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Capítulos Iniciais

Minha Escolha:
Os Reis da Noite

CAPÍTULO I


“Saudade é para quem tem.”

(Marcelo Camelo)


Felipe

Tem coisas das quais lembramos nos mínimos detalhes, mesmo que o tempo passe por cima e apague os rastros, doure as folhas e mude as estações, as pessoas, os cheiros. Algumas lembranças criam vincos profundos e estão sempre à espreita. Qualquer movimento e podemos tropeçar nelas, sentir o joelho arranhado doer outra vez.

É o que acontece comigo, neste instante, ao perceber a forma com que a mulher na minha cama coça o nariz, enquanto dorme. Ela esfrega a ponta arredondada, para cima e para baixo, depois para os lados, fazendo movimentos circulares, e franze a testa. E o gesto me transportou para anos atrás, para a fila de uma cafeteria.

Na lembrança, a mulher à minha frente, de cabelos muito loiros, presos em um coque por dois palitos japoneses, fez esse mesmo movimento, enquanto observava as opções no balcão de salgados.      Cheguei a pensar que o gesto iria desatarraxar aquela bolotinha rosada. O movimento não surtiu o efeito de livrá-la da coceira, pois ela virou o rosto e espirrou, em seguida. Um som tão baixinho e agudo, diante da potência que se espalhou pelos meus braços, cruzados à frente do corpo. Tomei um banho de seja lá o que aquilo foi, saliva ou coriza.

No instante seguinte, um par de olhos incríveis, cor de âmbar, arregalados e assustados, se dirigiram para mim:

— Me perdoa! — Ela disse, passando a mão, envolta na manga de seu casaco, pelos meus braços. — Ai, que vergonha! Espirrei em ti!

Eu me incomodei, claro. Mas sou educado o suficiente para dizer a ela que não tinha sido nada, que estava tudo bem. Ela sorriu, constrangida, e eu a achei simpática. E a quem quero enganar, também achei linda. Aquele tom de íris, um castanho dourado, que eu nunca vira igual. O rosto oval com um sorriso aberto e perfeito.

— Tem outra forma de me recompensar pelo banho — sugeri e ela me encarou curiosa, aguardando. — Felipe — estendi a mão para a dela.

— Larissa — ela respondeu, segurando a minha.

E a lembrança seguinte é da aliança que coloquei em seu dedo, no dia do nosso casamento, dois anos depois.

Tem uma frase de Shakespeare que diz mais ou menos isso: “Eu te amei assim que te vi, e você sorriu, porque soube.” Larissa foi meu amor à primeira vista. E o último.

Esfreguei o rosto, buscando afastar essas lembranças que me atormentam, com frequência. A morena dormia esparramada, de bruços, e o lençol não cobria suas costas nuas. Não lembro seu nome. Não é uma das amigas que sempre revezam nossas camas. Tentei lembrar como ela veio parar aqui, e só conclui que foi depois da festa na casa noturna que fomos, em Xangri-lá. Olhei seu rosto e analisei. Eu estava bem bêbado, mas o bom gosto não me abandonou. Ergui a ponta do lençol e os demais atributos também eram interessantes. Menos mal. Sentei na cama e o gosto amargo da ressaca subiu pelo meu esôfago. Busquei o celular. Onze horas da manhã.

Levantei e afastei as cortinas. O dia estava radiante e o lago, diante da casa, brilhava. Mas o que me chamou a atenção foi o movimento na piscina, logo abaixo da janela. Sacudi a cabeça e sorri, feliz com o que via. Marcondes e Vitória estavam se pegando na piscina. Putão! Finalmente esses dois deram o braço a torcer. Espreguicei o corpo, percebendo que agora sou o último Rei da Noite solteiro.      Tem um reino à minha disposição, então, decidi acordar a gostosa e despachar.

Descemos logo depois, a direcionei até a porta, elogiando sua companhia agradável. Dei um último beijo e depois acenei, enquanto ela pegava o carro, que lembrei, foi o que nos trouxe para casa, já que o meu ficou trancado pelo do Marcondes. E por falar nele, hora de tirar um sarro daqueles dois.

Abri a porta de vidro e me aproximei da piscina. Pelo visto, somos apenas nós acordados, além da senhora que veio trabalhar na casa. Tinha uma mesa de café da manhã posta, embaixo do pergolado, e o casal na piscina estava quase evaporando a água, com o fogo daquele amasso.

Servi o suco, comi umas uvas, provei o café e nada deles me verem. Não julgo. Se aquela mulher estivesse assim, enroscada no meu colo, eu também esqueceria do mundo. Terminei o breve desjejum e corri na direção da piscina. Pulei, encolhi as pernas, e deixei o copo cair ao lado deles, fazendo uma verdadeira bomba-d’água, que atingiu os dois.

— Caralho — Marcondes reclamou, secando o rosto.

— Bom dia! — cumprimentei animado. — Os empregados estavam adorando a pegação, mas acho que deveríamos cobrar ingresso.

— Quem não gostar, que não olhe — ele respondeu, sem deixar Vitória se afastar de seu colo.

— Estou vendo que se entenderam, ainda bem! Não aguentava mais esse chato choramingando por ti.

— Ele choramingou muito, é?

— Nem um pouco — Marcondes se defendeu.

— Todos os dias — entreguei. — Igual ao Rodrigo. Por falar nisso, cadê nosso casalzinho grude?

— Não acordaram ainda.

— Não? Eles saíram antes de mim da festa...

— E como foi? Como é a casa noturna? — Marcondes perguntou. Sempre comparamos a nossa com as demais.

— Meia boca. Lotada demais, quente, ingresso barato, uma mistura de gente — ri, lembrando que mal conseguíamos caminhar.

— Bah, o Rodrigo deve ter adorado — Marcondes zombou.

— Sim — me encostei na borda da piscina. — Choro e ranger de dentes, mesmo no camarote.

— É a cara do putão! — Marcondes riu e Vitória se desprendeu de seu colo, indo se recostar no corpo dele.

— Acordaram — ela disse, indicando o movimento dentro da casa com o queixo.

Acompanhei seu olhar e Antônia e Rodrigo estavam parados, ainda do lado de dentro. Ele a puxou para si e beijou, como se não estivesse grudado na menina desde… Enfim, desde sempre. Ela se pendurou em seu pescoço e ele balançou o corpo, num abraço demorado.

— São um gude! — Eu disse, feliz demais por eles também, embora bem satisfeito com a minha situação de solteiro.

— Eles são muito fofos juntos, né? — Vitória elogiou, com a voz infantilizada.

— Vou até fazer um teste de diabetes, depois dessa cena. Acho que me deu um pico de glicose — Marcondes falou e nós rimos.

O abraço se desfez e a porta foi aberta. Eles olharam na direção da plateia, que sorria diante do espetáculo que presenciamos, e então a boca da Antônia se abriu e ela parou de andar. Levou as mãos às bochechas e guinchou:

— Não acredito! Vocês estão juntinhos? Abraçadinhos? Olha amor, o gatinho agarrou a gatona!

— Até que enfim! Não aguentava mais a choradeira.

Marcondes revirou os olhos, num gemido, e eu gargalhei, concordando com Rodrigo. Os dois se sentaram ao redor da mesa posta para o café e Tatá continuou sua inquisição indiscreta:

— Vai dando os detalhes, Vic! Como foi que aconteceu? Vocês sumiram durante o jantar...

— Vai achar um livro para ler, pirralha — Marcondes interferiu.

— Estou lendo um bem bom, por sinal — ela desfocou. — Vou te passar o título depois, Vitória. É de uma autora nacional muito boa.

— Sobre o que é? — Vitória perguntou.

— Bom, é um romance bem quente — Antônia sorriu e mordeu uma melancia, olhando para Rodrigo com uma carinha que, coitado… — Depois te conto.

— Bem quente — Rodrigo concordou, tomando o suco e erguendo uma sobrancelha.

— Tem que verificar a classificação etária, Rodrigo. Não dá pra deixar a gatinha ler essas coisas — Marcondes a provocou.

— Conta aí e deixa de frescura. Estão namorando? — Antônia insistiu.

Marcondes e Vitória se olharam. Claramente não falaram sobre isso e a saia justa apertou ali.

— O que temos não precisa de nomenclatura, Tatá — Vitória disse.

— Moderno — ela desdenhou de lá.

— Mas estamos juntos — ele garantiu.

Marcondes deu um selinho em Vitória e os dois sorriram. Ela voltou a olhar para frente e ele apoiou o queixo em seu ombro. Eu o conheço. Está apaixonado. E o sorriso que me dirigiu prova isso.

— E tu, Felipe, quando teremos a honra de conhecer a futura… Qual é o sobrenome dele? — Antônia perguntou ao namorado.

— Belinni — Rodrigo informou.

— Futura senhora Belinni?

— Espera sentadinha aí — respondi.

— Não me decepciona — a casamenteira Tatá disse.

— Estou muito bem assim. E agora que meus sócios estão comprometidos, alguém precisa manter a boa avaliação da casa.

— Ah… — as duas mulheres me olharam com desprezo.

— Já vi que o desfile naquele camarote vai continuar — Antônia reclamou, com uma careta.

— Se Deus quiser — respondi e ela me olhou com reprovação.

A verdade é que já existiu uma senhora Belinni. Larissa Monteiro Belinni. E eu não pretendo que mais ninguém ocupe esse posto, vago há três anos e meio. A imagem daqueles olhos dourados retornou, e mergulhei para esquecê-los.

— A equipe de organização da festa vai chegar a partir das 14 horas — ouvi Rodrigo informar, assim que retornei à tona.

Ah, sim! Daremos uma das nossas festas privadas, à noite. É carnaval e todo mundo que não foi viajar para fora do estado, vem. O pessoal sempre vem às nossas festas, elas são as mais fodas que existem. Claro que, em geral, nós somos a atração. Agora, os meus dois amigos estão amarrados e, devo acrescentar, parecem bem satisfeitos com isso. Então, a festa é basicamente só minha.

Eu costumava ser mais tranquilo e seletivo, antes de me divorciar da Larissa. Marcondes sempre foi o mais pegador de nós três. Rodrigo até tentava namorar, mas fora a Sheila, que engravidou, ele nunca mantinha ninguém por muito tempo. Mesmo na nossa adolescência, quando conheci os dois, o padrão era esse. Eu me sentia meio perdido, no começo.

Cheguei na capital do estado para estudar, atrás de um desafio maior. Meu pai queria que eu fizesse Engenharia Agrícola e para isso, precisava me forçar nos estudos. Matriculou-me no Colégio Anchieta, um dos mais fortes da capital, e comecei o Ensino Médio.  No primeiro dia, topei com o Marcondes. Literalmente. Esbarramos um no outro, na porta do banheiro. Ele fez cara feia para mim, nos estranhamos. Mas nunca fui de briga. Rodrigo chegou logo em seguida e eu me justifiquei:

— Desculpe, essa escola é enorme. Não achei o refeitório ainda — eu disse, pois estava totalmente perdido.

— Aqui é o banheiro — Marcondes informou.

— É, isso eu percebi — apontei para a placa.

— Te mostramos onde fica, estamos indo para lá — Rodrigo falou. Ele tinha uma expressão triste naquele tempo.

— Mas preciso ir ali primeiro — apontei para o recinto que eles deixavam.

— Vai mijar que te esperamos — Marcondes disse, me empurrando para dentro.

Eu fui e ao sair, eles ainda estavam ali. Marcondes passou o braço pelos meus ombros e enganchou meu pescoço.

— Diz aí, guri, de onde tu é que esse teu jeito de falar não é da capital.

— Sou de Cruz Alta. Comecei hoje.

— Ah, temos um calouro aqui — ele sorriu diabolicamente para o Rodrigo e eu devia ter desconfiado de onde estava me metendo. — Fica frio que vamos te mostrar tudo.

E mostraram. Tudo e todos. Colocaram-me em tantas frias e furadas que minha mãe foi chamada diversas vezes na diretoria.  Marcondes era o rei da escola, o cara pelo qual as gurias suspiravam. Eles me adotaram e nunca entendi o motivo. Todo mundo dizia que o Rodrigo e o Marcondes eram inseparáveis, desde a sexta série. Então, nos tornamos, os três.

De volta ao presente, as gurias decidiram se esturricar ao sol, segundo a Antônia, para estarem bronzeadas à noite. Rodrigo emplastou a namorada de filtro solar e Vitória se esparramou na cadeira, com aquela bunda arrebitada para cima. É uma visão incrível, aquelas duas juntas de biquíni. Até levei um safanão na nuca, por estar olhando.

— Quem tu pegou essa noite? — Marcondes perguntou, tirando minha atenção das mulheres.

— Não lembro o nome — eu ri, e fomos nos juntar ao Rodrigo, que acabava de mergulhar.

— Não é das nossas, então?

Nossas nem existe mais — lembrei a ele e o Rodrigo riu. — Mas não é ninguém do grupo.

— E a Márcia e Bruna, ficaram?

— Até onde eu vi, saíram com um cara.

— Eu acho que ali vai rolar um esquema — Marcondes deu de ombros.

— E como foi com a Vic? — Rodrigo perguntou. Não era muito diferente da Antônia.

— Nos acertamos. Segui o conselho do Felipe e fodi por todos os cômodos, inclusive na cama de vocês — ele gargalhou.

— Que merda — eu e Rodrigo reclamamos.

— Gamou mesmo? — Nem precisava perguntar, mas fiz questão de ouvir.

— Praga da gatinha — ele beijou o escapulário.

— Tínhamos certeza disso — Rodrigo riu. — Quando vocês demoraram ontem, a Antônia quase soltou fogos.

— Elas se deram bem — observei as duas mulheres conversando nas espreguiçadeiras.

— E tu para de babar pela minha raba — Marcondes me bateu outra vez.

— Ok — ergui as mãos. — Nosso acordo de cavalheiros está mantido. Mas não-olhar nunca fez parte das cláusulas.

— Começou a fazer a partir de agora, então. Também não te quero babando pela Antônia — o ciumento master entre nós, se manifestou.

— Estou feliz por vocês — abracei os dois e encostamos as cabeças, em um gesto muito nosso.

— Eu amo esse trisal! — Tatá gritou da cadeira.

Ela tem razão. Eu também amo. As poucas pessoas por quem posso dizer isso, hoje em dia.

CAPÍTULO II


“Percorremos uma longa distância

para pertencer a esse lugar,

para compartilhar essa vista da noite.

Uma noite gloriosa,

Além do horizonte, há outro céu brilhante”.

(Jason Mraz)


Rodrigo

Toda a casa estava decorada com motivos carnavalescos. Tinha um som alto rolando lá fora, onde depois um DJ ia comandar a noite. Convidamos cerca de oitenta pessoas, mas sempre tem os penetras e os que vem acompanhados, então, certamente, chegaremos a cem. Antônia estava apavorada com tudo isso, desde que chegou aqui. E insegura. Percebi que colou na Vitória, pois é a única com quem se sente à vontade.

Todas essas outras pessoas não têm a menor importância para mim. Foram interessantes, enquanto serviram de companhia, mas agora que tenho a minha princesa, parecem um bando de fúteis, sem a menor noção do que é a vida. Amigos, mesmo, tenho dois.

Antônia estava fazendo suspense com sua fantasia. Se trancou no banheiro e não me deixava entrar. Eu já estava pronto e rolava a tela do celular, para passar o tempo. Tinha fotos de várias amigas, já fantasiadas para a nossa festa, com legendas que mostravam a animação de todas, e suas altas expectativas. Como sempre, as melhores noites são as nossas. Essa vai ficar para a história!

Ouvi o barulho da chave girando na porta do banheiro e ergui os olhos, para ver, afinal, o que essa mulher inventou. O vão abriu lentamente e vi apenas o braço envolto em uma luva de cetim preta. Fiquei alerta, imediatamente. Ela saiu, alisando a saia. Eu fiquei feliz que não temos histórico de doenças cardíacas na família, porque meu coração disparou e todo o sangue começou a pulsar em um lugar só.

— Miau — Antônia fez e eu tentei absorver toda aquela figura na minha frente.

Antônia estava com uma saia armada por tule que mal cobria a calcinha, quem dirá a bunda! O corpete de couro tomara que caia era justo ao corpo, apertando o volume dos seios que, por um milagre qualquer, estavam parecendo maiores do que são realmente. Dois montes, saltados e unidos.      As pernas longas estavam cobertas por uma meia arrastão que terminava no meio das coxas torneadas, em uma faixa de renda, com um maldito lacinho rosa. Todo o resto da fantasia, incluindo o colar em formato de coleira, a tiara de orelhas e o rabo longo, são pretos. A maquiagem é pesada, embora os lábios estejam rosadinhos e o cabelo caia ao redor dos ombros, em ondas.

— Volta — eu disse apenas. Ela deu uma volta sobre si mesma e arrebitou a bunda, rebolando. —      Não é essa volta. Volta para o banheiro e vai vestir a burca.

Antônia gargalhou e se virou. Linda! Tão linda, que eu não tenho coragem de abrir a porta e deixá-la desfilar por aí.

— Tu vai colocar um turbante e uma túnica também? — Ela veio se enroscar em mim. — Porque esse corpão, assim exposto, também não me agrada.

— Minha bunda não está aparecendo.

— Não? Deixa-me ver — ela desceu a mão pela fantasia e mergulhou até as minhas nádegas, que apertou com força. — É um índio muito gostoso. E essa tatuagem, à vista, não facilita nada as coisas para mim.

Eu e meus amigos combinamos a fantasia. Vamos os três de cacique, com direito a um grande cocar e colar de sementes. Coisa do Marcondes. É basicamente uma saia de penas com uma sunga por baixo.

— Não muda o foco — beijei aquela boquinha gostosa e depois o volume dos seios. — Tu está muito linda, princesa. Aliás, podia ter usado um daqueles vestidinhos de princesa da Disney, bem comportadinhos.

— A Pocahontas? — Ela brincou.

— O daquela que só dorme seria melhor. Eu adoraria me divertir, na minha própria festa.

— E o que te impede?

— Vou ter que ficar cuidando dessa gatinha gostosa.

— Podemos ficar por aqui — ela passou os braços pelo meu pescoço e a proposta não era nada ruim. — Assim, nenhum de nós passa nervoso hoje.

— Com certeza, eu vou passar mais do que tu.

Descemos em seguida e tinha diversos convidados por ali. Todo mundo já com o copo na mão e os olhares masculinos caíram sobre a Antônia. Nem todos a conheciam ainda e esperava que a minha mão na dela fosse o suficiente para que desistissem de qualquer outra coisa, além de admirar.

— Gatinha! — Escutei junto com um assobio — Tu quer matar teu namorado, né?

Marcondes se juntou a nós, rindo da minha cara, já na largada. Ao menos fez o favor de anunciar para toda a casa que ela é minha namorada, sem que eu precise pendurar uma placa no pescoço.

— Tu já viu a tua? — Antônia rebateu, enquanto ele a fazia girar sob seu braço, admirando o corpo escultural da minha garota.

Felipe se juntou a nós e a Antônia gemeu.

— Isso aqui é um desaforo com a comunidade feminina — ela apontou para nós três. — Deve ter algo na Constituição que proíba vocês de andarem sem roupa, por aí.

— Não tem. Já li toda — Felipe afirmou.

Um garçom se aproximou, oferecendo bebida e petiscos. Servimo-nos e Marcondes ia levar o copo à boca quando parou, no meio do percurso. Ficou sério, como poucas vezes o vejo, muito menos em uma festa. Virei-me, para entender o motivo de todo aquele exagero, e precisei rir, ao compreender.

Vestida como a Mulher Maravilha loira mais sexy que já vi na vida, Vitória vinha caminhando na nossa direção. Todos os olhares masculinos acompanhavam seu desfilar em cima de uma bota de couro vermelho e de salto fino, que terminava nos joelhos. Alguns centímetros acima, começava a saia. Alguns bons centímetros. Os peitos fartos quase saltavam do busto tomara que caia. Se eu tinha passado mal com a Antônia, acabava de achar a roupa da minha namorada comportada.

O movimento do Marcondes foi rápido e ele caminhou até a Vitória, apressado, passando os braços por sua cintura e beijando a boca, claramente marcando o corpo como seu. Felipe e eu nos olhamos, sem conseguir prender a gargalhada que seguiu. Ele nos olhou, fulminante, e arrastou Vitória até a nossa roda.

— Vocês foram a uma sex shop comprar as fantasias? — perguntou, tão enciumado quanto eu, agora.

— Claro — Vitória riu. — Em loja normal não encontraríamos nada tão apropriado — ela e Antônia bateram as mãos no alto, comemorando sabe Deus o quê. — Está linda, gatinha.

— Tu também, gatona!

— Já podemos começar os trocadilhos infames de índio? Porque estou pronto para usar o tacape — Marcondes disse e nós rimos.

— Primeiro, uma selfie — Antônia sugeriu e tirou o celular da cintura.

Posicionamo-nos, os cinco. Ela nos enquadrou e todos sorrimos. E sem saber, registramos o instante antes de tudo desabar.


Felipe


Casa cheia, som alto, gente bonita e bebida à vontade. Assim são as nossas festas e está sendo show. Canhões de raio lazer, gelo seco e som potente. Tem, inclusive, um espetáculo circense acontecendo à beira da piscina. Um grupo faz malabares e eu acabei de ver um cuspidor de fogo lançar uma labareda, que aqueceu ainda mais a noite.

Estamos dançando sobre o tablado que foi disposto sobre a grama, perto do lago. O DJ misturava músicas de carnaval antigas, com samba raiz e eletrônica, uma miscelânea que só faz sentido porque já bebemos bastante. Tem uma mão na minha, que eu não sei de quem é. Ela usa uma máscara rendada, daquelas venezianas. Não falou nada ainda. Estou curioso sobre ela, que prendeu minha atenção assim que percebi a fantasia.

Foi quase sem querer que a vi. Entrei na casa para ir ao banheiro e ela estava na sala, observando uma estátua de gosto duvidoso. Aquela peça retorcida em mármore rosado destoava de toda a decoração da casa. Mas foi a postura da mulher, fantasiada com um longo vestido de época, que me deixou curioso. Ela mexia a cabeça, analisando a escultura terrível, e parecia buscar por algo a mais.

Minha bexiga impediu que eu falasse com ela, embora me sentisse compelido a isso. Queria entender o que viu naquele pedaço de pedra. Mas quando saí do banheiro, ela não estava mais na sala. Voltei ao pátio, me envolvi com as conversas e dei uns beijos em algumas bocas. Até percebê-la novamente.

Parecia deslocada. Não conversava com ninguém, segurava a taça do coquetel diante do corpo, mas não o bebia. Também não dançava. Ela destoava, totalmente. E olhou na minha direção.

— Quem é aquela? — perguntei ao Marcondes, que conhecia praticamente todo mundo ali.

Ele a observou por um tempo, de rosto franzido, como quem busca algo na memória. Sacudiu a cabeça e decretou:

— Não faço ideia. Deve ser convidada de alguém.

Tentei desligar de sua figura, mas cada vez que olhava na direção do pergolado, ela estava lá, parada, com o copo na mão e me observando. Então, fez algo diferente. Sorriu levemente e ergueu a taça para mim. Foi como um start. Meus pés começaram a caminhar na direção dela, puxados por uma força que eu não reconheci.

Estava a poucos passos, quando a Bianca atravessou meu caminho. Enroscou os braços no meu pescoço e me deu um selinho:

— Quero fazer parte da tua tribo — disse, meio alta já. — Tu é quem? O cacique, o curandeiro ou o guerreiro?

— Sou o que tem a maior lança — entrei na dela.

— Hahaha… — ela gargalhou, jogando a cabeça para trás. — O Marcondes me disse o mesmo.

— Tu te arriscou a perguntar isso para ele? Sabe que ele está com a Vitória, né?

— Fiquei sabendo — ela fechou o rosto e vi as lágrimas se formarem. — Ele me disse, com todas as letras.

— Não fica assim — envolvi a pequena morena nos braços. — Tem um rei ainda.

— Eu sei. Mas eu estava gostando dele. Por que a Vic? Ela vive de cara azeda pro Marcondes.

— Desde quando a gente sabe isso, Bianca? Aconteceu e vamos respeitar, né? Olha quantos caras aqui estão sozinhos… Até eu!

— Tu é muito fofo — ela me deu outro selinho.

— Então, diz para mim, qual deles tu quer hoje? Dou a ordem e ele estará aos teus pés.

— Vou dar uma circulada e decidir, depois te digo.

— Combinado.

Bianca se afastou e lembrei o que estava indo fazer. Ia descobrir quem era a mascarada. Mas ela não estava mais no pergolado. Olhei ao redor e a vi observando o lago. Fui novamente atraído até ela, como uma mariposa à luz de uma lamparina. O som alto a impedia de ouvir minha aproximação. Toquei em seu ombro e a mulher se assustou levemente.

— Desculpe — eu disse, enquanto ela secava o líquido que virou em seu vestido. — Não quis te assustar.

Ela apenas concordou com a cabeça. Os cabelos castanhos estavam presos em um típico penteado de antigamente, com tranças e retorcido em si mesmo, mas alguns fios caíam ao redor de seu rosto. Parecia vinda diretamente do passado.

— Sou o Felipe — estendi a mão para a mão para ela, que retribui o gesto. — Uma dama antiga, em uma festa de carnaval, acho que devo cumprimentá-la devidamente.

Beijei o dorso de sua mão enluvada e ela dobrou ligeiramente os joelhos, em uma reverência. Dei risada. Ela estava fazendo bem o papel e gostei. Decidi entrar na brincadeira.

— A dama tem um nome que possa me dizer?

Ela sacudiu negativamente a cabeça e levou a mão ao pescoço, como se dissesse que não podia falar. Estava escuro, e de costas para a casa, eu não conseguia ver muito bem seus olhos atrás da máscara.

— Tu veio com alguém? — Ela negou. — Ah, é penetra? — Ela confirmou e sorriu, sem mostrar os dentes. — Sabe o que fazemos com penetras, nas nossas festas? — Fiz uma expressão severa e ela negou, mas sem nenhuma preocupação evidente — Obrigamos a dançar no pole dance.

Ela cobriu a boca com a mão e seu corpo sacudiu, em uma risada. Mexeu a cabeça na direção da pista e segurou minha mão. Vamos dançar, então. A mulher mascarada parou diante de mim e começou a rebolar, com um jeito que não condizia com sua fantasia, finalmente. Ela se esfregou em mim, deslizou até o chão, rebolou, agarrada no meu pescoço e descobri com quem queria terminar a noite. Tinha algo nela que me segurava como ninguém mais fizera, depois da Larissa. Ela ganhou toda a minha atenção, sem sequer me dizer seu nome, nem sabia se era realmente muda ou se estava sem voz, apenas.

Agora, observando bem, ela tem algo da Lari. A mesma altura, o mesmo cabelo. Procurei por seus olhos atrás da máscara. Era difícil de observar, pois ela não os fixava em mim. Mas o formato do rosto e da boca eram bem semelhantes, e o jeito de morder os lábios, ao dançar sensualmente, também. Larissa adorava dançar para mim, comigo, em mim. Meu coração acelerou, com medo. Porque a única pessoa que me deixou assim, desde o primeiro momento, foi minha ex-mulher.

Segurei firme em seus braços, fazendo com que parasse de dançar e ela me olhou, assustada pela primeira vez. Arregalou os olhos e eu pude vê-los. Eram negros. Não dourados. Isso me trouxe um alívio tão grande, que soltei o ar que vinha retendo e me sufocava. Tomei seus lábios sem qualquer outra palavra. Ela não era a Larissa, mas bem que poderia ser. Por esta noite, talvez ela seja.

Não tenho a menor dúvida de que ainda amo a Larissa. Um idiota, paspalhão e imbecil, isso que eu sou. Amo a mulher que me largou, que jogou anos de casamento no lixo, sem sequer um aviso prévio.

Naquele dia, cheguei em casa, depois de uma viagem com os guris, a negócios, e o apartamento estava vazio, sem as roupas dela. Tinha uma carta, ao menos isso. Ela dizia que não iria recusar a proposta de morar e trabalhar na Europa, e que preferia fazer isto sozinha, para se dedicar à carreira, sem qualquer distração. Porque me amar a impedia de criar, foi o que alegou. Ela precisava sentir, para que suas peças fossem, de verdade, uma representação de pessoas. Não dava para ser feliz e criar sobre a dor, explicou.

E eu fiquei diante do vazio. Ela poderia usar a minha dor como tinta para suas telas, matéria prima para suas esculturas. De molde para sua arte. Porque foi maciça e escura, por alguns meses. Mas meus amigos me ajudaram a erguer a cabeça acima do lodo e a voltar a respirar. Rodrigo passou por algo bem parecido, com a namoradinha de adolescência. E os dois também estavam divorciados, já éramos donos da 4Ty e dos investimentos que sempre fizemos juntos. Caímos na farra, para esquecer que o amor não caminha ao lado dos reis.

A boca colada na minha tinha um gosto doce e beijava com conhecimento de causa. Encaixamo-nos com perfeição e ela aumentou nosso contato. Segurei sua nuca e senti seu corpo se achatar contra o meu. Ela gemeu, eu escutei, e me apertou ainda mais, escorregou a mão pelas minhas costas, em um convite bem claro. Eu já estava a fim disso desde que a vi torcer o pescoço, na sala. Deixei sua boca e desci os beijos, seguindo o contorno de seu queixo, até encontrar um ponto atrás de sua orelha. Segui pelo longo pescoço, com uma sensação incrível de familiaridade. Já tinha bebido algumas doses, não estava alterado, mas me embriaguei no perfume de sua pele.

— Quer ir para o meu quarto? — convidei, já sem suportar mais.

Ela confirmou, movendo a cabeça e deslizando a mão para minha bunda, por dentro da fantasia. Uau! Voltei ao beijo e ela se separou de mim, puxando meu braço para que a acompanhasse. Mostrei a ela o caminho e passamos por diversos casais que se agarravam pela casa. Tinha um até na escada. Era quase uma suruba coletiva. Passamos por eles e abri a porta do quarto, iluminado por um abajur. Ela me agarrou, assim que passei a chave.

Meu Pai! Ela não falava, mas agia como se a casa estivesse pegando fogo e a urgência dela parecia maior do que a minha. Arrancou meu cocar e beijou meu corpo como se tivesse fome. Selvagem. Bruta. Como quem salivou por muito tempo à espera disso. Prensei seu corpo contra a parede e a levantei no colo. Aquele volume de saias atrapalhava um pouco, mas ela passou as pernas pela minha cintura e tive livre acesso aos seios. Seu peito estava agitado, subia e descia com força, e ela prendia os dedos em meu cabelo, permitindo que mergulhasse a língua entre o volume à minha frente.

— Acho que podemos tirar esse vestido agora — sugeri e ela concordou.

Pousei aquele corpo no chão e ela se virou de costas. Desabotoei os cinquenta mil botões que tinha ali, beijando sua nuca muito clara e exposta.

— Tu veio do passado mesmo? Como pode ser tão clara, em pleno verão?

Terminei aquela tortura e uma vez aberto o vestido, escorreguei as mãos pelos braços, afastando o tecido de sua pele suada. Observei o corpo, sem conseguir afastar as mãos dela. Era magro, mas tinha curvas de mulher, alguém que não se preocupava tanto com a magreza ou dietas radicais. Magra porque era geneticamente assim, porém tinha carnes em seus quadris. E foi neles que percebi algo. Uma tatuagem de uma pena envolta pelo símbolo do infinito. Deslizei o dedo pela figura e ela acompanhou com o olhar. Segurou minha mão ali e espalmou a dela sobre a minha.

— É bonita — elogiei, hipnotizado por tudo nela.

Ela se virou e me beijou docemente. Não mais com fúria, nem desespero. Alisou meu rosto, que mantinha entre suas mãos. Depois me abraçou, com um aperto forte.

— Nos conhecemos? — perguntei, pois sentia o mesmo por ela.

Ela fungou e senti lágrimas molharem meu ombro. Assustei-me e a afastei um pouco. Tentei tirar a máscara, mas ela impediu.

— Me deixa ver o teu rosto — pedi e ela negou, se afastando.

Estava apenas de lingerie, um conjunto de renda azul escuro, do mesmo tom da máscara. Novamente, uma sensação incômoda me invadiu, pois ao ver todo o conjunto que seu corpo formava, era exatamente como lembrava ser o da Larissa. Eu morei naquele corpo por oito anos, venerei como um santuário, visitei cada menor parte dele. Eu vivi dele. Mas os olhos não eram os dela. Jamais, mesmo que viva mil vidas, esqueceria aquele olhar. O tom dourado que iluminou meus dias, até desaparecer.

A mulher de máscara caminhou pelo quarto e engatinhou sobre a cama, como uma gata selvagem.      Recostou-se nos travesseiros e abriu os braços, me chamando. Tinha as pernas flexionadas e levemente afastadas, outro convite bem explícito. Mas algo me impedia de ceder. Não sei bem o quê.

Talvez fosse a semelhança absurda dela com a mulher que mais desejo esquecer na vida. Talvez a mudez, que repentinamente começou a me incomodar. Mas, certamente, tinha muito a ver com as lágrimas que ela deixou sobre o meu ombro. Jamais transaria com uma mulher emocionalmente abalada. Tinha algo errado nela e não serei a pessoa que ela vai usar para resolver isso.

— Olha, acho que é melhor a gente voltar para a festa.

Ela sacudiu a cabeça, rapidamente, negando. Abriu os braços e as mãos, me chamando para si, mas eu estava travado, com as mãos na cintura, sem saber o que fazer. Se a deixava ali, sozinha, ou se a arrastava lá para baixo.

A mulher ajoelhou na cama e veio na minha direção. Sentou-se sobre os calcanhares e levou as mãos ao fecho dianteiro do sutiã. Desencaixou a pequena peça, em formato de coração, e os dois seios sorriram para mim, como velhos conhecidos. Nem reagi, de tão chocado que fiquei.

Ela pegou minha mão e envolveu o próprio seio. Todo o sangue em meu corpo circulou mais forte e me deixou… Acho que escorreu pelas minhas pernas e se concentrou ali, pois comecei a andar os passos para trás, me soltando de sua mão, sentindo o vazio do seio quente na minha palma, mas aliviado por conseguir manter distância daquele corpo.

— Como, Larissa? — Consegui formular, juntando com dificuldade as palavras.

Ela sacudiu a cabeça, surpresa. Levantou-se da cama e veio até mim, agora me prensando contra o roupeiro do quarto. Eu me sentia como se estivesse diante da cena de um crime. Atônito, apavorado e culpado, muito culpado.

Aproveitei a proximidade dela para puxar a máscara. Arranquei aquele acessório de seu rosto, sem muita delicadeza. E meu coração errou uma batida, porque o que antes era uma forte suspeita, enfim, se confirmou. Era ela. Mesmo sem a porra dos olhos cor de âmbar, era ela. Mesmo sem dizer uma palavra com a voz que sempre amei, porque meu corpo a desejou, antes dos meus olhos a reconhecerem. Meu coração a encontrou, antes mesmo de eu perceber que era ela. Outra vez.

— Que palhaçada é essa, Larissa? Tu está de lente? Por que isso?

A mulher, quer dizer, Larissa, suspirou fortemente e foi sentar na ponta da cama, com as mãos no rosto. Com calma, tirou as lentes negras, expondo aqueles olhos dourados que nunca esqueci. Que todos os dias estiveram diante de mim.

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