aproximou-se mais um pouco e sentiu a solidez das costas dele contra as suas, e o tecido aquecido de suas roupas.

– Tu estás puxando o pala – ele reclamou.

– Solta um pouco – ela fez pressão e sentiu que a lã deslizava sobre seu corpo.

– Agora tu me destapaste! Não vai dar! – irritou-se. – Dona Lara, já disse que vou te respeitar, mas assim não vamos conseguir dormir – ele virou de barriga para cima e o pala escorregou todo na direção dele. – Vem, deita – ordenou.

– Não tenho o costume de dormir com homens estranhos no meio do mato – defendeu-se.

– Nem eu com mulheres casadas, mas é o que temos – ele estendeu o braço para que ela apoiasse a cabeça.

Lara respirou fundo, ele tinha razão. A noite estava fria demais, e o pala era suficiente para um, não para dois. Ao menos não para dois dormindo separados. Cedeu, enfim, deitando a cabeça sobre seu peito, que cheirava a suor, com um toque leve de sabão da camisa limpa. Ela colocou a mão debaixo do rosto, como uma última barreira entre eles. O braço dele pousou sobre sua cintura e os corpos encaixaram, facilmente, um ao outro. Ela percebeu, então, que era muito confortável ali, agradável até. Engoliu em seco e lembrou-se do marido, novamente. Meu Deus, o Júlio nunca pode saber disso – pensou.

Sentindo a tensão de Lara e sua respiração forte, nervosa, Samuel falou:

– Pode dormir, juro que não vou mais te forçar a nada – mas ergueu o queixo dela, para que seus olhos se encontrassem – a menos que me peças, Jaguatirica – sorriu.

– Não conta com isso – ela respondeu, incomodada, embora constatasse que nunca vira um sorriso mais lindo na vida.

O calor de Samuel, da lã e do fogo, o movimento suave da respiração dele e o silêncio ao redor deixaram-na sonolenta. A lenha crepitava suavemente na fogueira diante deles e enchia o ar com fagulhas incandescentes. Lara sentiu que dormiria logo, depois de toda agitação do dia.

Começou a pensar naquela tarde estranha, com tantos acontecimentos fora do normal. Imaginava o tamanho do desespero do marido com seu sumiço e não conseguia encontrar um sentido para estar com Samuel ali, sem nenhum recurso para pedir socorro. Se tivesse coragem, iria sozinha e no escuro atrás de ajuda, mas depois dos eventos da tarde, esmoreceu. Reviveu cada momento, as palavras dele, cada cena, na sua memória.

Havia alguma coisa muito errada, muito diferente, no jeito das pessoas e naquele lugar. Os trajes, as espadas e pistolas antigas, a falta de estradas pavimentadas e aquele vazio todo. Lara lembrou-se de que Samuel falara em soldados imperiais, mas eles não existiam há mais de cem anos e não haveria motivo para atacarem homens do campo. Aquilo a incomodava demais. Tudo aquilo!

Sentiu como se estivesse em um pesadelo do qual não conseguia acordar, daqueles em que coisas erradas e sem nenhum controle começam a acontecer. Lembrou-se de um sonho que tivera semanas antes. Estava parada diante de uma janela, enrolada em um xale de lã, tricotado à mão, observando uma paisagem campestre, na qual se destacava um curral e uma roda de madeira, que chamou sua atenção. Ela compreendeu que estava em outra época e que o homem sobre a cama não era Júlio.

Então, como no próprio sonho, uma ideia atravessou sua mente. Era uma inquietação, que a deixou totalmente desperta.

– Samuel?

– O que? – perguntou sonolento.

– Por que, exatamente, os soldados imperiais nos atacaram?

– É o que fazem quando veem um inimigo, já te disse.

– E como eles sabiam que vocês eram inimigos?

– Porque eu sou farrapo – ele levou a mão ao lenço vermelho em seu pescoço, acessório que denunciava sua posição política e a causa que apoiava.

Lara ergueu o rosto para ele, de olhos muito perturbados.

– Que dia é hoje?

– Sábado.

– Não, a data.

– Dia 3 de novembro.

– E de que ano?

Ele abaixou o rosto na direção dela e a olhou, sem entender.

– Ano da Graça de 1835, por quê? – respondeu.

Os olhos negros de Lara arregalaram-se, em choque. Ela não estava apenas em um lugar estranho, com pessoas estranhas. Ela estava no tempo errado!

********

Lara sentou-se, num ímpeto. Seus pensamentos eram um misto de desespero e incompreensão. Esqueceu-se totalmente da presença de Samuel ao seu lado, aquele era o menor de seus problemas e, de alguma forma, ele era a âncora que a prendia à realidade. Pensou, por um momento, que iria enlouquecer de tanto pensar, de tanto tentar entender como fora parar ali. Sua mente, sempre acostumada a encontrar soluções, buscava, primeiramente, uma explicação.

Um tipo de fenda no espaço-tempo? – imaginou. Sua cabeça doía, buscando na memória as teorias que tratavam de buracos de minhoca, matéria escura, cordas e buracos negros. “Na Física, nada é considerado impossível, até que seja provado que é.” – lembrou-se de seu professor explicando.

Os cientistas ainda não haviam encontrado uma prova que refutasse ou confirmasse aquela possibilidade, e nem ela, mesmo tendo passado por aquilo, sabia como acontecera. Apesar de ser um assunto que sempre a intrigou, não era seu foco de estudo e nem deveria ser relevante naquele momento, pois havia coisas muito mais sérias no que pensar.

Passou, então, a pensar no quando. Se, algum dia, imaginara voltar no tempo, certamente não seria para aquele tempo, para aquela época, a pior para se estar. Agora ela compreendia melhor Samuel e a luta de antes. Eram realmente inimigos, e ela estava no meio daquilo, perdida e sozinha.

Mas, por quê? Por que com ela? Lembrou-se da família e do marido, que estariam desesperados atrás de uma explicação para o seu desaparecimento. Pelo que lembrava, passara com o trenó para aquele lado da realidade, mas eles não fariam ideia do que acontecera com ela. Haveria um jeito de voltar? E se corresse até o trenó? Ou, talvez, fosse tudo um sonho, um pesadelo, e ela acordaria em casa, segura? Talvez tivesse batido a cabeça e estava em coma, presa naquela realidade? Mas, por mais que buscasse explicações, a verdade brutal, bem diferente de um sonho, era a de que sua vida toda estava a quase dois séculos de distância, 185 anos no futuro, e ela não fazia a menor ideia de como viera parar ali e nem de como poderia voltar para lá.

Por final, deitou-se, e a única coisa que conseguiu fazer foi chorar, encharcando o ombro da camisa de Samuel, até cair no sono.

Acordou com o movimento dele, tentando retirar seu braço debaixo da cabeça dela. A ausência trouxe uma sensação de frio, e ela se encolheu.

– Hora de acordar, dona Lara – ele disse. Depois riu: – Tu estás com uma cara medonha, Jaguatirica.

– Não pior do que me sinto, certamente – falou, enquanto se sentava e tentava organizar os cabelos e as ideias.

– Está doendo a cabeça? Estava mesmo pensando que precisamos de um emplastro para esse teu galo. Vou procurar babosa, tem pão na sacola e... bem, água.

– Samuel? – ele já estava saindo, mas virou-se. – Obrigada por tudo que tu fez por mim, de coração – sentiu que iria chorar novamente, mas controlou-se.

– Não tem de quê – respondeu, tocando com a ponta dos dedos a aba de seu chapéu.

– E... Samuel? – ele virou-se novamente, impaciente – Eu preciso ir ao banheiro.

Ele não se mexeu. Lara revirou os olhos e procurou as palavras certas:

– Urinar e me limpar.

O homem pareceu constrangido, pois riu desajeitado, olhando para baixo e apontando para a direita:

– Tem um córrego, ali. Dá para ouvir o barulho, logo em seguida.

– E é seguro? Quer dizer, não tem onças ali?

– Nunca se sabe, dona Lara. Mas, por precaução, é melhor levar uma arma.

Samuel estendeu a pistola que estava nas costas, presa à guaiaca.

– Não sei usar armas.

– Buenas, então terei de ir contigo.

– Então, vamos logo! Mas não espia! – ela ergueu as mãos, em rendição.

– Por certo que não! – ofendeu-se.

Viver naquelas condições seria pior do que Lara poderia imaginar. A começar por fazer suas necessidades no meio do mato e não ter como escovar os dentes. Já estava há 24 horas sem banho e sentia-se imunda. A água do pequeno córrego era muito gelada, mas ela lavou as mãos e o rosto com coragem, buscando clareza para seus pensamentos. Sentiu que os olhos ardiam de novo, na iminência do choro, e molhou o rosto outra vez, até que a água lavou todas as lágrimas que ela deixou rolar. Então, respirou fundo e esfregou os dentes com o dedo, o melhor que pode. Quanto à sua roupa, suja de sangue, limo e barro, não havia o que fazer, pensou.

Dava graças a Deus por, no dia anterior, ter vestido calça jeans e confortáveis botas, de estilo montaria, mas queria morrer por ter deixado o casaco no carro. Ontem fora um dia quente e realmente atípico em termos de temperatura.

Ontem – pensou – ontem nem existe ainda.

Retornou para onde Samuel estava, a apenas alguns passos, de costas, o suficiente para estar próximo sem tirar-lhe a privacidade. Percebeu que ele também havia se limpado o máximo que pode.

– Vou precisar daquela aguardente – disse ela.

– Cedo assim? – admirou-se.

– Para limpar a boca – respondeu de mau humor, olhando-o de canto de olho.

Retornaram para o pequeno acampamento e depararam-se com um grupo de urubus ao redor da carroça. Ela havia esquecido completamente dos mortos que carregavam. Samuel espantou as aves, fizeram um lanche ligeiro e ele recolheu as coisas.

Os dois sentaram na carroça e, antes de colocá-la para andar, ele rasgou uma folha de babosa que havia encontrado na mata e passou a gosma transparente no machucado de Lara. Ela encolheu-se de dor.

– Shhhh... – fez ele. – Está tudo bem! – Terminou e sorriu para ela – Vamo?

– Samuel – ela interrompeu o ímpeto dele de sacudir as rédeas – preciso te pedir mais um favor.

– Às ordens, dona Lara.

– Tu pode me levar de volta ao local onde me encontrou?

– O que tem lá que te importa tanto?

– Deixei cair um objeto muito importante e preciso buscar – tentou improvisar. Tudo o que queria era ver o trenó para tentar entender o que havia acontecido e se havia alguma forma de retornar.

– Dona Lara, estamos longe de lá e não creio que reconheceria o lugar. Mas a senhora pode pedir ajuda na vila, como te disse ontem, se faz tanta questão.

– Por favor, Samuel – ela tocou em seu braço, com os olhos marejados e tristes. – É realmente importante para mim, e tu é a única pessoa que sabe onde foi.

Samuel afastou os olhos daquele rosto angustiado e respirou fundo, buscando clareza. Mas retornar estava fora de seus planos para aquele dia.

– Sinto muito, mas preciso enterrar os homens e seguir.

– Então eu vou sozinha. É só seguir reto, não é, por aquele carreiro no chão?

Lara desceu e ele não se moveu. Ela caminhou na direção da estrada que usaram no dia anterior e ele apenas acompanhou com os olhos.

– É para lá, né? – apontou na direção do sul.

– Sim – ele disse, tranquilo. – Umas três horas a pé, acredito.

Lara virou o corpo, encheu-se de coragem e saiu caminhando. Três passos adiante, ouviu a voz de Samuel:

– Só um aviso, Jaguatirica – Lara parou de andar e olhou na direção dele – quando passares pelos corpos dos imperiais, cuida com as feras, elas devem estar de barriga cheia, mas nunca se sabe.

A lembrança dos corpos destroçados pela luta voltou, e ela adicionou onças, pumas e lobos, por conta própria. Fixou os olhos no chão, sem coragem de seguir. Seu corpo queria correr, voltar e procurar as marcas do acidente, buscar um jeito, talvez um portal, para retornar à sua vida. Mas enquanto seu coração lhe pedia isso, a mente dizia que não havia nada lá. O conflito entre corpo, mente e coração fez as lágrimas dela escorrerem. Lara encolheu-se, abraçando as pernas, sem saber o que fazer de sua vida.

Samuel desceu da carroça e caminhou até ela. Ergueu-a pelos ombros e disse:

– Não sei o que esperas encontrar lá de tão importante, mas te garanto que não havia nada, nem ninguém mais, eu olhei.

– Tem certeza? Nada diferente ou fora do lugar?

– A única coisa fora de lugar era a senhora, desmaiada no chão. Mais nada.

– Talvez tu não soubesse o que procurar… – ela tinha certeza de que um pequeno trenó verde e amassado estava em algum lugar, no meio da vegetação.

– Dona Lara, eu realmente preciso seguir. Tu vens ou fica? – disse, já incomodado com aquele assunto.

– Por favor, Samuel, vai comigo – implorou.

– Desculpa, dona Lara, mas não vou perder tempo com isso, já te expliquei meus motivos. Na vila a senhora pede ajuda.

– Se tu não quer me ajudar, quem mais poderia? – disse, desanimada.

– Consigo alguém para te acompanhar, prometo. Mas agora, vamo.

Lara olhou na direção de onde queria realmente ir e suspirou. Sem ter outra opção, subiu na carroça e partiram.

********

Andaram poucos minutos, e a estrada abriu-se em um vasto campo, de vegetação baixa e dura; diversas pedras basálticas apareciam soltas, como migalhas de um bolo, espalhadas sobre a grama. De tamanhos variados, as cores alteravam em diversos matizes de cinza. A cobertura verde era de um tom de esmeralda e apresentava um movimento que lembrava desenhos infantis rabiscados em uma folha. O dia, que acabava de amanhecer, estava claro, e ainda mais gelado por causa do vento. Lara encolheu-se debaixo do pala, os braços nus totalmente arrepiados.

Enquanto fingia prestar atenção na paisagem, Lara observava, de canto de olho,      Samuel, que estava concentrado no caminho. Que ele era muito bonito ela já sabia, mas agora percebia os detalhes, os braços fortes, as mãos grandes e os dedos longos. Não era uma beleza delicada, era viril, de linhas retas e nariz perfeito. A boca era bem desenhada, o lábio inferior um pouco mais cheio do que o de cima, e a barba dourada ainda era curta, lembrando a moldura de uma obra de arte. Sua aparência era, como ele mesmo, uma mistura de força e brandura. Considerando o que ela sempre vira, em gravuras, dos gaúchos daquela época, ele era muito diferente.

Tentou lembrar-se do que sabia sobre aquele tempo, das pessoas, dos costumes. Embora ela e Samuel vivessem na mesma terra, o Rio Grande do Sul, tudo ali era muito diferente. Ela sabia o que aprendera nas aulas de História e nos poucos anos em que participara de um Centro de Tradições Gaúchas que cultivava, justamente, as raízes e o modo de vida dos gaúchos daquele tempo, que ela sempre admirou. Se nunca conseguisse voltar para sua vida, ao menos tinha alguma ideia do que fazer e talvez não estivesse tão despreparada assim. Com isso, sentiu uma leve esperança.

Precisava concentrar-se em interpretar um personagem e imaginar como era viver entre os gaúchos de antigamente. Isso se conseguisse raciocinar com clareza, pois havia o peso dos séculos sobre seus ombros e ela sentia uma apatia fora do comum, uma vontade constante de chorar, um desespero e certa ardência pela noite mal dormida.

Estava perdida em sua angústia, quando Samuel falou:

– Minha vez de entender algumas coisas. O que, afinal, a senhora fazia sozinha na estrada?

Lara sentiu um grande pavor, sem saber o que dizer. Não havia desenvolvido uma história para si mesma ainda e, após pensar um pouco, chegou à conclusão de que a amnésia seria sua melhor desculpa, por enquanto.

– Só sei que sofri um acidente, não me lembro de mais nada.

– A senhora esqueceu as coisas? Mas ontem queria voltar.

– Sim, eu quero voltar para ver se me lembro das coisas – ela olhou para o lado oposto ao dele, tentando esconder a mentira.

– E o que tem lá que poderia ajudar? Já te disse que não havia nada.

– É uma coisa minha, algo que eu preciso verificar.

Ele ficou em silêncio por um tempo, observando a estrada. Depois, retomou:

– Mas a senhora disse que é casada... do que mais te lembras?

– Sei que sou casada, meu marido se chama Júlio. Ou se chamava… – girou a aliança no dedo, melancólica, sem saber como classificar aquilo.

– E onde moras, tua família? – ele virou o rosto fechado para ela.

– Não consigo me lembrar – ela morava na capital, Porto Alegre, mas isso não a ajudaria em nada agora.

– Hum... – ele pareceu aceitar – Mas e essas roupas? Nunca vi uma mulher usando calças, e ainda mais tão apertadas, que marcam cada curva das pernas e traseiro. E ainda tem essa abertura na frente, muito diferente. E os braços e a barriga de fora? Como teu marido te deixa andar assim por aí?

Lara entendeu que aquela era uma questão muito delicada. A sociedade daquele tempo possuía conceitos muito fortes sobre a decência e o comportamento feminino. Ela não tinha nenhuma explicação para suas roupas modernas e, certamente, indecentes para os padrões daquela época.

– Bom, meu marido é um homem... de pensamento adiantado – conseguiu elaborar.

– Adiantado? – ele soltou um riso debochado. – Não consigo te entender, dona Lara. Nada do que falas faz muito sentido para mim. E como tu te lembras de algumas coisas e de outras não? – ele puxou as rédeas e parou a carroça. – Sinto como se estivesses me escondendo algo.

Lara sentiu que seus olhos se arregalaram, com medo, quando ele a encarou. Por uns segundos, ficou olhando, compenetrado, para seu rosto, de semblante fechado. Depois acrescentou:

– Vou deixar assim, por enquanto. Se quiseres contar a verdade, estarei pronto para ouvir. Mas sabes, dona Lara, também posso ser um homem de ideias avançadas – virou para a frente e estalou as rédeas no lombo dos cavalos.

Lara sentiu que o pouco calor que ainda existia em seu corpo subiu para a face. Sua mentira havia sido descoberta em menos de cinco minutos, não seria tão fácil como pensava. Ele podia ser um homem de mais de um século e meio atrás, mas não era bobo, ao contrário, parecia inteligente. Lara imaginou que, talvez, ele entendesse o fato de ela ser de outro tempo, do futuro... Mas teve medo. Ele também poderia pensar que ela fosse louca e colocá-la em um hospital, ou onde quer que os loucos fossem deixados naquele tempo.

Se, ao menos, ele a levasse até lá, talvez, vendo o trenó, aceitasse a verdade, mas ainda assim, seria um risco. Ficou pensando no evento que vivenciou, buscando explicações lógicas, mas tudo o que conseguia concluir é que estava presa naquele tempo. Havia presenciado um fenômeno estranho e não repetível, uma forte gravidade a arrastara, com a força de um corpo celeste atraído para a Terra. Talvez a causa de seu transporte não tivesse sido o trenó, mas algo muito estranho e único, concluiu desanimada. Afinal, nunca se ouvira falar de pessoas que tivessem desaparecido nos trilhos daquele brinquedo. Se houvesse um portal, ou se fosse algo comum, algumas histórias seriam contadas a respeito.

Decidiu, então, que ele merecia, ao menos, um pouco da verdade, por tudo o que havia feito por ela:

– Samuel, tu tem cuidado de mim e sem motivo algum.

– Não tem de quê – respondeu, sério, sem tirar os olhos da estrada.

– E tem razão, não falei toda a verdade, não exatamente porque não me lembro, mas porque eu não tenho certeza do que me aconteceu e nem mesmo se poderia te explicar e se tu entenderia – ele olhou, ofendido – Não fica aborrecido comigo, nem eu mesma entendo.

– Talvez pudesse, ao menos, tentar me explicar.

– Talvez – ela concordou – Mas ainda não, preciso de um tempo para processar tudo, é muito recente.

– Processar quem? É algo muito sério, então? – ele desconfiou.

– Sério? Sim, mas nada imoral ou ilegal. Só não consigo te explicar mais do que isso, ainda.

– Dona Lara, és minha responsabilidade, a partir do momento em que te vi machucada debaixo daquela árvore, e só terei cumprido meu dever quando te deixar em segurança. Se preferes não contar toda a verdade, não insistirei, mas entendas que não há nada que não possas me dizer.

A ideia de ser “deixada em segurança” em algum lugar assustou Lara. A realidade de que não havia para onde ir, não havia nada, nem ninguém para ela, naquela época, foi como um soco no estômago, que lhe tirou o ar, por um momento. Estava sozinha no mundo, presa naquele tempo, sem ter como retornar. Não sabia, nem mesmo, de algum antepassado que vivera naquela época. Era apenas ela. Uma forte sensação de desespero, abandono e solidão a envolveu. Levou as mãos ao rosto e recomeçou a chorar.

De certa forma, era como se a mente de Lara compreendesse, aos poucos, essa nova realidade. Talvez porque fosse humanamente impossível pensar em todas as questões ao mesmo tempo. E, talvez, essa fosse a causa da dor de cabeça que sentia, impossibilitando a clareza das ideias.

Ele não falou nada, embora o choro dela o estivesse perturbando desde a noite anterior. Apenas aguardou que a avalanche de emoções passasse.

O solavanco da parada brusca da carroça trouxe-a de volta à realidade. Percebeu que Samuel levantou, levou a mão às costas e puxou a garrucha. Então, olhou para frente e viu uma lança fincada no chão, a poucos passos dos cavalos.

– Bugres – ele disse, como se aquilo explicasse alguma coisa.

Não havia nada que Lara pudesse identificar como uma ameaça no vasto campo aberto de coxilhas e pedras. Ali perto havia um capão de árvores e, saindo de trás delas, ela viu figuras cavalgando a toda velocidade.

– Índios – ela identificou quando se aproximaram e lembrou-se de que alguns podiam ser bem selvagens naquele tempo.

– Fica atrás de mim e bem quieta – ele ordenou.

Uma flecha voou na direção deles e acertou a parte de trás da carroça, fincando-se em um dos corpos cobertos por pelegos. Lara pensou que Samuel fosse atirar, mas ele permaneceu imóvel.

– Eles vão nos matar? – ela cochichou apavorada.

– Se quisessem nos matar, já estaríamos mortos – observou.

O grupo de indígenas aproximou-se e cercou a carroça. Falavam alto e gritavam ordens, apontando um arsenal variado de armas, boleadeiras, machados, lanças e flechas contra os dois. Lara encolheu-se dentro do pala, mas Samuel não mexeu um músculo. Apontava sua pistola na direção do que parecia ser o líder do bando.

Dois índios apearam de seus cavalos e, enquanto um ia na direção da lança no chão, o outro remexia o conteúdo da carroça, soltando uma expressão de assombro quando viu os mortos. Gritou para o líder, que se aproximou. Trocaram algumas palavras e dirigiram-se a outro indivíduo.

Para espanto de Lara, ele falou em português:

– Por que carregas os mortos?

– Para lhes dar um enterro digno, em solo sagrado.

O índio traduziu, e o chefe falou novamente. Ele repetiu:

– Nós levaremos o cavalo, os mantimentos e o ouro. Deixaremos a carroça.

Lara sentiu que os músculos de Samuel tensionaram. Por um momento, pensou que ele abriria fogo contra o líder dos índios. Mas ele não se mexeu, nem enquanto eles reviravam a carroça, levavam todos os sacos com comida, os utensílios de cozinha, alguns pelegos, a espada e desamarravam o cavalo.

– Ouro – disse o índio. Samuel levou a mão livre à guaiaca, devagar, e atirou ao chão um pequeno saco, fazendo tilintar o som de muitas moedas.

– Arma! – disse o índio.

– Não – a voz de Samuel saiu num ronco entre os dentes.

Os índios remexeram-se nos lombos nus de seus cavalos. Um deles tomou a dianteira, como que instigado pelo tom de Samuel. O líder soltou um grunhido alto, fazendo-o parar. Samuel parecia uma estátua, de tão imóvel e firme.

Os índios viraram seus cavalos na direção de onde vieram e distanciaram-se a trote rápido, seguidos pelo líder. Sumiram por de trás do capão, assim como haviam aparecido. Só então, Samuel relaxou. Deixou-se cair no banco da carroça e levou a mão à guaiaca.

– Por que tu não te defendeu? Lara perguntou, confusa.

– Não havia chance. Eles me matariam e tu serias a recompensa, antes de te matarem também.

Samuel açoitou os cavalos e partiram em silêncio. Talvez pela tensão que acabaram de passar, pela noite mal dormida, pelo imenso cansaço mental que sentia e pelo gingar da carroça, Lara sentiu uma sonolência forte apoderar-se dela. Tentou manter-se alerta, era necessário, mas o sono não era fácil de evitar, os olhos ardiam pelo choro e a cabeça voltava a doer. Sem perceber, adormeceu, e sua cabeça pendeu sobre o braço de Samuel.

Sonhou que estava com o marido em um belvedere, observando a vastidão de árvores e montanhas à frente. No fundo do vale, um rio caudaloso abria caminho entre a vegetação. De repente, a cerca que protegia seu corpo sumiu e ela viu-se caindo na direção da água e das árvores, lá embaixo. Acordou com um pulo no banco.

Olhou ao redor e viu que chegavam a uma pequena cidade, com casas de madeira acinzentada e chaminés fumegantes. Estavam no alto de uma coxilha, e tudo o que podia ser visto era a vila e sua igreja. Lara lembrou-se das palavras de Samuel, de que a deixaria em segurança e alguém a ajudaria a retornar.

– Samuel? Eu não tenho para onde ir.

– Como não? Teu marido deve estar procurando por ti, tu vais encontrá-lo, assim que eu terminar o que preciso fazer aqui tu vais até onde precisas...

– Ninguém aqui pode me ajudar – ela o interrompeu, séria – ninguém está me procurando, nem meu marido. Sou apenas eu no mundo.

– Sempre há alguém no mundo por nós – ele estranhou.

– Não por mim. Não sei a quem recorrer ou pedir ajuda.

Ele ficou em silêncio por algum tempo, pensando. Depois disse:

– Estás errada, dona Lara. Tu tens a mim.

CAPÍTULO II

Samuel sentia a proximidade de Lara, o seu desamparo, e tentava entender quem era aquela mulher.

Não há ninguém por mim, havia dito. Ele não compreendia o que aquilo significava. Todo mundo tem alguém por si, ela mesma falara do marido diversas vezes durante a viagem. A única certeza que ele tinha é de que precisava protegê-la. Foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu quando a viu desmaiada na estrada, e seria o último que teria até que ela estivesse em segurança.

No dia anterior, enquanto subiam a serra, os homens falavam animados sobre as filhas dos Baums, família alemã que havia lhes dado pouso há dois dias. Eram tão loiras, de cabelos lisos e olhos claros, corpos cheios e faces sempre coradas pelo esforço do trabalho na terra. Os adjetivos, nem todos elegantes, corriam de boca em boca, mas Samuel não acompanhava a animação dos seus contratados.

Ia absorto em suas próprias lembranças, como vinha fazendo todos os dias. Sentia um vazio no peito, como se estivesse desligado das emoções, agindo apenas de acordo com o que esperavam dele. Havia se acostumado àquilo nos últimos anos, não era difícil. Felicidade parecia uma palavra da qual ele nem conhecia mais o significado, havia desistido dela há muito tempo.

Então, ouviram um estrondo, que lembrava um trovão baixo, ao longe. Olharam ao redor, buscando as nuvens que trariam chuva, mas o céu estava azul até onde conseguiam ver, através da mata densa. Mal andaram alguns minutos e ele viu, no chão, próximo à margem da estrada, um corpo.

Fez alto, erguendo o braço, sinalizando a parada do grupo. Apeou, curioso, já de garrucha na mão, para qualquer evento. Olhou ao redor e a mata estava no silêncio de sempre, cortado apenas pelos sons dos pássaros e insetos. Aproximou-se do corpo e percebeu que era uma mulher, por suas curvas bem definidas. Livrou o rosto dela de todos os fios que o cobriam e sentiu um estranhamento, uma impressão de conhecê-la, mas não lembrava de onde.

– Deixa ela aí – disse-lhe João – Pode ser uma armadilha.

Mas ele já não conseguia mais tirar os olhos daquele corpo estirado, com uma pancada na cabeça, arranhado, daquela mulher totalmente indefesa. Vasculhou a mata ao redor buscando alguma explicação para o seu surgimento no meio do nada, ou talvez outras pessoas, mas não havia nada por perto, e os únicos rastros eram os dela.

– Vou levá-la comigo – falou, enquanto arrumava espaço na carroça que João guiava, carregada com as provisões da viagem.

Sem muito esforço, ergueu a mulher do chão e a acomodou sobre um pelego de ovelha, com a ajuda irritada do outro.

– Ela vai nos trazer problemas, patrão – avisou João.

– Me responsabilizo por ela.

Entregou as rédeas de seu cavalo ao contratado Nico, e subiu na carroça, ajeitando-se ao lado da mulher. Deu duas batidas na lateral da carroça e disse:

– Vamo!

João sacudiu a cabeça, contrariado. Mas como era apenas um contratado, não ia indispor-se por causa de uma china, pensou. Assobiou e sacudiu as rédeas, fazendo a parelha de cavalos andar.

Samuel não conseguia tirar os olhos daquela mulher. O rosto era delicado, a pele muito clara, e a boca, de lábios bem delineados e cheios, parecia mais rosada do que o normal. O cabelo estava solto e era longo, levemente ondulado, farto e castanho, com algumas mechas mais douradas entre os fios. Estava bagunçado, e algumas folhas e pequenos galhos prendiam-se a ele. Samuel retirou os que conseguiu e continuou a observá-la.

As roupas chamavam atenção, pareciam de homem, embora ele nunca tivesse visto nada semelhante. A parte de cima não tinha mangas, nem rendas, nenhum bordado. Era marrom e curta, lisa, deixando a pele da cintura e dos quadris à mostra. O contorno dos seios era volumoso e nítido, apesar do corpo magro, e ele passou um tempo hipnotizado, observando o movimento suave que a respiração dela fazia.

Depois observou as pernas, a silhueta arredondada nos quadris e a calça justa, que descia, até se perder de vista, dentro das botas de couro marrom, fivela dourada e cano longo. A mulher mexeu-se e ele reparou no seu umbigo à mostra, na pele clara de sua cintura bem definida. Um calor forte subiu pelo meio das suas pernas, seu membro latejou.

Decidiu cobri-la com seu pala, para não ver aquelas obscenidades, mas também para que não chamasse atenção dos homens que vinham atrás, cavalgando. Ajeitou-se o melhor que pôde e passou a observar o estreito caminho à frente.

Quando, enfim, ela começou a gemer e abrir os olhos, ele viu que eram escuros, e os cílios muito compridos, lembrando um leque de plumas negras. Percebeu que nunca vira uma mulher mais bonita na vida. A voz melodiosa completava o conjunto da perdição que ela lhe parecia e reforçava a forte impressão de que já a conhecia.

Na emboscada que se seguiu, o maior medo que sentiu foi de que ela se machucasse. Usou seu corpo para protegê-la o quanto pode, mas percebeu que isso os deixava vulneráveis. Não podiam ser pegos desarmados e indefesos. A proximidade de seus corpos e de suas bocas e o medo nos olhos da mulher o atordoaram por alguns segundos. Como a desejava, sentiu! Usou toda aquela ânsia para sair da carroça e enfrentar seus inimigos.

A luta foi difícil, os homens que ele contratara não eram soldados, apenas conheciam bem o percurso que fariam. Sabiam alguma coisa de empunhar uma espada ou atirar, porém mais para enfrentar algum guasca ou índio vadio do que soldados imperiais.

Nico tinha acertado um soldado, mas logo deixou-se matar por uma espada. Um tal de Joca foi o primeiro a levar um tiro na cara e morrer, caindo ao lado da carroça. Pedro levou um tiro no peito e ficou caído sobre o cavalo, que disparou morro abaixo. João era mais hábil, conseguiu mandar para o inferno três imperiais, mas acabou empalado por outro. Sobraram Samuel e o capataz que o acompanhava. Eram os dois contra três soldados.

Os soldados imperiais não tinham mais munição e partiram para a luta corporal. Samuel usava uma espada e a adaga que ganhara ao completar treze anos. Lutava com as duas mãos, como aprendeu com seu pai, que aprendeu com o pai dele.

Quando o capataz caiu ao seu lado, Samuel viu-se sozinho com dois soldados.

– Agora tu vais para casa, gaúcho dos infernos – gritou um deles.

Samuel aparou o golpe do soldado com a espada, trouxe-o para junto de si e enfiou a adaga no estômago de seu oponente. Jogou-o para trás em tempo de defender-se de outro golpe. Faltava apenas um soldado. Era ele ou Samuel.

– Morre, farrapo desgraçado – disse o soldado.

Eles lutaram por alguns minutos. Samuel já estava coberto de sangue e não sabia se algum era dele. Tinha consciência de que não sentiria dor, até que tudo terminasse. Lembrou-se da mulher na carroça e pensou que não podia deixá-la sozinha, precisava sobreviver por ela também.

Juntou todas as forças que restavam e gritou, avançando sobre o inimigo com todo o peso de seu braço. O soldado assustou-se e tropeçou. Ainda tentou acertar Samuel na perna, mas ele esquivou-se e enterrou a espada na barriga do inimigo. Rasgou-a de fora a fora, e suas tripas saltaram do abdômen.

Não esperou para ver se o imperialista estava morto. Sabia que não tinha chance. Pensou que era apenas uma questão de o Diabo decidir se o levaria rapidamente ou se o deixaria sofrendo.

Voltou correndo para a carroça e a encontrou vazia. Pegou a arma que ela deixara para trás, o pala e buscou os rastros, preocupado. Logo encontrou pegadas ensanguentadas que levavam para dentro da mata fechada. Seguir a trilha de galhos quebrados e marcas no chão não foi nada difícil e ele nem precisou caminhar muito para ouvir os sons que ela fazia.

Encontrou-a sentada numa pedra, rosto coberto, barulho de choro, indefesa. Samuel percebeu, com o canto do olho, um movimento que lhe chamou a atenção, fazendo os pelos de sua nuca arrepiar. Com calma, aproximou-se de Lara, mas quando ela se mexeu, o animal nas sombras antecipou o ataque. Samuel teve tempo apenas de falar, protegê-la e atirar.

A proximidade de seus corpos despertou, novamente, o desejo que sentia. Mas então, ela soltou-se de seu abraço, desafiou-o e falou alto, como se fosse muito perigosa, como se pudesse enfrentá-lo. Além disso, falava coisas sem sentido.

Uma vontade maior do que ele obstruiu seus pensamentos e só o que queria era seu corpo junto ao dela novamente. Agarrou-a pela cintura, beijou-a na boca, como se ela sempre fosse dele e lhe pertencesse, e teria ido até o fim, se Lara não o tirasse daquele estado, com uma mordida nos lábios.

Ele sentiu raiva, dor, vergonha de si mesmo, de seu descontrole, e a única palavra que encontrou para xingá-la foi o nome do bicho que acabara de matar, Jaguatirica! E assim que falou, sentiu que era exatamente o que ela era: uma magricela pensando que era uma onça, pouco mais do que uma gatinha assustada e achando-se muito feroz. Ela teimava e o enfrentava, mas ele não podia deixá-la sozinha ali.

A discussão que se seguiu deixou as coisas mais confusas para ele. Ela falava palavras sem sentido e as perguntas que fazia não permitiam que ele entendesse como ela pensava. Só tinha certeza de três coisas, que prometeu para si mesmo durante a viagem. Ele a manteria em segurança e a protegeria com a própria vida, se fosse necessário. Sentia a obrigação de levá-la até um lugar ou até o marido, sem mais nenhum arranhão. Jamais deixaria a luxúria tomar conta de si novamente. Era um homem honrado, podia controlar-se na presença de uma mulher, mesmo que ela estivesse com trajes tão indecentes e despertasse todo aquele desejo dolorido nele. E iria esforçar-se, ao máximo, para entendê-la. Essa era, de longe, a decisão mais difícil que tomara, porque ela não fazia sentido nenhum para ele. Talvez fosse por causa da pancada na cabeça, mas ela parecia atordoada e confusa. Mas, de qualquer forma, ele tentaria aceitar.

A última noite havia sido a mais difícil de sua vida. Senti-la ao seu lado, com seus corpos se aquecendo no calor um do outro, fora uma tortura. Lara estava agitada, remexeu-se, fez perguntas sem sentido, chorou muito, de soluçar. Custou a dormir e ele também, sem entender o que a desesperava daquele jeito.

Samuel tinha consciência da pele nua na cintura dela, do umbigo e do suave arredondado de seus quadris, onde a mão dele havia encontrado repouso. Então, ela se mexeu, inconsciente, e colocou uma perna e um braço por cima do seu corpo, como se fosse um hábito. O volume dos seios dela roçou a lateral do seu corpo, e Samuel sentiu que um influxo de sangue concentrou-se em seu membro enrijecido, fazendo os testículos doerem pela urgência que lhes era negada.

A cabeça, de cabelos cor de mel escuro, inclinou-se para trás, deixando os lábios na direção de seu beijo. Ele pensou em como seria ceder, entregar-se àquela vontade desesperadora e dolorida. Nunca havia desejado tanto uma mulher na sua vida. Muito menos a sua.

Respirou fundo e tentou afastar os pensamentos dali. Pensou na missão que precisava cumprir, na sua casa e nas pessoas que amava e aguardavam por ele, nos eventos políticos que se avizinhavam… Mas nada conseguiu aplacar o fogo que sentia entre as pernas. Com a mão livre, tentou sossegar seu pênis, que, àquela altura, parecia ter vida própria. Remexeu as pernas, numa agonia sem fim.

– Senhor, afasta de mim essa tentação – rezou, repetidamente, e fez o sinal da cruz, tentando controlar-se e dormir.

Acabou conseguindo, por algum tempo, mas então ela se mexeu, virando de costas para ele e levando o pala junto, e ele despertou de vez. Com receio de acordá-la, ficou imóvel, sentindo o cheiro de flores que vinha de seus cabelos e a sensação boa que era tê-la nos braços, aquecida e aconchegada.

Samuel percebeu que havia algo mais, além de apenas desejo. Era assustador e forte, fazia seu coração bater apertado, como se sentisse falta dela a vida toda. Porém, era algo que ele deveria domar, pois logo a deixaria com o marido, e ela voltaria à sua vida, de modo que sentir aquela emoção só o faria sofrer. Não compreendia de onde vinha todo aquele sentimento por uma estranha, mas sentia que estaria para sempre ligado à lembrança dela, como um condenado longe da luz.

O sol já coloria o horizonte, e ele decidiu que era hora de levantar. Um mate cairia bem, e depois chegariam à Vila de São Francisco, onde decidiu que a deixaria. Com cuidado, retirou o braço debaixo da cabeça de Lara, mas ela acordou, encolheu-se de frio e se enrolou no pala.

– Preciso terminar com isso logo – pensou, ou não teria forças para deixá-la. Chamou-a e disse que era hora de irem. O mate ficaria para depois.

Lara reclamou, mas sentou-se, rosto amassado, desorientada, e ele achou graça. Sabia que ela não teria coragem de retornar sozinha até o local onde a encontrara, mas ficou de coração partido por se negar a ajudá-la. Tinha certeza de que eram as últimas horas que teria com ela e precisava, ao menos, entender algumas coisas. No entanto, percebeu que Lara mentia ou escondia algo. Nada ilegal ou imoral, havia prometido. Suas respostas eram vagas e evasivas, e talvez aquela confusão fosse mesmo da pancada, mas ele sentia que havia algo a mais. E ainda havia aquele choro todo, que apertava seu coração e o impelia a pegá-la no colo e consolá-la.

E agora, ela lhe dizia que era sozinha. Ninguém me procura. Não tenho ninguém.

Mas e o tal marido, que ele invejava e já odiava com todas as forças? Houve um momento, durante a longa noite, em que se imaginou duelando por ela, talvez matasse aquele homem só para tê-la para si. E agora ele não estava ali? A angústia na voz de Lara, porém, fazia com que ele percebesse que era verdade. Ela falava como se não fosse nada, ninguém. Como se não valesse ser procurada. Mas estava enganada. Para ele, ela já era tudo.

********

Entraram na pequena Vila de São Francisco de Paula e Samuel parou no primeiro bolicho que encontrou. Desceu da carroça, prendeu os cavalos a uma araucária e disse para Lara:

– Preciso descobrir onde mora uma pessoa. Espera aqui, não vou me demorar. Mas deixa os braços dentro do pala, prende o cabelo e põe meu chapéu. Se alguém passar, vai pensar que és apenas um guri.

Lara obedeceu e ele sorriu. Ela conseguia ficar linda mesmo assim. Embora percebesse a tristeza dela, não conseguia deixar de admirá-la. Voltou a concentrar-se em sua missão e entrou no bolicho, quase vazio àquela hora da manhã. Viu um jovem trabalhando atrás do balcão e dirigiu-se a ele:

– Buenas! – disse – Procuro por Zeca Fagundes. Sabes me dizer para que banda fica a fazenda dele ou se posso encontrá-lo por aqui?

– A fazenda de Sant’Ana fica na direção de Vacaria, cerca de uma hora e meia de a pé – respondeu o rapaz.

Samuel deu um forte tapa na madeira, em agradecimento, e já se voltava para sair quando ouviu Lara gritar seu nome. Em três passadas já estava na rua, de arma em punho, e avistou um homem prendendo Lara pelo pescoço.

– Larga ela! – gritou.

– Ela? – falou o homem e com a mão livre apertou os peitos de Lara. – Ahh! Não é um piá de bosta, é uma china! – Samuel fez uma cara de ódio e seu braço tremeu.

A surpresa fez o homem afrouxar o braço em torno do pescoço de Lara, e foi o suficiente para ela lhe dar uma cotovelada no estômago, girar sobre os calcanhares e acertar uma joelhada entre suas pernas. O homem bufou, gemeu e encolheu-se, enquanto Lara corria para esconder-se atrás de Samuel.

– Some daqui, desgraçado! – gritou Samuel.

– E os mortos na carroça? – o homem ainda tentou provocar.

– Não são assunto teu – Samuel disparou a arma no chão, perto dos pés dele. – O próximo vai ser na testa!

O homem olhou para os dois com raiva e depois para o ajuntamento de pessoas que veio assistir ao entrevero. Cuspiu no chão e saiu mancando, com os testículos doloridos.

– O que aconteceu? – perguntou Samuel, já puxando os cavalos e ajudando Lara a subir na carroça.

– Ele se aproximou e perguntou se meu pai vendia pelegos. Eu respondi que não, mas ele foi mexer na traseira da carroça. Soltou um som de susto e perguntou o que eram aqueles corpos. – Não te interessa, respondi. – O homem ficou furioso e me puxou pelo pala, dizendo que ia me ensinar os modos que meu pai não havia ensinado. Então, gritei por ti.

Samuel ouviu toda a história e sorriu, com o canto da boca:

– Uma hora dessas tens que me contar onde aprendeste a lutar.

– Foi há muito tempo – ela disse apenas.

– Sei – disse. Ela olhou para ele e deu de ombros. – Mais um segredo para a conta – pensou. Se tivessem tempo, faria com que ela contasse todos.

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