Capítulos Iniciais
Minha Promessa: Spin-off da Série Os Reis da Noite
CAPÍTULO I
“Nós somos apenas duas almas perdidas,
Nadando em um aquário, ano após ano,
Correndo sobre o mesmo velho chão.”
(Pink Floyd)
Mia
Eu simplesmente amo quando o avião faz a curva, embicando para a pista do aeroporto, e posso ver a minha cidade brilhando, junto com as águas do lago Guaíba. Escolho sempre a poltrona do lado direito da aeronave, pois dali visualizo também a Ilha dos Marinheiros e sei que lá estão as pessoas que mais amo na vida.
De quem, aliás, estou morrendo de saudades! Meu pai e a Tatá estão viajando pela Europa há quase um mês e fazendo suspense sobre o retorno. Ele tem estado tão feliz, nesses últimos seis anos… Ainda me surpreende que ela não queira, de jeito nenhum, me dar um irmãozinho para mimar.
Assim que a aeronave pousou, conectei o meu celular, esperando que a maioria apressada descesse. Gosto de sair com calma. Abri a câmera de vídeo e ajeitei a minha aparência, após quase duas horas de voo. Sorri e dei notícias para os meu seguidores:
— Oi, Miamores! Chegando em Porto Alegre, depois de uma viagem supertranquila. Estou exausta, louca para relaxar na banheira, com meus sais da Golden Flowers. Querem assistir? — Pisquei, movendo junto o ombro.
Editei, postei e cumpri minha última publi do dia. Fui uma das últimas a sair do avião e sorri, agradecendo às comissárias. Uma delas, com quem tinha feito uma foto durante o voo, desejou:
— Bem-vinda a Porto Alegre, Mia!
Agradeci e segui em frente. Meu celular vibrava com a entrada de várias mensagens e notificações, mas os meus amigos de verdade e os familiares, sabem que se quiserem falar comigo, é melhor ligar. Nem sempre consigo dar atenção às centenas de mensagens e comentários nas minhas postagens.
Entrei em casa tirando os sapatos de salto. Conforme disse aos meus seguidores, fui direto para um banho, mas não o de espuma. Uma ducha foi suficiente. Era tarde e eu só queria a minha cama.
O telefone tocou enquanto eu vestia o pijama de malha.
— Oi, Jéssica!
— Oi, vi que chegou. É o seguinte, o Lucas conseguiu convites exclusivos para o camarote da corrida de carros que vai acontecer amanhã de noite, em Tarumã. Vamos?
— Corrida de carros? — Desanimei.
— É uma trip diferente. — Ela parecia animada. — Vai estar cheio de pilotos, alguns internacionais.
— Gente internacional é comum para mim. — Abri as cobertas e me enfiei sob o edredom. — Eu sou internacional!
— Para, exibida! — Jéssica gargalhou. — Depois, a gente pode ir para a 4Ty, como tínhamos combinado. É aniversário do Lucas…
— Nem quero imaginar o que ele te prometeu, para que tu esteja advogando pela causa perdida dele.
— Tu sabe que ele não precisa prometer muita coisa… — Minha amiga miou do outro lado. — Eu, com tua seguidora, ia curtir esse passeio diferente.
— Hum… — Ela também sabia me ganhar. — Tudo bem, vamos. Agora me deixa dormir que estou mesmo exausta. Aquele desfile foi um saco, sem graça nenhuma.
— Capaz!? Tu pareceu tão empolgada!
— Empolgada eu fiquei com o valor que caiu na minha conta! — Nós duas gargalhamos. — Lá, achei basiquinho.
Continuamos a falar, por mais alguns minutos, depois liguei a televisão e antes que o episódio da série terminasse, eu já tinha dormido, esquecida até de jantar.
O glamour fica para as postagens. Vida de influencer é dura para caramba!
***
Na manhã seguinte, eu estava gravando o unboxing da Mel Pontes Fitness, quando o celular tocou.
— Oi, Felipe! — Cumprimentei, admirada.
O amigo e sócio do meu pai quase nunca me ligava, a menos que fosse trabalho. É no antigo apartamento dele que eu moro. Comprei, quando ele e a Mel se mudaram para uma casa perto do meu pai, na Ilha dos Marinheiros, há três anos.
— Oi, Mia. Vi nos teus stories que tu vai na corrida de Tarumã.
— Coagida, arrastada e sem vontade, mas vou.
Ele riu.
— Estava pensando em aproveitar a oportunidade para fazer marketing pra gente.
Revirei os olhos. Claro que estava.
— Como?
— Convidando os pilotos para virem conhecer a casa. A Equipe de marketing vai entrar em contato com os organizadores e faremos da tua presença um evento da nossa casa noturna.
— Ah, não! — Desanimei ainda mais. — Deve ser um bando de velhos, Felipe. A 4Tytem um público mais jovem, agora que os Reis da Noite se aposentaram.
— Eu ouvi isso, pirralha! Tu está no viva voz! — O dindo gritou.
— E não é nenhuma mentira — rebati.
— Vai convidar, sim! Esse pessoal que tu atrai só quer saber de Moscou Mule, cerveja e espumante barato. Vai herdar um reino falido, se continuar assim.
— Dindo, tu é muito exagerado!
— Eu tenho duas filhas para criar, não te esquece.
Sacudi a cabeça, lembrando das gêmeas fofinhas que tiravam o sono do meu padrinho. Das mais variadas formas. A fala sobre a falência era um dos muitos exageros do Marcondes. Até porque, segundo a Tatá, nada era barato no bar. A 4Ty ia muito bem, obrigada, apesar de já ter mais de 10 anos de funcionamento.
— Ok, eu faço a publi. Mas só porque eu já iria para aí, mesmo.
— Excelente!— Felipe disse. — Sabia que podíamos contar contigo.
— Aliás, Felipe, diz para a Mel que as novas peças ficaram divinas. Estou gravando o unboxing agora.
— Ficaram mesmo — dava para notar o orgulho e o sorriso na voz dele. — Assim que estiver tudo certo com o marketing, te aviso.
— Ok. Tchau, dindo! Até domingo.
— Nem me fala. Outra que vai me levar à falência é a Vi. Beijo, pirralha.
Eu ri do Marcondes e desligamos. Que saco! Raramente eu conseguia me divertir sem que alguém quisesse monetizar o momento. A grana que entrava era sempre boa, mas nada sem a qual eu não pudesse viver, de qualquer forma.
Fui eu que inventei essa vida, nem devia reclamar. Comecei há anos, pois sempre tive bom gosto para roupas, não tenho modéstia quanto a isso. Depois, ajudando a Mel, meu público ampliou, e agora tenho mais de dois milhões de seguidores pelo mundo todo. É até um vício, viver conectada e prestando contas de tudo o que eu faço.
Em raros e passageiros momentos, sinto falta do anonimato. Da exclusividade. Mas no momento seguinte, sacudo as minhas mechas loiras, sorrio para a câmera e começo outro vídeo ou foto.
E foi o que fiz, naquele instante. Acionei o temporizador e posei para mostrar como ficou o modelo de calcinha absorvente, que é acompanhado por um short de ginástica e uma blusa regata, que dispersa o calor, sem marcar. Mais uma perfeição Mel Pontes Fitness, especialmente para pessoas que menstruam.
***
Estacionei o meu carro numa vaga difícil de encontrar. Abri o celular e gravei um stories para avisar que estava chegando ao evento e o quanto estávamos animadas para ele.
— Será que veremos algum piloto bonitão, Jé? — Brinquei com a minha amiga, ao mostrá-la.
— Eu acho que sim. Espero, aliás. — Ela sorriu para a minha câmera.
— Depois da corrida, vamos todos para a 4Ty. Não deixem de assistir, por aqui, para curtir com a gente, Miamores!
Mandei um beijo, a Jéssica também e postei. Saímos do carro e meu salto estranhou o chão de terra batida. Eu usava um macacão pantalona azul turquesa, de bustiê, barriga de fora e amarração, mas coloquei um sobretudo branco de lã por cima, pois a primavera recém iniciou e o vento fresco do anoitecer me fez arrepiar. Ajeitei os cabelos e a alça da bolsa e desfilamos até o camarote, onde pediram nossa identificação. O segurança chamou alguém pelo ponto eletrônico e, em alguns minutos, uma moça em um terninho preto se aproximou.
— Mia Bassos? — Confirmei. — É um prazer conhecer você pessoalmente. Sou Carla Moura, RP da equipe RaceOne, do piloto Oguido. Vem comigo. Vou te levar para conhecer os bastidores e você pode fazer imagens da pista.
Seguimos a mulher até o que pareciam ser várias garagens, muito movimentadas. Os carros estavam sendo vistoriados e Carla nos levou até um daqueles boxes, todo decorado com anúncios de bebida e refrigerantes, além das cores amarelo e preto, que seguiam o padrão do carro estacionado diante dele.
Saquei o meu telefone e me aproximei do veículo. Ao redor deles, vários homens trabalhavam e a Carla parou junto à porta do motorista.
— Oguido, a influencer que lhe falei.
Inclinei meu corpo para vê-lo. Ele já estava de capacete, vestia um macacão amarelo, cheio de marcas dos patrocinadores, e luvas. Seus olhos mal estavam visíveis, parcialmente iluminados.
— Oi, só preciso fazer uma foto, tudo bem? — Avisei e ele ergueu o polegar, em sinal de positivo.
Centralizei-nos na imagem e tirei a foto. Agradeci e ele gesticulou para que eu me aproximasse.
— Você vai estar na festa?
— Claro, a casa é minha. — Sorri-lhe. — E tu?
Ele apontou para a frente.
— Vai ter que convencer o meu amigo ali.
Olhei através do vidro, no mesmo instante em que o capô foi fechado com força, fazendo o carro sacudir um pouco. Um homem largo, de cabelos negros e rosto sério apareceu.
— Marra! — O piloto gritou, batendo no vidro para chamar atenção do mecânico.
O cara olhou para frente, depois para mim. Voltou ao piloto. Vem aqui, Oguido gesticulou e o tal Marra veio. Parou do meu lado, apoiou a mão suja de graxa no capô do carro e se inclinou para falar.
— O que foi?
O polegar do piloto foi sacudido na minha direção e entendi que era minha deixa. Convencer as pessoas a fazerem o que eu quero é o meu superpoder. Nunca falha. Uso há mais de quinze anos com meu pai e o dindo. Sorri e ergui os olhos, mantendo o rosto mais baixo, assim ficava com a expressão meiguinha e implorante. Pisquei e usei um tom meloso, movendo um ombro.
— Vamos dançar na 4TY, depois? É um convite especial para os pilotos da corrida noturna de Tarumã.
O homem à minha frente não esboçou qualquer reação. Encarava-me com um misto de tédio e desdém. Correu os olhos pelo meu corpo, lentamente, e voltou até o meu rosto.
— Qual o teu preço por hora? — A voz rouca usou um tom que eu não pude reconhecer se foi deboche ou curiosidade genuína.
— Como?
— Preço. — Ele fez sinal com os dedos, como se contasse algumas notas. — Quanto tu está ganhando por hora, para vir aqui?
— Marra... — A RP tentou falar, mas não deixei.
— Os meus honorários não são da tua conta! — Cruzei os braços diante do peito, onde ele insistia em deixar os olhos.
— Marra, a... — Desta vez, quem interrompeu a Carla foi ele.
— Posso te pagar mais por uma festa privê. Não acha melhor, Oguido? — Ele foi confirmar a preferência do amigo.
— Puta merda... — A mulher resmungou.
Minha boca abriu junto com os olhos e o som que me escapou foi alguns decibéis acima do normal.
— Como é? Não estou atrás de companhia, idiota! A 4Ty é uma das casas noturnas de luxo mais famosas do Brasil e ofereceu a festa para os pilotos.
— Não perguntei isso. — Ele endureceu mais o rosto. — Perguntei quanto o teu serviço de acompanhante vai custar ao Oguido. Casas de luxo não nos impressionam.
— Esse cara é louco? — Finalmente voltei-me para a Carla, que apertava o osso do nariz, ao lado da Jéssica, que mal tinha os olhos dentro das órbitas, apavorada.
A RP desfez o mal-entendido.
— Marra, a Mia está aqui representando essa casa noturna e como é uma influencer muito famosa, aproveitamos para divulgar a RaceOne. Ela é a filha do dono. — A mulher arregalou os olhos. — Balada, festa… Colabora comigo!
Ao nosso redor, os demais homens da equipe trabalhavam, o piloto recebia algumas instruções e na nossa rodinha, o circo estava armado, porque eu queria chutar o saco daquele imbecil. Ele voltou sua atenção do rosto da Carla para o meu, sem mudar a expressão de tédio.
— Parecia mais interessante antes.
O idiota me deu as costas. E para quê? Não suporto que teimem comigo. Só eu posso ser teimosa, mais ninguém.
— Escuta aqui! — Ele não chegou a dar um passo e se virou novamente. — Nem eu e nem a 4Ty precisamos de vocês. O convite está descartado e a publi também.
— Perdão, Mia! O Marra não fazia ideia do combinado… — A Carla explicou, contemporizando. — O Oguido tinha topado, cara! É importante para a equipe.
O cara respirou fundo, coçou a barba de três dias com a mão suja, ainda sem me olhar. Quando falou, foi com o mesmo desdém:
— Tudo bem, famosinha. Nós vamos.
Ele me deu as costas, outra vez e deixei que fosse. Era insuportável olhar para aquele cara.
— Mia, eu realmente peço desculpas. — Carla disse, unindo as mãos. — O Marra não tem esse apelido por pouco.
— Ele foi agressivo e desrespeitoso, por nada!
— Eu sei. — Ela me fez andar e a Jéssica nos seguiu. — Ele está com problemas pessoais e descontou em você. Mas a RaceOne ficou muito honrada com a parceria e tenho certeza de que o Oguido irá à casa de vocês.
— Sem o amigo, quero que me prometa.
— Vou garantir isso. — Ela sorriu. Tinha um rosto amigável. — Aproveite a corrida. Sabem retornar?
Confirmei que sim, enganchei meu braço no da Jéssica e olhei uma vez mais para trás, indignada com o mecânico. Ele me olhava, enquanto limpava as mãos em um pano ainda mais sujo do que a mente dele.
— Imbecil! — Murmurei, esperando que lesse meus lábios.
— Famosinha. — Ele debochou de lá.
Ainda bem que seria a última vez que veria aquele homem na vida!
***
Cerca de dez minutos depois, encontramos o local onde nossos amigos já estavam, entre quase uma centena de pessoas.
— Mia! — Lucas me abraçou. — Jéssica.
— Feliz aniversário, Lu!
— Só depois da meia noite. — Ele sorriu, enquanto se preparava para receber os cumprimentos da nossa amiga.
— Essa ideia de comemorar aqui foi de jerico. — Reclamei, ainda de mau humor. O espaço estava lotado e as luzes dos holofotes, sobre a pista, iluminavam as dezenas de carros e pessoas que circulavam entre eles.
— Depois vamos aonde todos querem estar. — Ele me provocou.
— Soube que a 4Ty vai oferecer a festa para os pilotos. — JP, outro amigo, falou, me oferecendo uma long neck.
— Marketing é oportunidade, gato. Aprende!
Levei a bebida aos lábios, observando o rosto bonito do JP. Ele tinha os olhos no meu decote. Lembrei do outro homem que fez o mesmo, há pouco. Mais amigos chegaram, cumprimentei a Antonela, a Camila e o Enzo. Com isso, nossa panelinha estava completa e brindamos a ocasião.
— Me conta do desfile, em São Paulo. — Antonela pediu.
O som dos motores invadiu o camarote. Era quase ensurdecedor. Gritei para ela que depois falaríamos. Puxei meu celular e fui filmar a largada. Consegui espaço próximo à balaustrada e notei que JP parou atrás de mim, apoiando os braços sobre a mureta de madeira, me cercando e prendendo no espaço entre seu corpo e a divisória.
— O que foi? — Precisei virar o rosto e gritar ao ouvido dele.
— Protegendo a retaguarda. — Ele sorriu, empertigou-se e passou a observar a pista.
— Não é tua função fazer isso.
— Mas a visão daqui é excelente.
Pensei que se referisse à pista, mas quando virei o rosto para observá-lo, foi do meu decote que seus olhos subiram.
— Tu é tão bonitinho quanto cretino, JP! — Gritei de volta.
Ele só sorriu e me prensou mais contra a mureta. O corpo másculo e cheiroso, junto com o rosto bonito, os cabelos loiros e os olhos verdes, podiam ser um conjunto perfeito para as outras mulheres. Para mim, não. Já tivemos um rolinho, no passado. Mas não curto ficar com meus amigos. Além de tudo, são jovens demais. Prefiro os caras mais maduros, pois têm mais a oferecer, além de sexo. Gosto da sensação de segurança, da estabilidade e da forma, em geral romântica e atenciosa, com que me tratam. Gosto de homem que sabe valorizar uma mulher.
Faz tempo que não encontro um desses. Quando dei essa descrição de meu homem ideal para a Tatá, ela riu da minha cara:
— Desculpe, mas Rodrigo Bassos só existe um e já é meu.
Meu pai é demais mesmo. Ela tem razão.
— Vão dar a largada. — JP apontou para a pista, onde as pessoas que antes cercavam os carros, agora liberavam o espaço.
Identifiquei o carro do Oguido como o segundo no grid de largada. Reconheci, também, o Marra, circulando ao redor, verificando os pneus. Imbecil. Torci que o piloto perdesse, só para sentir o gosto de uma vingança quase pessoal.
O som dos motores ainda se ouvia alto. Acionei a câmera e comecei a filmar ao vivo. Enquadrei a mim e ao meu amigo e sorri, fazendo um gesto de que não adiantava falar, por causa do barulho ambiente. O número de espectadores começou a subir, elogios à minha maquiagem e ao meu amigo, algumas pedindo o Instagram do gato, outras mandando beijos.
— É o JP! — Avisei e ele acenou para a câmera.
As seguidoras foram à loucura e os números aumentaram, junto com uma chuva de corações e fogos. Girei a câmera e mostrei a pista, no instante em que a bandeira quadriculada branca e preta foi erguida. O som ambiente ficou ainda mais incômodo e logo os carros partiram, levantando uma nuvem de fumaça, com cheiro de óleo e borracha queimada. Assim que se distanciaram, amontoados entre si, o som tornou-se uma música até suave, que tocava nos alto falantes.
— Miamores, que loucura! — Sorri. — Quem será que ganha essa corrida? Seja quem for, estará conosco na festa da 4Ty depois. Beijos.
E que não seja o Oguido — pensei.
Desliguei e JP segurou o meu pulso.
— Chega de trabalho, vamos curtir.
— Quem me dera. Ainda tenho que fazer sala na 4Ty e agradar os pilotos. — Revirei os olhos.
Ele passou o braço pelos meus ombros, me levando até o seu pescoço cheiroso.
— Está feliz com isso, Mia?
Suspirei, guardando o celular na bolsa.
— É a minha vida, JP.
— Mas não me parece que tu a esteja curtindo devidamente.
— Claro que estou! Ficou maluco?
Apartei-me dele e voltei para o nosso grupo de amigos. Como uma boa viciada, eu me negava a assumir a verdade, apesar de senti-la.
CAPÍTULO II
Eu fui mal-entendido,
Tropecei como minhas palavras,
Fiz o que pude.
Droga, mal-entendido.
(Bon Jovi)
Théo
A famosinha me olhava com um desdém evidente. Antipatizei de cara, antes mesmo de descobrir quem era. Jogou todo aquele charme de olhares e sorriso sensual para cima de mim e depois se ofendeu. Me confundi. Sei que dei mancada, mas pouco me importo. Não foi a primeira vez que vieram oferecer esse tipo de serviço na pista. Felizmente, nunca mais a verei, da mesma forma que a vida nos evitou, todos esses anos.
Tirei os fones protetores de ouvido e voltei para os boxes, depois da largada, a fim de guardar minhas ferramentas. O pessoal da equipe do Oguido comentava sobre a corrida, mas eu estava mais a fim de fumar um cigarro e relaxar, de preferência quieto no meu canto.
Não consegui.
— Porra, Marra, precisava ser tão cretino com a moça? — A Carla chegou com cinco pedras e o volume da voz acima do normal.
— Pensei que fosse uma garota de programa.
— Puta merda! Estou até invejando o nível de mulher com quem você está acostumado, então. Aquela ali parece uma princesa!
— Cai em cima, se curtiu!
— Quem me dera! — A relações públicas do meu amigo sentou sobre a bancada em que eu trabalhava. — Ela é filha de um dos donos da 4Ty, como você não a conhecia?
— Não tive o desprazer, felizmente, até hoje. Nos desencontramos.
— E nem da Internet? — Neguei. — Marra, não sabe o que está perdendo. É cada foto e vídeo, meu amigo!
Ela assobiou, deixando claro o tipo de conteúdo a que se referia.
— Eu não estava errado, então, sobre o trabalho da guria.
— Nada a ver! Ela trabalha com moda e faz publicidade de muitas marcas famosas, até internacionais.
— Não sei por que tu ainda está falando dela.
Fechei a maleta e fui ocupar o sofá desgastado que tinha por ali. Tirei do bolso uma carteira de cigarro e acendi um, sentindo o alívio da nicotina no meu organismo. A paz durou pouco, novamente.
— O Oguido vai querer ir à festa, ainda mais se pontuar nessa corrida. — Carla sentou ao meu lado e tirou o cigarro dos meus dedos, tragando em seguida. — E vai arrastar você.
Bufei, expelindo a fumaça. Ela tinha razão. Não era sempre que ele vinha ao Rio Grande do Sul, mas quando acontecia, saíamos juntos para curtir. Conhecemo-nos há alguns anos, em São Paulo, quando eu morava lá.
— Uma balada cheia de patricinhas esnobes como essa daí? Me erra!
— Perfeito, porque ela não quer te ver lá, de qualquer forma. Deixou claro. Você só precisa convencer o Oguido de que não vai acompanhá-lo, mas que ele deve ir.
Dei uma tragada longa e observei o movimento dos engenheiros da equipe, junto à pista, tendo nas lembranças a cara mais linda e antipática que já tinha visto na droga da minha vida. Os olhos azuis tinham um tom escuro e brilhavam, de indignação, ao me encarar. A boquinha de batom rosado só abriu para despejar seu desprezo e o nariz fino teria batido no teto, se estivéssemos dentro dos boxes. Irritante!
Aquela criança mimada não me diria aonde ir ou não. Ninguém mais fazia isso comigo!
— Ah, ela não quer? — Retruquei e a Carla negou novamente, com a cabeça. — O Oguido só vai, se eu for. Se ela quer o piloto vencedor brincando na sua casinha famosa, vai ter que me aturar.
— Você acabou de dizer que não queria ir!
— Mudei de ideia. — Levantei do sofá, diante da expressão embasbacada da Carla. — Nunca tinham me convidado para essa balada cara de playboy. Vamos ver qual é.
Estendi o cigarro para ela e fui até a mureta de proteção, observar a corrida. Recoloquei os fones protetores e o silêncio abafado foi bom. Eu só ouvia os meus pensamentos, agora. Não que isso fosse uma coisa boa.
Tu é um inútil, sem futuro! — Ele tinha gritado, antes de me dar as costas.
Foi a última vez que chorei por causa de alguém.
A primeira volta completou e a equipe comemorou, pois Oguido cruzou na frente. Agora, era manter. Meia hora depois, ele finalizou a corrida em primeiro e o piloto convidado assumiu a prova seguinte.
— Parabéns, cara! — Cumprimentei com um toque de mãos e um abraço.
— Mais uma para a conta. Você me dá sorte, irmão!
— Um amuleto de mão única. — Sorri, batendo em seu rosto de feições asiáticas.
Em seguida, Oguido foi engolfado pela equipe e dei espaço para a comemoração. A segunda corrida da noite começou e fomos assistir, junto à murada.
Mia
Após uma hora, duas corridas e uma volta única, finalmente a disputa terminou. A galera da arquibancada festejou muito a vitória do piloto, que, para o meu desânimo, foi o Oguido.
Assistimos à premiação e eu vi o mala do Marra carregar o piloto vencedor nas costas, depois dos dois se darem um banho de espumante. O público começou a dispersar e entre eles, nós também.
— Reservei uma mesa no restaurante do meu pai para comemorarmos o aniversário do Lucas. — JP informou, passando o braço ao redor do meu pescoço. — E não precisa fazer publi.
— Ok! — Sorri para ele e fomos para os carros.
Só saímos do restaurante perto da meia noite. Claro que fiz muitos vídeos e stories, marquei o estabelecimento que tem as carnes mais saborosas da capital e diversas filiais pelo país.
Ao estacionar diante da 4Ty, notei que o movimento já estava grande. O público mudou muito nesses seis anos, desde que os reis casaram. Aos poucos, eles deixaram de vir com frequência, arranjaram compromissos com suas famílias, as crianças… Até o meu pai e a Tatá, que não aumentaram a prole, se recolheram. Da mesma forma, o pessoal que sempre estava com eles foi sumindo, deixando de frequentar. Ocasionalmente, os donos vêm curtir, mas como eu disse, muita coisa mudou.
As músicas são mais do gosto da galera, a decoração menos clássica, os frequentadores, mais jovens. Porque agora, o camarote que ferve não é mais o dos reis. É o Camarote da Princesa!
Enganchei o meu braço ao da Jéssica e entramos. Assim que me reconheceram, as pessoas vieram me cumprimentar, dar beijinhos, fazer selfies e, como sempre, demorei para alcançar o camarote. Quando cheguei lá, meus amigos já tinham pedido a bebida e dois pilotos estavam entre eles, junto com o gerente da casa, o Paulo Ferro.
— Mia, — ele me disse — deixa eu te apresentar o Júnior Moreira e o Jorge Andradas.
Abri o sorriso a que estava acostumada e aceitei a mão e os dois beijinhos dos convidados. Ao contrário do que eu imaginava, não eram velhos. Estavam, inclusive, bem na faixa etária que me agradava, principalmente o Júnior. Foi nele que deixei minha atenção mais exclusiva, embora me dirigisse aos dois:
— Gostaram da casa?
— Já conhecia a de Jurerê. — O bonitão, de cabelo e barba preta, afirmou.
— Precisa ir na de Punta, então! Supera todas as outras duas. É a nossa casa mais movimentada, atualmente.
— Mas é só aqui que tem a princesa da casa. — Júnior sorriu, aceitando a bebida que o garçom trazia.
Gostei dele. Muito.
— Exclusividade para a de Porto, mesmo. — Peguei a minha bebida e suguei o canudinho, ainda observando o rosto bonito do piloto. Aproveitei para dar uma discreta passada de olhos em suas mãos, mas não identifiquei nenhum aro comprometedor.
— E você, curtiu a corrida? — O Andradas perguntou. Seu cabelo era castanho e começava a falhar na testa.
— Mais ou menos. — Fui sincera e eles riram. — Qual foi a colocação de vocês?
— Eu fiquei em segundo. — Júnior disse. — O Andradas foi meu piloto convidado.
— Sinto muito.
— Pelo quê?
— Uma vez, ouvi o meu padrinho dizer que terminar em segundo é pior do que ficar em terceiro.
— Isso vem com algum complemento explicativo? — Ele colocou os olhos intensos em mim, em seguida virou a taça.
— O segundo lugar perdeu. O terceiro ganhou uma disputa.
Os dois homens gargalharam e eu não entendi qual foi a graça.
— Não no nosso esporte. — Júnior se aproximou e passou a me explicar, com alguns detalhes bem chatos, como a corrida era organizada. — E na pontuação geral, ainda estou em primeiro.
— Ok, entendi. Magoei teu ego?
— Magoou, princesa — ele levou ao peito, dramatizando.
— Se tivesse te conhecido antes, teria torcido por ti.
— Vai ver, foi o que me faltou. Afinal, o Oguido ganhou.
Aproximei meu rosto da orelha dele, para confessar a minha falta. Apoiei a mão em seu ombro, ao falar.
— Eu torci para que ele perdesse.
Afastamo-nos um pouco menos. Minha mão escorregou para o peito do Júnior. Ele abaixou o rosto para me ver, parecendo surpreso e divertido.
— Por que você fez isso?
— Não sei. — Dei de ombros. — Meu santo não bateu muito com a RaceOne.
Ele afastou uma mecha do meu cabelo, prendendo atrás da orelha e foi a sua vez de falar ali, com a voz aveludada e sensual, que gostei de ouvir.
— O que acha de irmos para a pista? Assim, você pode me recompensar pela falta de torcida.
A mão dele tinha apoiado as minhas costas, ao se aproximar para falar, e deslizou para a minha cintura, aguardando a resposta. Deixei a taça sobre a mesa ao nosso lado e ele fez o mesmo. Júnior segurou minha mão e me virei para acompanhá-lo.
Foi quando meu corpo levou uma descarga elétrica e chumbei no lugar, fula até a próxima encarnação, por ter sido desobedecida. Enquanto o Júnior erguia a mão livre para cumprimentar outro cara que chegava, meu olhar encontrou com o único que eu não desejava ver naquela noite.
O maldito mecânico grosseiro estava ali e o desafio em seu semblante me fez notar que foi de propósito.
— E aí, campeão! — Júnior disse, alto e animado. — Já consegue ver a minha luz de freio?
— Alcanço você na próxima, em Londrina.
Júnior riu alto, mas minha atenção ainda estava em quem seria expulso em alguns instantes.
— Mia, — o gerente me chamou — já conheceu o Oguido Nakamura?
— Já! — Foi só então que o encarei e notei as feições asiáticas, o cabelo muito preto e liso, os olhos puxados. — Mas não o reconheceria sem o capacete e o mecânico imbecil. Pensei que tivesse deixado claro que ele não era bem-vindo.
Indiquei com o olhar a quem me referia. Marra cruzou os braços sobre o peito e sorriu de lado, ainda me encarando. Oguido alternou o olhar entre nós dois, confuso.
— O convite me permitia trazer um acompanhante. Sem o meu amigo, eu nem viria.
O clima pesou tremendamente. Eu senti. O sorriso que estava no rosto do piloto, até um instante atrás, já tinha se transformado em um vinco entre as sobrancelhas. Paulo correu para intervir.
— Com certeza, são todos muito bem-vindos.
— Teu amigo foi grosseiro e desrespeitoso comigo. Não é um tipo de pessoa que desejo convidar para a minha festa.
O olhar do piloto foi buscar o do amigo. Segui na mesma direção e vi que o Marra apenas moveu os ombros, sem desmentir ou se desculpar.
— Aprontou, cara? — Oguido perguntou.
— A famosinha que se ofendeu por pouco.
— Pouco? — Repeti, indignada. — Ele me chamou de…
Eu não era nem capaz de repetir, pois morria de vergonha. Júnior já tinha se afastado da confusão, meus amigos bebiam, alheios à problemática, e na roda estávamos apenas eu, o Paulo, o piloto e o mecânico.
— Garota de programa. — Ele fez questão de completar a frase que deixei subentendida. — Sinto muito pelo engano.
O mecânico ergueu uma das mãos, em um gesto de rendição, e com ela foi coçar a barba malfeita, em seguida. Vestia uma calça jeans e uma jaqueta de couro, e foi naquele instante que notei os anéis prateados e largos em sua mão. De péssimo gosto, por sinal.
Não tinha como eu o detestar mais.
— Porra, Marra! — Oguido reclamou do amigo e voltou sua atenção para mim. — Peço desculpas, sinceramente. Nós vamos indo.
Assenti e esperei que fossem mesmo.
— Vamos esquecer esse mal-entendido — Paulo adiantou-se à saída do piloto. — O rapaz já pediu desculpas e a 4Ty está muito feliz por receber o campeão da corrida!
Outros dois homens chegaram ao camarote, trazidos por uma das moças da recepção e perdi a mão naquela disputa. Paulo foi recepcionar os recém-chegados e sorriu, ao me apresentá-los, depois os homens se cumprimentaram entre si. Quando seguiram até onde Júnior e Andradas estavam conversando com outras mulheres, Oguido se aproximou de mim, que ainda digeria o sapo.
— Prefere que a gente vá embora?
— Preferia que ele fosse. Não tenho nada contra ti. Parabéns pela corrida, por sinal.
— Somos um combo. — Ele sorriu, querendo ser gentil, imagino. — Prometo que fazemos a social que combinamos e depois a gente some.
— Ok.
Acenei para o garçom, que trouxe a minha bebida, e esperei que o Paulo se afastasse da rodinha de pilotos. Cravei meu olhar fuzilante nele e movi o indicador, em um gesto para que se aproximasse. O gerente ficou sério e veio.
— Para o escritório, agora!
Girei sobre o meu salto e saí caminhando, sabendo que ele viria atrás. Entrei na área reservada e subi as escadas, até a mesa da Patrícia.
— Por que tu me desautorizou? — Joguei minha irritação sobre o gerente.
— Abafei um mal-entendido. É o piloto vencedor da corrida e a opinião dele conta muito.
— Fui insultada por uma pessoa da equipe dele. Por que a minha equipe não pode ser solidária comigo?
— Ele se desculpou.
— Ele riu da minha cara, não se desculpou!
— Mia, tu estás exagerando um pouco… Além disso, só o anúncio da vinda dos pilotos já modificou sensivelmente o público. Pode observar, tem pessoas de mais idade do que costumamos receber.
— Eu sou mesmo a prostituta da casa, então?
— Não disse isso, por favor… Tu me entendeu mal…
Empertiguei-me ainda mais e apontei o meu dedo em riste para a cara sem sal do gerente da 4Ty.
— Vou reportar o que aconteceu aqui para o meu pai. É para ele que tu vai ter que explicar o que é mais importante: o caixa ou o respeito à filha dele.
Passei pelo Paulo e desci as escadas de volta à festa. Precisava beber algo bem forte, para conseguir engolir a companhia da noite e ainda sorrir.
Théo
Que porra de lugar mais esnobe e sem graça! Um bando de riquinhos, curtindo com o dinheiro dos pais. Nem parecem ter idade para sair sem supervisão, quanto mais para beber. O único ponto positivo é reconhecer que a insatisfação da princesa da noite é idêntica à minha.
A cara da patricinha irritante é de quem está planejando um assassinato. Não sei bem quem será a primeira vítima: eu ou o gerente da casa. Ela acabou de voltar de algum lugar e entornou toda a tequila de um copo, em seguida chupou um limão com a cara azeda. O movimento seguinte, foi me procurar com os olhos.
Sorri, foi impossível resistir. Fiz um brinde, erguendo meu copo de uísque e ela revirou os imensos olhos azuis e os afastou de mim. O Júnior se aproximou, assim que a viu e passou o braço por sua cintura, diminuindo consideravelmente o espaço entre eles, depois os dois cochicharam algo. Ele sorriu e a mão escorregou mais um pouco.
Ela não vai reclamar? Bufar, espernear, bater os pezinhos e expulsar da festa? Ri comigo mesmo, novamente. Claro que não! A patricinha mimada e riquinha sabe quem ele é. Depois vem dizer que não ganha por hora.
— A tal influencer é gostosa pracacete. — Oguido disse, ao sentar ao meu lado no sofá curvilíneo.
— Nem reparei.
Ele gargalhou, depois soltou o copo sobre a mesa.
— Você a chamou de puta, mesmo?
— Não foi bem assim… Ela veio cheia de sensualidade para cima de mim, piscando os olhos, querendo me convencer a ir a uma boate. Porra, o que tu acharia, no meu lugar? — Ele concordou e bebeu novamente. — Perguntei quanto cobrava para fazermos uma festa privê. Ela que se ofendeu.
— Por que será, né?
— Vai saber.
— Imagino a sua cara ao propor isso. — Ele gargalhou de novo. — E que ela tenha, realmente, ficado puta. Como você não a conhece? Ela é filha de um dos donos daqui.
— Não foi assim que ela se apresentou, eu não podia adivinhar. Até me admirei que a casa oferecesse esse tipo de serviço, mas… Além disso, já pegamos putas de luxo lindas e bem-vestidas.
Sorri para ele, lembrando das nossas festas em São Paulo. Memoráveis! Mas meu amigo riu de novo. Só ele ri de mim e eu permito.
— Cara, me surpreende que você não perceba a diferença. Olha aquela mulher… Ela está mais para uma princesa, repara nas roupas de marca. Só a sandália deve valer mais do que o meu salário!
— Que exagero.
— Mas tem uma coisa que você disse, que me dá alguma esperança de que exista salvação para a alma de Théo Moreira.
Alcancei meu copo e levei aos lábios, depois de perguntar:
— Tem?
— Acabou de confessar que a achou linda. É um sinal.
Mandei que fosse se foder, sem achar graça, dessa vez. Mas quando percebi, olhava outra vez para aquele corpo escultural, pouco escondido dentro do macacão azul claro, que marcava deliciosamente a bunda, onde o Júnior ensaiava passar a mão.
Entornei a bebida, para me distrair com a queimação na minha garganta, não com o rosto perfeito, que às vezes me buscava e olhava com desdém. Decidi circular, para ver se a noite, ao menos, terminava melhor do que começou.