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Capítulos Iniciais

Minha Aposta:
Os Reis da Noite

CAPÍTULO I

“E o que foi virou prefácio do que somos.”

(Carreteiro e Capataz)

Antônia

De repente, minha vida se tornou um enredo de livro hot. Daqueles bem clichês, com CEO bonitão e a garota sem graça, que ninguém entende por que ele se interessou. E que fique claro, a mulher sou eu. Garanto a você, pois já li alguns e até são bons. Mas certamente, a minha história não será.

Dito isso, vamos ao motivo pelo qual eu estava enfurecida, com o celular preso entre a orelha e meu ombro, enquanto jogava a mala de rodinhas sobre a cama e falava com minha melhor amiga, a Bella:

— Meu pai é um cretino! — abri o fecho e depois sequei a milésima lágrima que verti por aquele assunto.

— Conta uma novidade, Tatá — ela me ouviu fungar, pois a pergunta que fez em seguida, apesar de ter resposta óbvia, veio em um tom preocupado — Tu está chorando?

— De raiva, como sempre — virei-me para o armário de quatro portas e o abri, despejando as roupas de verão na mala, sem muito critério. — Ele me perdeu em uma aposta, Bella. Tu tem noção do que é isso?

É o quê? — Ela guinchou do outro lado do aparelho — Que bosta é essa, guria?

— Vindo do meu pai, não dá nem para se admirar, não sei nem por que ainda choro por isso.

Mas sigo chorando. Sentei-me na cama, levei a mão até o rosto e cobri os olhos, soluçando. Escutei a porta do meu quarto ser esmurrada pelo meu pai, me chamando com sua voz imperativa e grossa, ordenando que eu abrisse.

Mas como assim, te apostou, criatura? Te apostou para o quê?

— Para passar duas semanas na casa de alguém.

Tatá, eu vou até aí e tu pode me explicar isso com calma… E vamos dar um jeito no que for — Bella me disse, aflita.

— Não adianta — respondi entre soluços e lágrimas, quase sem fôlego — o cara vem me buscar em quinze minutos.

Cara? — A indignação e o pavor na voz dela me desesperaram ainda mais.  — Que cara, por Deus? Tatá, eu vou levar a polícia aí!

— Não! — De repente minha sanidade retornou — A polícia não, Bella. Ele me apostou no jogo, a polícia não pode saber.

Maria Antônia — ela gritou comigo — É justamente a polícia que tem que saber disso! Não só por causa do teu pai, mas também por esse homem que te comprou. Não posso nem imaginar a quantidade de crimes que eles estão cometendo!

Ah, mas eu podia! Conhecendo meu pai, talvez este ainda seja o mais brando de todos. Jair Avillez é um filho da puta trambiqueiro, que minha avó me perdoe. Por sua mecânica de carros passa todo tipo de contravenção, de venda de peças do mercado negro até lavagem de dinheiro. Não me admira nada se não for um ponto de distribuição de drogas também. Como eu sei? Cresci lá dentro, trabalhei e moro em cima dela.

E como se não bastassem esses crimes, ele ainda busca outros, fora. Como apostar em corridas clandestinas e jogos ilegais. E foi em uma dessas casas que a sorte o abandonou, como ele justificou o fato de que, após perder uma fortuna e levar uma surra que o trouxe para casa quase desfigurado, porque não poderia pagar, ofereceu à mesa o seu bem mais precioso. Eu.

Pode rir e duvidar. Foi o que eu fiz, quando ele me contou com aquela cara deslavada e machucada, como se fosse a vítima. Mas a verdadeira vítima dele sou eu, sempre fui eu. Que pai faz isso com a própria filha, não é? E por que o cretino não apostou a mecânica? Fiz esta pergunta também. Ele me olhou como se eu perguntasse algo em outra língua, e tão chocado, que até refiz mentalmente a frase, para entender se não o tinha acusado de matar, picar e congelar alguém no nosso freezer.

— Como apostaria a mecânica? — Ele conseguiu formular, após o choque inicial — Do que viveríamos?

— Não sei, pai… Me diz tu. Com dignidade? Honestidade? Um pouquinho de amor, podia mesmo ser ínfimo, já seria mais do que eu estou sentindo agora, vindo de ti.

E foi nesse momento, no final da nossa discussão, que vim para o quarto fazer as malas. Sabe o que mais doeu, em tudo isso? Ele sequer disse que sentia muito.

Mas tu não é obrigada a aceitar, Tatá! Por que vai te submeter outra vez aos vícios do teu pai? Tu não é mais criança.

Minha amiga tentava me demover da ideia, mas quando se trata do meu pai, nunca fui racional ou madura o suficiente.

— Porque ele chegou todo quebrado em casa, Bella. Um olho nem abre e ele não quer ir ao hospital. Disse que não pode denunciar os caras da casa de jogo e que foi um último aviso. Também não foi a primeira vez que isso aconteceu, mas ele não aprende. Ele é minha única família, tu sabe disso. Sabe que sempre acabo fazendo o que ele quer. Não posso perder meu pai também.

Desculpa, amiga, mas esse homem não é exatamente um pai.

— Mas é o que eu tenho.

Bella ainda dizia frases e ameaças ao meu ouvido, jurando que me salvaria daquela situação, e meu pai ainda batia na porta, pedindo que eu abrisse. Mas o que mais ele poderia me dizer ou como se justificaria? A situação era clara: o tal desgraçado que ganhou quinze dias na minha companhia, sabe Deus o porquê — e eu espero que isso esteja no domínio de Deus e não do Diabo — chegará em cinco minutos para me buscar. E as consequências, caso eu não cumpra as condições da aposta, não serão nada boas para o meu pai. Quem recheará nosso freezer, será ele.

A merda disso tudo é só uma: eu amo o meu pai. Ele é um cretino, filho da puta (desculpa de novo, vó) e trambiqueiro, mas é meu pai. Criou-me sozinho, me deu tudo que eu podia querer, com exceção de um amor paterno. Mas isso não me impede de sempre buscar, de rastejar por um pouco de sua atenção. E mesmo agora, adulta, isso não está resolvido em mim. Mas ao contrário dele, eu jamais o decepcionei. Por isso, e por uma questão que ainda buscarei um psicólogo para entender, desliguei o telefone, abri a maldita porta do quarto e fui para a sala, puxando a mala, com ele no meu encalço.

— Tatá, ele me prometeu que isso não terá nada sexual envolvido, tu entendeu isso?

Uau! Essa é mesmo a única preocupação dele na situação toda? Achei que nunca me surpreenderia o suficiente com meu pai e eu estava certa. Estanquei entre o sofá marrom e a mesinha de vidro. Virei para ele, pronta para quebrar suas ilusões a meu respeito:

— A tua única preocupação é com a virgindade que já não tenho há anos, pai? — ele arregalou os olhos, surpreso. Sim, ele achava que eu era uma donzelinha intacta, apesar de ter namorado um ano o mesmo cara e tê-la perdido muitos anos antes, com outro — Não com o fato de que não conhece o homem que vai me levar daqui por duas semanas e pode muito bem ser um bandido, um psicopata, um pervertido, sádico…

— Ele não é, e eu o conheço — meu pai fechou o rosto diante da acusação e fez uma careta, levando a mão às costelas. — E costuma honrar suas promessas.

— Ah, costuma? Jogar e apostar a vida de outras pessoas é comum entre vocês? Na certa tem vaga para um santo qualquer com essa descrição.

— Antônia, eu não tinha opção — meus olhos indignados responderam que ele estava enganado, sempre se tem — mas ele disse que não vai tocar em ti.

— E com isso, o senhor acha que está tudo resolvido? E, francamente, por que um homem pagaria para passar qualquer tempo de vida comigo? Não sou ninguém. E se ele nem pretende transar, então, realmente não entendo.

— Acho que ele ficou com pena de ti — meu pai me deu as costas e foi mancando até a janela, que dava para a rua em frente à mecânica.

— Bom, ele é melhor do que meu próprio pai, então.

Meu pai se virou e me encarou. Sei disso, pois embora não olhasse para sua cara, sentia o olhar dele e a respiração agitada.

— Serão apenas duas semanas. Aceita como uma recauchutada nas tuas férias — a voz dele foi firme e sem o menor sentimento — Rodrigo chegou, não faz drama.

As palavras tiveram efeito totalmente oposto à ordem. Meu choro irrompeu, alto e cheio de desespero. Agarrei uma almofada e abafei os gritos nela. Os três toques rápidos na porta me fizeram desejar correr e nunca mais retornar àquela casa.

Rodrigo

Estacionei o carro diante da mecânica Alvorada e respirei fundo. A merda dessa situação me incomoda, não posso negar. Nem sempre a vingança é um prato saboroso, este começava a me parecer indigesto. Apoiei os braços e a cabeça sobre o volante e tentei raciocinar com frieza.

Quando meu amigo Marcondes nos convidou para uma noitada diferente, nunca imaginei onde terminaríamos. Até já devia ser escaldado em relação a ele, mas o Felipe tem razão de rir da minha cara quando afirma que sou o mais ingênuo de nós três. É, eu tenho fé nas pessoas. Coisa que nenhum dos meus amigos têm.

A festa, que começou na nossa casa noturna 4Ty, passou por uma boate com algumas prostitutas e terminou em um cassino clandestino a bordo de um iate de luxo. Eu realmente não sei dizer quanto tinha bebido, àquela altura, para aceitar embarcar naquela ideia do Marcondes. Mas se tem algo que não esqueci foi o que senti ao ver Jair Avillez sentado ali, apostando alto.

O rosto dele não deixou dúvida de que me reconheceu também. Sim, nós somos velhos conhecidos. E foi nesse momento que a bebida bateu forte e eu fiz a maior besteira dos meus 39 anos de vida. Sentei-me naquela porra de mesa e decidi que arrancaria tudo dele. Até as malditas cuecas fedidas, se fosse o caso.

Não sei de onde me saiu tanta confiança. Não sou de fazer isso a dinheiro, embora eu e meus sócios fizéssemos por diversão, muitas vezes. Sei jogar pôquer, mas também costumo perder. Nessa madrugada, pelo visto, eu estava com uma boa mão. Quando me deparei com a combinação de cartas, foi difícil manter a imparcialidade no rosto. Marcondes deve ter reparado, pois me conhece como a ele mesmo, e desistiu. Sobramos apenas eu e o Jair. E foi ali que a merda aconteceu.

— Pode desistir, se quiser — eu o desafiei.

— Tu já devia saber que nunca desisto, Rodrigo.

O mesmo sorriso petulante e seguro, me deu vontade de quebrar todos os dentes daquela boca. Não seria diferente, se estava nessa maldita mesa apenas movido pela minha vingança pessoal.

— Não quero a porra daquela mecânica falida, já vou avisando.

— Não tenho uma mulher para te oferecer — ele me provocou, futricando sem dó na minha ferida. — A menos que queira a minha filha.

Aquela frase me desconcertou. Como ele podia fazer isso? Sequer pensar, quanto mais verbalizar. Deus, eu tenho uma filha e mesmo que não tivesse, jamais imaginaria que um pai fosse capaz daquilo. Mas diante de mim não estava qualquer homem. Estava o pior espécime humano que já havia cruzado a minha vida. Por isso, acreditei.

— Sendo tua filha, não deve valer muito.

— Mas ela tem mãe.

O olhar que o filho da puta me deu, fez meu sangue ferver. Ele estava negociando a filha dela?   Quão cretino eu mesmo seria se aceitasse? Muito, pois já sabemos que aceitei.

— Isso é tão fodido, mesmo vindo de ti, Jair — Marcondes verbalizou o que se passava na cabeça de todos ali, certamente. — Vai apostar a filha, como se fosse uma puta?

— Se fosse puta não teria valor algum — ele não tirava os olhos de mim, desafiador. — É bem o contrário.

— Essa aposta ficou boa, a última puta virgem da cidade? — Marcondes me provocou — Eu não deixaria passar.

— Eu não faria isso com ela, de qualquer forma — respondi, porque algum resquício de decência eu ainda tinha.

— Essa certeza eu tenho — o imbecil do Jair riu na minha cara. — Sempre foi teu fraco, não é? Esse excesso de consciência e moral.

— Aceita, Rodrigo. Eu como, não tenho consciência — Marcondes afirmou, não sei se para me apoiar ou provocar o Jair.

Foi apenas nesse momento que meus olhos deixaram os do Jair para irem comer vivo o meu amigo. Ele sabia muito bem o que estava em jogo ali, quem era a moça, a mãe dela e o quanto significava para mim. E foi nessa hora que eu percebi, só Deus deve saber o motivo, que eu precisava proteger aquela menina. Do próprio pai, do Marcondes e de qualquer outro homem que sentasse diante do Jair em uma mesa de jogo. E eu tinha a melhor mão. O jogo era meu. A guria também seria.

— Aceito — respondi, voltando a colar os olhos no meu oponente. Oponente de longa data. — E dobro a aposta anterior.

Jair sorriu, mostrando os malditos dentes que uma vez eu quebrei. Dava para ver a marca da restauração nos dois incisivos. Puxou a carteira e de dentro dela tirou uma foto 3x4, que imaginei ser da filha. Soltou em cima das fichas que eu tinha empurrado para o centro da mesa. Ele estava tão confiante, tão certo da mão que tinha, que não titubeou sequer um pouco. Baixou suas cartas, mostrando o Straight Flush que ia do oito à dama, do naipe de copas. Então esperou, mantendo a pose.

Não tive pressa. Tomei um gole do uísque, sem expressar nada em meu belo rosto. Passei a mão pelos meus fartos e revoltados fios de cabelo, onde alguns fios que já estão prateando. Então, espiei para Marcondes e Felipe, que aguardavam afastados da mesa. O leve sorriso que dei fez a cara dos dois se abrirem, em expectativa. Abaixei os olhos para as cartas diante de mim, todas do naipe de paus: dez, valete, dama, rei e ás. Royal Straight Flush.

Fui descartando carta por carta, com o prazer de ver o sorriso do homem que mais odeio neste mundo se desfazer a cada uma delas. Mas a melhor deixei para o final. Ao ver a rara combinação diante de si, o suor brotou na testa do Jair. Nem respirava, o que me fez retardar um pouco mais o descarte do às. Talvez ele morresse sufocado antes disso.

O olhar que me dirigiu foi de pânico, isso devo admitir. Ele jamais esperava. Jair tinha uma boa mão, a minha foi pura sorte. Estendi o braço para recolher meu prêmio e ele rapidamente agarrou meu pulso. Tinha uma expressão de desespero e a voz saiu como algo gutural:

— Não fode ela — implorou.

Deus há de me perdoar. Um dia, estarei diante Dele e pedirei de joelhos que me perdoe. Mas naquele momento, eu gargalhei.

— Pensei que essa frase fosse minha — retruquei, tão satisfeito com o pavor que via em seus olhos, que até poderia ter desistido daquela maldita aposta, naquele instante.

— Rodrigo, não estou brincando, tu prometeu.

— Duas semanas, Jair. Em duas semanas eu devolvo a mocinha e tu poderá perguntar se a fodi ou não. Pego ela amanhã, às três da tarde.

E foi por causa desse misto de bebida, vingança e orgulho que estava ali, diante da maldita mecânica, prestes a arrastar para minha casa uma moça que não tinha nada a ver com a culpa dos seus pais.

Acontece que não estou mais bêbado. Estou com uma puta dor de cabeça e isso tem relação direta com a minha consciência. Eu não sou esse cara. Não sou o predador, não aposto a vida de crianças, nem me vingo nelas. O único jeito que vejo é acabar com isto de uma vez.

Saí do carro, coloquei os óculos escuros, que disfarçam minhas olheiras e amenizam o brilho desgraçado desse sol de verão, e adentrei a oficina pela pequena porta aberta.

— A casa do Jair, onde é? — perguntei ao jovem que mexia no motor de uma Mercedes, apesar de ser domingo.

Até acharia suspeito, se não conhecesse o Jair o suficiente para saber que era mesmo.

— Ali — ele apontou para uma porta — é só subir.

Olhei ao redor. A mecânica é grande e está lotada de carros. Eu sei que o negócio não é cem por cento lícito, embora tenha fama de ser competente. Meu carro jamais colocaria as rodas naquele chão.   Segui para a porta, que abria para uma escada e no final dela encontrei um átrio e outra porta. Bati três vezes, louco para terminar com aquilo.

Jair abriu, com o rosto impassível e deformado. Surpreendi-me, pois não estava assim quando o vi pela última vez. Irritou alguém ainda mais do que a mim, pelo visto. Mas ele não vai implorar, eu já sei. Sequer me dei ao trabalho de cumprimentá-lo. Pretendia apenas despejar as frases em sua cara, entregar o recibo de quitação da dívida e me virar para ir embora, mas ouvi o som. O choro desesperado e abafado que vinha do sofá. Um emaranhado de fios castanhos e ondulados se derramavam por ali. O corpo magro se sacudia, em desespero. Ela tem as mãos agarradas à almofada e a mala aguarda ao lado. A dor que senti em meu peito foi causticante, ardida.

— Ela está um pouco abalada, não repara — Jair disse, sem um pingo de sentimento ou comiseração. Eu, que não sou o pai, estou morrendo por dentro, me sentindo culpado.

Abri a boca para responder, mas o choro sobre o sofá se tornou uma fúria, que gritou sua indignação melhor do que eu faria:

Um pouco abalada? — repetiu, em tom de incredulidade — Estou sendo tratada como mercadoria pelo meu próprio pai, que pelo visto considera a maldita oficina mais do que a mim, sendo vendida a um desconhecido por causa de um vício e o senhor acha que não devo sequer me abalar?

Ele tentou responder e ela continuou a xingar, mas só o que eu vi foi seu rosto. Estava inchado, molhado, desfigurado e em uma careta de ódio que deu medo. A voz gritava em decibéis que não sou capaz de mensurar e todo o corpo estava tenso, com os punhos fechados.

E ela é igual à mãe.

CAPÍTULO II

“Chamam isso de destino, eu não sei. Mas desde o início, sempre te cuidei.”

(Carreiro e Capataz)


Antônia

É crime matar um pai, eu sei. Mas também é crime o tráfico de mulheres e é isso que meu pai está fazendo comigo, com a conivência desse outro homem na nossa sala.

Ele, por sinal, me olha como se eu fosse uma aberração, pois tirou os óculos e os olhos azuis estão tão arregalados que fazem par com a boca aberta com que me ouve gritar. Se pensava que iria me arrastar como um cordeiro para o abate, está muito enganado.

— Vocês dois são o pior tipo de ser humano que existe!

— Eu não… — o homem tentou dizer alguma coisa, mas eu o cortei, erguendo a mão.

— Não te preocupa. Teu investimento não vai decepcionar, nunca te decepcionei, não é pai?

— Olha só, moça, eu…

— Eu já sei! — gritei para ele — Tu vai dizer que só ganhou a aposta, não tem culpa se meu pai resolveu apostar a própria filha, que considera menos do que o seu negócio. Me poupa das tuas desculpas esfarrapadas, pois já ouvi as dele — o cara se afastou um pouco, acho que teve medo da minha reação — Eu devia chamar a polícia e denunciar vocês dois.

— Devia mesmo — ele disse.

— Não piora as coisas, Rodrigo — meu pai o alertou. — Leva ela e vamos acabar com essa situação de uma vez por todas. Não aguento mais esse drama todo.

O tal Rodrigo olhou para o meu pai com o mesmo ódio que eu. Deu para ver a íris azul escurecer e o vinco entre seus olhos se aprofundar, ao mesmo tempo que o peito se ergueu, pelo fôlego que tomou antes de falar, muito puto da cara:

— Tu não tem a menor consciência, Jair, e sequer imagino que a tua má índole tenha solução. Sinto pena dessa moça e da mãe dela, que tu sempre tratou como objeto, e te garanto, eu vim aqui para desistir dessa merda, porque não combina comigo, mas agora vejo que não dá — ele atravessou a sala e pegou as alças da minha mala. — Ela vem comigo, porque estará mais segura na minha casa, do que na dela mesma.

Rodrigo virou o rosto para mim e eu estava como uma estátua. Ele ia desistir e agora estava me defendendo, é isso? E ele conheceu a minha mãe?

— Tu vem comigo — foi uma ordem e ele me estendeu a mão — não precisa ter medo, não vou te machucar. Pode confiar em mim, bem mais do que nele. Tudo bem?

O rosto de Rodrigo estava sério, o vinco raivoso ainda estava entre seus olhos, a mão permanecia esperando a minha. E eu confiei. Não podia confiar sequer em meu pai, mas confiei nele. Ouvi a decência em sua voz.

— Quem te ouve talvez acredite — meu pai ruminou entre dentes — mas eu sei por que tu está fazendo isso. Não esqueceu ainda, não é? Continua o mesmo.

Rodrigo o desconsiderou e moveu a mão para mais perto de mim, incentivando com os olhos que eu a aceitasse.

— Está segura comigo — prometeu.

— Tu disse que ia desistir da aposta?

— Desisto, se tu quiser — ele abaixou a mão que me oferecia. — Embora preferisse te tirar daqui. Conheço teu pai o suficiente para saber que essa não será a primeira vez.

— Não tenho como pagar de outra forma, Rodrigo, e tu aceitou... — a voz do meu pai mostrou seu desespero. Não comigo, com a sua dívida.

— Cala essa boca uma vez na vida, Jair — ele voltou a falar grosso — Estou negociando com ela agora.

— Filha, te disse o que vai acontecer se… — ele tentou, mas o olhar de Rodrigo o fez se calar.

Ele era a merda de um pai, mas eu o amava. Sabia que certamente amanheceria morto, se não pagasse a dívida. Ele me explicara bem isso, também, para meu desespero. Neste momento, eu o odeio, mas não desejo sua morte.

— E se eu não quiser ir, o que acontece com ele?

— É teu direito e eu respeito. Ao menos para mim, o Jair não deverá mais nada, isso acabou aqui.   Mas se for, garanto que não vai te arrepender e vai te divertir bastante. Minha casa tem piscina, academia, um belo jardim, eu tenho uma lancha, hein? — Ele sorriu e eu também, diante da chantagem descarada — Eu sou um cara que adora uma festa e dou as melhores. Tu já tem idade para beber?

— Eu tenho 23 anos! — Arregalei os olhos, surpresa por ele não perceber.

— Excelente! Já foi na 4Ty?

— Não, naquilo lá só entra patricinha e mauricinho, custa uma fortuna que meu salário de professora não pode pagar.

Ele gargalhou, parecendo muito satisfeito com a resposta. E pareceu muito simpático também.   Percebi que é jovem e bem bonito, inclusive.

— Posso resolver isso, também. Que tal um passe VIP eterno?

— Devo confessar que a proposta está cada vez melhor. Pode conseguir para uma amiga minha, também?

— Não explora, Tatá — meu pai teve a cara de pau de se manifestar ainda.

— Posso, dou um passe para ela também. E está convidada para ir te visitar, se ela quiser. Não é cárcere privado — ele arqueou uma sobrancelha. — Neste momento, eu só quero te afastar do teu pai, para que ele nunca mais possa te apostar nos termos em que o fez — Rodrigo olhou furioso para meu pai, que tinha se recostado na mesa, soltando um gemido.

— Tu me prometeu — ele retribuiu o olhar de Rodrigo.

— E tu nunca saberá se cumpri ou não. Vou garantir isso.

— Tu não precisa te preocupar comigo, sou maior de idade — eu realmente não entendia por que ele se importava. Nem mesmo quem devia me proteger se importava.

— Sim, estou vendo — os olhos dele me percorreram do rosto até os pés — Tu tem outro lugar para ir? Algum parente? Posso te levar.

— Não. Não tenho mais ninguém.

Eu tenho a Bella, mas ela mora com os pais e eu não iria me refugiar na casa deles. Sou íntima dela, mas não dos pais. Minha avó paterna, que praticamente me criou, morreu ano passado. Os maternos nunca conheci. E nem corria risco de vida, ou qualquer coisa assim. Mas neste momento, eu também quero muito me afastar do meu pai. Férias, como ele mesmo tinha me dito. Estranho seria aceitar a companhia de um desconhecido, mas… Quando a vida te dá um limão, compra a tequila, o sal e toma um porre, coisa que estou mesmo precisando.

— Tem bastante bebida na tua casa? — perguntei e Rodrigo ergueu novamente a sobrancelha, mas confirmou. — Excelente, pois não aguento mais estar sóbria.

— Tu me mata de vergonha — meu pai disse, sacudindo a cabeça, mas Rodrigo sorriu.

— Antes morrer de vergonha, do que de verdade, não é, pai? Vou aceitar, porque preciso de distância de ti e porque ainda te amo, apesar de tudo. Mas foi a última vez que limpei tua sujeira. Não conta mais comigo depois de hoje.

Ele não respondeu nada, desviou o único olho aberto de mim e Rodrigo estendeu novamente a mão. Segurei nela, decidida. A palma grande envolveu a minha e ele começou a caminhar, arrastando minha mala.

Rodrigo

Ela é igual à mãe. O rosto, o corpo, o jeito divertido e a mão, que se encaixa na minha, com perfeição. Toda a minha resolução de deixá-la em paz e desistir daquela merda desapareceu quando a vi. Mais especificamente quando Jair falou naquele tom arrogante e ela explodiu. Eu preciso afastá-la dele. A vida me ofereceu uma segunda chance e desta vez, não farei o certo. Não sou mais um adolescente, sou um homem e posso arcar com todas as minhas decisões. Só não farei isso à revelia dela, porque eu não sou o Jair.

Desliguei o alarme e guardei a mala cor de rosa choque no porta-malas. Abri a porta do caroneiro e esperei que ela entrasse. Tem os olhos assustados e eu a entendo. Também estou. Dei a volta e entrei no carro.

— Que carro incrível — ela disse. — Nunca tinha visto um Jaguar por dentro.

— Sabe dirigir? — perguntei, puxando assunto, e ela me olhou animada demais — Não vou te emprestar, pode esquecer.

— Sem graça — ela cruzou os braços sobre o peito.

Dei a partida e acelerei, fazendo o motor esportivo roncar. A reação dela foi de quem entende disso. Um uau muito impressionado surgiu em seus lábios e se tem algo que agrada um homem, tanto quanto elogiar seu pau, é gostar de sua máquina. Acelerei, tirando o carro da vaga, como um idiota adolescente, ansioso por agradar a mulher ao meu lado.

— Nem uma voltinha? — Ela ergueu o dedo indicador para mim, implorando.

— Neste banco aqui, só eu sento — sorri para ela, pois era a maior verdade — O que acha de tomarmos um sorvete, antes de irmos para casa?

Ela suspirou. Acho que estava tão animada com o carro que esqueceu o objetivo da viagem.

— Pode ser.

— Pode ser no shopping? Preciso passar na farmácia e se tu precisar de qualquer coisa, já compramos.

— Tu não vai me bancar — ela olhou indignada para mim — Eu posso pagar por qualquer coisa que queira.

— Tudo bem, não disse o contrário — Orgulhosa igual à mãe, gemi por dentro.

— Com exceção da entrada da 4Ty e um carro desses — ela amenizou o tom, como se tentasse me condoer.

— Tu nem me disse teu nome e já quer dirigir meu carro?

— Se eu disser, vou poder?

— Não — espiei pelo vidro, aguardando o sinal abrir. — Mas seria no mínimo educado, para eu não passar esses dias te chamando de moça ou Tatá. A não ser que tu prefira… — dei de ombros — embora eu ache que uma mulher nunca deveria ser chamada de Tatá.

— Maria Antônia Avillez — apresentou-se.

— Não seria Nunes Avillez? — estranhei.

— Não uso o sobrenome da minha mãe — ela olhou para fora do carro, através das películas escuras.

Meu peito apertou outra vez. Pelo menos o sinal abriu e pude prestar atenção no trânsito leve daquela tarde de domingo. Valentina Nunes — lembrei da mãe dela se apresentando, com a mão estendida, um sorriso largo e da mecha que escapou do rabo de cavalo, que ela levou para trás da orelha.

Acho que vou me foder aqui. Essa menina vai me fazer reviver cada maldito dia daquele verão escaldante… E o pior, ela nem é uma menina. É uma mulher igual àquela que pegou meu coração nas mãos, torceu e arremessou com força, nas águas do Oceano Atlântico.


Antônia

Odeio falar da minha mãe e sei que me pareço demais com ela. Se existe alguém mais cretino do que o meu pai, só a mulher que me colocou no mundo e depois foi embora para Europa, sem nunca mais procurar por mim. Eu tinha quatro anos e isso foi tudo que convivi com ela. Mas sabe o mais legal de tudo? Ela me segue no Instagram e eventualmente curte uma ou outra foto minha.

Pelo visto, o Rodrigo a conheceu. Pelo que entendi, conhecia meu pai também. Talvez tenham sido colegas, parecem ter a mesma idade. Meu pai me teve cedo, bem cedo. Tinha dezenove anos e minha mãe também. Quem pode julgar suas escolhas? Bom, eu posso, pois sou consequência delas.

E o carro, por Deus! Ele deve ter muita grana, o modelo custa mais do que eu conseguiria se vendesse todos os meus órgãos no mercado negro!  E eu venderia, se fosse para ter um destes. É um modelo esportivo, de apenas dois lugares e conversível, embora a capota rígida esteja fechada. Um incrível Jaguar F-Type, resplandecendo de novo, na cor azul.

Decidi dar uma boa espiada na criatura ao meu lado. Bermuda jeans rasgada e camiseta azul marinho, lisa. Nos pés, um tênis baixo, de marca. Ele tem uma mão na direção e a outra está solta sobre as coxas largas. Os braços são bem fortinhos, ele deve malhar. Dá para ver as veias saltadas e a ponta do que deve ser uma tatuagem escapando por baixo da manga da camiseta. O que será? Acho tatuagens muito bacanas.

— Está gostando do inventário? — Rodrigo perguntou, sem desviar os olhos do trânsito.

Merda.

— Sim, o carro é… uau! Sem palavras… Quantos cilindros? — disfarcei.

— É uma máquina potente — respondeu e vi o canto da boca se erguendo em um meio sorriso. Entendi o duplo sentido, ok?

Voltei a olhar para a cidade, como se fosse a coisa mais inédita do mundo. Como se não fizesse aquele trajeto todos os dias. A larga avenida ao redor do arroio está movimentada, mas nada comparado a como fica durante a semana e fora da temporada de verão, que é quando a população porto alegrense costuma migrar para as praias. Estamos na primeira semana após o réveillon e já prevejo um péssimo ano para mim, se começou com sequestro e tráfico de mulheres. Com certeza, a minha turma deste ano me fará chorar no cantinho da sala, depois do final da aula.

Chegamos ao shopping e ele foi direto para a farmácia do primeiro piso. Não tem nada que eu queira comprar, mas adoro passear entre as prateleiras, olhando as novidades. Rodrigo foi direto para o caixa e aguardou na fila. Estranhei e não tenho nada a ver com isso, mas como sou o bicho mais curioso que já nasceu neste planeta, me aproximei, disfarçando que escolhia algo nas prateleiras, para ver o que iria comprar.

Ele pegou uma pequena cestinha azul e começou a colocar ali os produtos que ficavam na gôndola diante do caixa. Pastilha, analgésico, remédio para antes e depois de beber e uns oito pacotes de preservativos. Só sei que aquela mão grande encheu e o pobre gancho da gôndola ficou balançando, vazio.

Virei o rosto na mesma hora. Puta merda, quem mandou bisbilhotar o homem? Senti dois pavores diferentes: para que (leia-se quem) ele precisava de tanto preservativo e será que ele não ia manter a promessa de ficar longe de mim, nesse quesito? Meu rosto ferveu e meu coração disparou. Congelei no lugar, em pânico.

Estou indo para a casa de um estranho, que acaba de fazer uma grande compra de preservativos. Será que dá tempo de fugir? Deve dar, né? Ele disse que eu podia desistir se quisesse… — pensei, desesperada com a situação.

— Maria Antônia? — Ouvi o som que se referia a mim, e naquela voz que eu conhecia bem demais, mas me fiz de surda. — Tatá!

Como se meu dia não estivesse ruim o suficiente, naquele instante ele piorava bastante. Eu realmente devia ter assistido a Missa do Galo, como minha avó me obrigava, enquanto era viva.

— Oi, Ulisses — respondi sem animação e sequer me virei para olhar na cara daquele safado.

— Que bom te encontrar, tu me deu block legal, hein?

— Eu? Absolutamente! — Retirei um frasco de condicionador para cabelos afro e passei a fingir que lia o rótulo. — Teria que me importar contigo para isso.

— Qual é, Tatá? Vamos tomar um café e conversar? — falou meu ex-namorado, coisa mais linda do mundo e ordinário na mesma medida, tentando vender a ideia de que a desajustada da relação fui eu. — Deixa de ser infantil e vamos enfrentar o problema de frente.

— Teu problema tem nome e sobrenome. É Filhadaputisse e Sem Vergonhice e já sabemos que não tem solução — devolvi o frasco à prateleira, com raiva e do outro lado dela vi o rosto sério do Rodrigo, nos observando. Foi a ele que me dirigi — Terminou de comprar todo o estoque de camisinhas? Podemos ir?

Falei de propósito, para cutucar o ego sensível do macho escroto ao meu lado, mas a pior reação foi a do Rodrigo. Enquanto Ulisses alternava o rosto incrédulo entre o homem do lado de lá da gôndola e o meu, Rodrigo ficou estático como uma pintura em um quadro. No instante seguinte, soltou outra daquelas gargalhadas sonoras que ele tem, jogando a cabeça para trás, enquanto toda a farmácia prestava atenção no espetáculo que é aquele homem rindo.

— Quem é esse? — Ulisses, óbvio, perguntou. Ego é algo que ninguém ignora.

— Um amigo — informei, caminhando na direção da porta, para onde Rodrigo me seguiu.

— Amanhã vou na tua casa e vamos conversar — Ulisses ainda tentou. — Libera a minha entrada dessa vez.

— Isso, vai sim! Vou adorar. Até amanhã — abanei por trás dos ombros, sem olhar para ele.

Do lado de fora da farmácia, Rodrigo me alcançou.

— Aquele sorvete vem bem, agora — pedi.

— Também acho!

Ele abriu o braço, para que eu passasse na frente e nos guiasse até a sorveteria, no segundo andar.

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