
Poesias Iniciais
O acolherar de letras de um Gaúcho
Rincão de São Miguel e seus personagens I – "Nego Cundunga"
Tez completamente negra, esguio, talvez 1,80 m de altura (não sei se por eu ter apenas 8 ou 9 anos o via tão alto), queixo excessivamente proeminente, dentes alvos, apesar do inseparável palheiro, e um constante sorriso aberto que permitia, mesmo a quem não o quisesse, ver o róseo de suas gengivas, céu da boca e língua. Esse era o "Nego Cundunga", o "Tio Cundunga", "Alegria do Rincão".
Os 74 Km de estrada do Rincão de São Miguel, por apresentarem horrível trafegabilidade, deixavam apenas o tílburi como meio de transporte aos fazendeiros dos idos de 1950. Já o transporte de carga era feito pelos carroções do "Nego Cundunga". Mantimentos, sementes, rações e toda sorte de necessidades chegavam até o fundo do Rincão nos três carroções puxados por quatro cavalos cada um, cujos três metros de comprimento e guardas de um metro e sessenta centímetros de altura ficavam a cargo da habilidade do "Nego" e seus filhos.
Não lembro exatamente em que altura da Rua General Sampaio era sua residência, porque a Geografia da cidade mudou muito. Mas, se não estou enganado, era na última quadra antes da Santa Casa, à direita. Mesmo sem muita precisão, ali era o seu quartel-general.
Chegando de viagem, ele descansava juntamente com seus filhos e seus valiosos cavalos, por uma semana. Tempo mais do que suficiente para que os fazendeiros, de posse das listas de necessidades (rancho, sal, etc. ...) trazidas por ele, providenciassem a compra e trouxessem as coisas para que ele as carregasse. Após uma semana, "Nego" iniciava o caminho de volta.
Segundo ele mesmo contava, saía de Alegrete por volta da meia-noite, fazendo seu primeiro pouso e troca de cavalos no seu compadre Tolentino, bem na famosa porteira preta. Dali, suas carroças entravam ruidosamente até uma certa altura do Rincão da Palma, o que lhe permitia, falhando um pouso, retornar para o outro, no seu compadre.
Na madrugada seguinte, ele seguia rumo ao fundo do Rincão, chegando nas fazendas em que havia encomendas e onde tinha que trocar seus bem-cuidados cavalos.
A estância São Jorge, de propriedade de meu avô, Joaquim Antônio da Silveira, era parada obrigatória das carroças do "Cundunga". Nela, estranhamente, a entrada da fazenda era pelos fundos, o que sem dúvida dificultava a visão de quem vinha chegando, mas não dificultava a aguçada audição de um guaipecapreto. Quando ele começava a latir, os peões mais antigos já alvoroçadamente começavam a dizer:
— Aí vem o "Nego Cundunga" ...
Pela primeira vez, após ouvir tantos comentários à beira do fogo, eu via chegar os carroções. Ao vê-los, correu-me um arrepio, pois finalmente ia ver de perto o "Nego Cundunga" tão afamado no Rincão.
Carroças colocadas à sombra, cavalos desatrelados, carinhosa e cuidadosamente lavados, e também postos à sombra para oriar o lombo.
A tudo eu assistia, ansioso para que o "Cundunga" viesse sentar-se, iniciando a relatar suas peripécias de viagem. Ele, ignorando a minha curiosidade de criança, foi chamar o caseiro da fazenda para entregar as encomendas. Nesse meio tempo, meu avô "Quinca" saiu da casa grande e veio cumprimentar o "Cundunga" e saber como tinha ido de viagem.
Vovô apresentou-me a ele e, do alto dos meus 9 anos, senti-me muito importante, apertando a mão calosa que se fez acompanhar de uma fala mansa e doce:
— Buenas tardes, Patrãozinho!
Daquele momento em diante, tornamo-nos amigos pelo tempo que o Pai Velho permitiu. E também, daquele momento em diante, o coitado do "Cundunga" teve que aturar minhas curiosas perguntas durante o tempo todo, livrando-se delas somente quando o vovô me chamava para jantar e não me deixava mais voltar ao galpão.
Com a chegada das carroças, pude entender por que o chamavam de "alegria do Rincão". Afora as provisões do rancho, ele trazia brim para as bombachasdos gaúchos, chita e rendas para as prendas, brilhantina, fumo, "Amor Gaúcho", botões, linhas, enfim, tudo o que era necessário para que os peões se tornassem mais garbosos e cheirosos nas suas visitas dominicais às suas prendas.
Juntamente com tudo isso, vinham as novidades do povo, contadas à noite, após a janta, junto ao fogo de chão, as quais eu infelizmente não podia ouvir porque estava "dormindo" com os olhos bem abertos, incendiados pela minha imaginação infantil que não se cansava de lembrar tudo aquilo.
Após três dias da feliz chegada, na recolhida da tarde, vi que vieram junto os cavalos do "Cundunga". Perguntei ao capataz por quê.
Respondeu-me ele que os mesmos iam ficar presos para adelgaçarem, pois o "Tio Cundunga" iria sair de madrugada. No momento em que o vô me liberou da sesta, fui para perto das carroças assistir aos preparativos. Revisão dos cabeçalhos, dos raios das rodas, ajuste e graxa nas buzinas, tudo isso ele fazia, me dizendo o que era e pra que servia.
À noite, após a janta, ele foi até a casa grande despedir-se de meu avô e de mim, dizendo que ia até o fundo, nos "Pichitas", e voltava pela estrada principal para Alegrete, fazendo o mesmo itinerário da ida.
Pela manhã, ao acordar, antes mesmo de tirar o freio, corri até a frente, na esperança de que alguma coisa tivesse acontecido e eu o visse habilmente atrelar os cavalos. Não tive sorte, o "Nego Cundunga" havia saído, como sempre, de madrugada grande.
Por muitas outras férias, a chegada das carroças aconteceu, sempre cercada da mesma expectativa e alegria, e eu, até hoje me surpreendo, de ouvido alerta, esperando ver surgir dos fundos da "São Jorge" o "Nego Cundunga" com seu sorriso de orelha a orelha e o seu comboio de lembranças.
King e sua história
“Um cachorro é um pedaço da vida da gente. Quando o amamos, o queremos bem e o consideramos um membro da família.”
Assim era o KING para nós...
Gostaríamos que escrevessem fatos pitorescos, cenas marcantes que lembrem esta “pessoa” tão querida, tão inteligente e indiscutivelmente única, para que possamos fazer uma memória onde fique registrada a passagem deste ser que muito nos orgulhou, cuidou, amou, divertiu e ...morreu.
Certa vez, fui à oficina do amigo Nei Vaz consertar uma caminhonete Variant que eu possuía. Não lembro o defeito que a mesma tinha, mas lembro do Nei me dizer:
— Jorge, tu que convives e tens experiência com animais, me diz o que pode ter este cachorrinho que o meu filho guri ganhou...
Levou-me até o fundo da oficina e mostrou-me, dentro de uma caixa, um montinho em carne viva, que de cachorro somente restava as orelhas.
— Me disseram que é sarna, e se é... pela idade que ele tem, vou ter que matar, pois meu guri é pequeno e não quero contágio.
Não pude afirmar que era sarna, mas alguma coisa me disse que eu poderia curá-lo.
— Se vais matá-lo, me dá o animalzinho que eu vou tentar curá-lo, disse-lhe eu.
Assim foi feito. Coloquei-o na traseira da caminhonete e viemos eu, o Alemão, com dois anos incompletos, e aquele pequeno cão, que mais parecia um “rosbife antes de ir ao forno”.
Aplicamos-lhe um belo banho com sabão comum, depois uma boa camada de Hipoglós em todo o seu corpo. Findo isto, após arranjar-lhe uma caixa com forros pra ele dormir, administrei-lhe dois flaconetes de Epocler.
Isto feito, era só rezar para que eu tivesse razão na minha avaliação.
Não deu outra. No outro dia, embora o aspecto engraçado, com aquela “capa branca” sobre a pele em carne viva, seu olhar já era outro... já demonstrava o cachorro esperto e inteligente que iria ser.
Mais ou menos quarenta e cinco dias depois, a Karine, Jorge e eu o levamos no Dr. Clodoveo para as devidas vacinas.
Sua ficha onde dizia: Raça... foi preenchida como Doberman.
Assim começou a história do nosso mini Doberman e amigo KING!
Por isto, meu amigo, no dia de hoje, às 15h, na Granja Santa Elvira, tive que administrar-lhe uma injeção letal, fornecida pelo Dr. Clodoveo, para que não sofresses.
Rincão de São Miguel, 28 de março de 1996.