
Capítulos Iniciais
O enigma do pergaminho sagrado
Prólogo
Roma: 54 a 68 d.C.
— Hélio[1], não posso deixá-lo aqui. Com certeza será executado, mesmo que acreditem que é cidadão romano.
— Hermes, neste pergaminho estão os mais valiosos presentes dos Guardiões. Cuide bem dele e leve-o a seu destino. Os seguidores de Oizus[2]estão se multiplicando dia a dia. Não podemos permitir que sua influência continue a prejudicar a humanidade. É nosso dever protegê-lo. Rápido, os soldados se aproximam.
— Chegou a hora de Hélio pagar por sua desobediência. Daqui a algumas horas será executado em praça pública, para servir de exemplo a outros de sua laia. Hahaha.
As risadas se confundiram com o som das lâminas das espadas batidas nos escudos, numa comemoração antecipada do momento em que Hélio seria decapitado.
— Hermes, saia já daí! O prisioneiro infiel não pode mais estar com ninguém. Saia, antes que nosso Imperador resolva usar sua cabeça também para fazer um par com a de seu amiguinho aí da cela.
— Venha comigo, meu amigo, daremos um jeito de escapar. Sei que você já fez muitos simpatizantes entre os próprios soldados do Imperador. Talvez possam facilitar nossa fuga.
— Meu fiel mensageiro, nossa parceria termina aqui. Confio em você para que faça o pergaminho chegar às mãos certas: aquelas que poderão abrir os Selos da Comunhão e dar uma esperança à raça humana. Agora vá, ande logo. Já perdemos muito tempo. Os Guardiões o guiarão em espírito.
Emissário de confiança de Hélio, Hermes o acompanhara em suas andanças pelo mundo para repassar os ensinamentos dos Guardiões. Quando foi preso, pela primeira vez, em Roma, estivera ao seu lado e, agora, de novo, sempre pronto a servir-lhe para a proteção do Pergaminho Sagrado. Não podia acreditar que o fim chegaria dessa forma para o seu amigo. Infelizmente, Hélio traíra a confiança de Nero, o imperador mais implacável que conhecera e, por isso, agora, não haveria uma segunda chance.
Como bom emissário, Hermes iria cumprir a última vontade de seu mentor. Que assim fosse. Apertaram as mãos. O olhar de Hélio era sereno: estava preparado para deixar sua nova forma humana ser sacrificada. Hermes, então, envolveu o pergaminho num manto de linho e guardou-o em sua bolsa de viagem:
— Guardas, estou pronto! Abram a porta!
___________________
[1] Hélio, deus grego que representava o Sol, assume identidade humana para proteger o Pergaminho dos Sete Selos através dos tempos. Nesta história, a autora faz uma livre adaptação dos deuses da mitologia greco-romana e de personagens históricos.
[2] Oizus “ é uma deusa (...) primordial da miséria e da tristeza. (Fonte: pt.m.wikipedia.org/wiki/Oizus)
___________________
Um dos soldados a abriu e olhou com desconfiança para ele. Em seguida, desviou o olhar para a bolsa a tiracolo:
— Abra essa bolsa. Quero ver o que esconde aí!
— Como cidadão romano, tenho liberdade de enviar correspondências a meus amigos e familiares. É isso que meu mensageiro carrega em sua bolsa. Deixe-o passar — pediu Hélio.
— Cidadão romano? Cidadão romano que se preze não trai seu Imperador. Quieto, prisioneiro! Abra logo essa bolsa, mensageiro, ou sentirá a lâmina de minha espada atravessar sua garganta.
Sem alternativa, Hermes foi abrindo vagarosamente a bolsa. Suas mãos tremiam.
— Rápido, moloide! Olhem, amigos, como treme. — Os demais soldados gargalhavam e batiam suas espadas e facas em seus escudos e nas paredes da prisão.
“É agora que morro. Mas o faço servindo àqueles que jurei honrar por toda a minha vida”. Pensando assim, o pobre homem abriu de uma só vez a bolsa.
— Agora, tire tudo o que há aí dentro, que vou examinar.
Ainda hesitando, Hermes despejou o conteúdo todo no chão úmido da prisão. E foi com surpresa que viu, ali, tão somente cartas endereçadas a familiares e amigos, como Hélio havia dito.
Depois de abrir a última carta e ler o que dizia, o soldado ordenou ao emissário que juntasse aquele monte de papel inútil de um condenado e sumisse de suas vistas. O homem obedeceu, fechou a bolsa e partiu sem olhar para trás. Quando se viu a uma distância segura, decidiu abrir novamente a bolsa: “Como o pergaminho pudera sumir dali?” Soltou a alça e, cauteloso, olhou seu interior.
Lá estava ele, envolto no manto de linho.
(***)
Capítulo 1
Porto Alegre: Tempos atuais, em um domingo qualquer
— Fica quieto, Pedro, que agora vem a parte que mais gosto!
— Fala sério, João, como tu pode gostar desses filmes anos noventa! E esse velho aí, como é o nome dele?
— Cara, mas tu é um ignorante, hein? Harrison Ford, e está interpretando um de seus mais famosos personagens: Indiana Jones.
— Tá louco! Que cenários toscos. E agora, o que ele vai fazer? Por que tá parado lendo essa caderneta?
— É um diário que fala sobre o Santo Graal. A história é longa. Depois te explico. Agora cala a boca que vem uma das partes mais legais.
— Ahã, sei...
— Olha, olha. Ele vai dar o Passo da Fé.
— Passo da Fé? Que treta é essa?
— Olha, ele tá num abismo e precisa atravessar pro outro lado. Tá vendo alguma Ponte, Pedro?
— Claro que não, né? Não tem nada ali.
— Ah, é? Então, fica ligado, seu manezão!
De repente, o Indiana ficou recitando umas palavras que estavam no diário enquanto examinava o desenho do deus egípcio Anúbis, cabeça de chacal e corpo de homem, que atravessava exatamente o mesmo ponto em que ele estava, no ar! Respirou fundo, fechou os olhos e deu o primeiro passo no...vazio.
— Cara, ele vai se arrebentar!
— Presta atenção, Pedro.
Como que por magia, o Indiana seguiu caminhando e, embaixo dos pés dele, materializou-se uma ponte de pedra, antes invisível.
— Uhuuuuu! Que demais!
— Ah, entende agora por que adoro esses filmes da coleção de meus pais?
— Tô ligado porque o passo que ele deu se chama o Passo da Fé: ele teve que acreditar nas anotações do diário, certo?
— Mais do que isso, cara! Ele precisava acreditar em si mesmo, antes de tudo.
— Olha, esse Indiana é bem esperto: agora jogou areia sobre a ponte, para deixá-la visível, no caso de precisar voltar, e não se perder.
— Tô falando! Sou fãzaço desse cara.
Na sequência, o Indiana salvou seu pai das mãos dos inimigos. Quando estavam seguros, o herói falou:
— Eu disse que sempre te protegeria, pai. Um homem tem de ter palavra! E eu sempre cumpro a minha.
Foi aí que me toquei de um lance muito sério: teve tanta confusão desde que eu voltei do sítio do meu avô em Minas, que acabei esquecendo de abrir o pacote que ele tinha me dado de presente. Suas instruções eram para que eu o abrisse apenas quando chegasse em casa. Lembro que a caixa estava no bolso do meu casaco de moletom azul e...
—Putz!
— Cara, tu ficou louco? Que grito é esse, do nada?
— Tu nem imagina: meu vô, nas férias de julho do ano passado, me deu um presente e me pediu para abrir somente quando chegasse em casa.
— Tá, e daí?
— Daí que com a volta às aulas, os encontros com a galera e tudo o mais, acabei esquecendo dentro do bolso do moletom que usei na viagem e, depois, deixei de lado.
— Qual é o drama? Não é só pegar o tal moletom, o pacote e abrir?
— Acontece que, faz duas semanas, doei o moletom pra Campanha do Agasalho lá da escola, cara! Já era! Como vou dizer isso pro meu avô? Eu sou um trouxa mesmo, cabeça oca.
— Concordo plenamente.
— Obrigado pelo apoio. Nem sei como te considero ainda meu amigo, João.
— Amigos dizem a verdade. Tu é tudo isso que falou, mas é um superparceiro, sempre posso contar contigo, tem senso de humor, sem falar que, agora, tá lendo mais e podemos compartilhar as histórias.
— Pô, valeu, João. Mas esses elogios não vão me ajudar muito nessa hora.
— Olha: sei quem ficou de separar as roupas para distribuir nas instituições. Quem sabe essa pessoa pode te ajudar.
— Então fala logo, que já vou atrás dela.
— É... ãh...a Madre.
— O quê?! Fala sério? Mas nem morto vou procurar aquela guria que nem olha na minha cara. E o pior: tá sempre falando sozinha e lendo um livro grosso que ela não mostra pra ninguém.
Volta e meia eu a via abrindo aquele “tijolão”. Eu já tinha feito de tudo para descobrir o título, mas, como a guria usava uma capa no livro, não dava pra saber. O pessoal a tinha apelidado de Madre porque dificilmente se metia em bronca e sempre ajudava todo mundo. Uma verdadeira santa. Além disso, estava sempre pronta a defender os oprimidos da escola. Sabe quando zoamos com alguém no recreio? Bem na hora em que a gente estava pregando um susto no moleque, lá vinha a Madre:
— O que é isso, seus covardes!
Cara, ela sempre embaçava nossas brincadeiras. Nunca entendi como é que brotava do nada, em qualquer lugar onde estivéssemos querendo nos divertir. Uma chata!
Que nem outra vez que colocamos uma slime na cadeira da professora de Música. Já estava tudo certo, a gente dando risada por antecipação, e quem estragou tudo? A Madre, claro. E pior que a guria, mesmo tímida, não tinha medo de nos enfrentar:
— Coloquem-se no lugar dos outros que querem humilhar e magoar. Gostariam que fizessem isso com vocês?
Era meu último ano no Fundamental e, graças à Madre, seria um tédio! Bem, mas não tinha jeito: eu teria que procurá-la, e rápido.
O João parece que leu meus pensamentos:
— Tá, cara. E aí? Prefere queimar o filme com teu vô ou enfrentar a Madre?
— Fazer o quê? Pior que nem sei o nome da guria, acredita? Como vou chegar e dizer: — Aí, Madre. Tudo tri? Pode me fazer um favor? — Cara, é capaz de ela me bater com aquele livrão misterioso dela.
— Hahaha. Até que seria engraçado. Well, por acaso teu parceiro aqui sabe o nome dela. Mas isso vai te custar caro.
— Sem essa, mano. Vai liberando a informação.
— Ei, solta o meu braço! Tá bom, tá bom, pelo teu avô. O nome da Madre é Penélope.
— Quê?! Que nome diferente. Bom, melhor que Madre, né? Amanhã cedinho vou lá pro ginásio da escola falar com ela. Torce pro meu casaco ainda estar naquelas caixas, e a Madre não me encher de desaforo.
— Tente ser educado e menos debochado. Ou seja: menos você.
— Se tu não fosse meu melhor amigo...
— Tu não teria amigo. — Como sempre, terminamos rindo muito os dois. A gente se dava super bem. Eu admirava demais o João: um baita sujeito, tremendo caráter.
Desde minha volta de Varginha, nós ficamos mais próximos do que nunca. Agora que eu descobrira, finalmente, o prazer na leitura e que me aplicava mais na escola, tínhamos mais coisas em comum. Mas o João era infinitamente melhor que eu em tudo: melhores notas, melhor comportamento; ele era um cabeção. O João parecia saber exatamente o que queria fazer na vida desde o Jardim de Infância. E eu? Ainda buscando me encontrar.
Dali a uma semana, a Irene estaria chegando de Minas para passar uns dias em minha casa. Eu não via a hora de apresentá-la para o João e meus outros amigos. Infelizmente ela não tinha conseguido vir nas férias de verão, como a gente combinou, mas, desta vez, estava tudo certinho. Melhor, então, resolver a parada do pacote do vô e rápido. Não queria ter nenhum rolo me atrapalhando nessa hora.