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Capítulos Iniciais

Meu Acordo:
Os Reis da Noite

CAPÍTULO I

“Sonhei que estava me casando e acordei no desespero.
Vida de casado é boa, só perde para de solteiro.

(Wesley Safadão)

Marcondes

Por essas e outras que não me apaixono. Entregar a minha felicidade nas mãos de outra pessoa é algo que morro, mas não faço mais. Acabei de ver meu melhor amigo, que também já devia ter aprendido essa lição, levar um chega para lá da mulher por quem se apaixonou. Ele acha que não percebo os olhares de cachorro pidão que lança para ela, enquanto arrumamos as caixas da mudança? Mas eu noto. Eu o conheço como a mim mesmo.

Antônia está de mudança para a casa do Rodrigo, com quem acabou de terminar o namoro rápido que tiveram. Em duas semanas, eles passaram de desconhecidos ao amor para sempre, que terminou hoje. O motivo? O pai dela desapareceu, a deixou sozinha no mundo e meu amigo é o cara mais foda que eu conheço e por isso, vai abrigar a mulher que ama, mesmo ela estando decepcionada com ele. Parece confuso?

Rodrigo está novamente à beira do desastre. Está se segurando à esperança de que a Tatá, ficando em casa com ele, o perdoe. Eu percebo os olhos levemente inchados que provam o quanto já chorou por ela. Eu até entendo, um pouco. Antônia é a mulher perfeita para ele, eles combinam muito e o Rodrigo estava feliz. Eu a adoro, também. Alegre, descolada e bonita. Até o incentivei a enfrentar os problemas deles e assumi-la. Mas a Tatá não conseguiu superar a revelação de que Rodrigo teve uma paixão pela mãe dela. Foi o que ele me disse, por alto, na ligação que me fez, pedindo caixas, mão de obra e o carro, para ajudá-la na mudança para sua casa. Ah, meu amigo! Em que porra de bagunça tu foi se meter?

Rodrigo é um cara generoso, sensível e meu amigo desde a sexta série. Nossas vidas se entrelaçam mais do que os neurônios e suas sinapses. E para piorar, ainda adicionamos o Felipe nessa equação, quando o conhecemos no segundo ano do Ensino Médio, recém transferido do interior para cá. Somos como os três mosqueteiros modernos, o trio mais desejado de Porto Alegre. Solteiros. Ricos.      Pegadores. Donos das casas noturnas mais badaladas de Porto Alegre, Florianópolis e Punta del Este (se o povo de lá começar a trabalhar direito). Então, o Rodrigo caiu de amores por essa menina, criando uma confusão cósmica na vida dele e na dela. Mas eu estou aqui, como sempre estive, para juntar os cacos e varrê-los para debaixo do tapete.

Terminada a parte das caixas, carregado o carro, fiquei observando a Tatá caminhar até a lixeira, de cabeça baixa, e despejar lá o molho de chaves. Essa menina está tão ferrada na vida, que meu peito aperta. Abandonada pela mãe aos quatro anos e pelo pai aos vinte e três, no mesmo dia em que descobriu que o namorado foi apaixonado por sua mãe, na adolescência. Só falta acrescentar uma doença terminal e o Prêmio Nobel da Sofrência vai para Maria Antônia Avillez. Mas a guria não merece nada disso. Nem meu amigo, que se apaixonou de verdade, depois de duas décadas. Mas a vida não é feita só de histórias bonitas, convenhamos.

Chegamos na casa do Rodrigo e ajudei novamente com as caixas. Tatá só chora. Rodrigo só suspira. Toquei em seu ombro, ao terminarmos:

— Vai ficar de boa, cara? — Toda a minha preocupação é com ele.

— Vou. Obrigado pela força.

Vi os olhos tão assustados dele. Abracei meu amigo e bati em suas costas. Depois Rodrigo sorriu tristemente para mim.

— Eu mereci, ela tem razão — murmurou.

— Eu sei. Mas ela vai entender a diferença, Rodrigo. Vou lá dar um tchau para Tatá, bom?

— Não fala merda pra menina, ela já está abalada demais.

— Para, né? Quando que eu falo besteira? — Abri os braços sem entender aquela acusação barata. Ele só sacudiu a cabeça e largou o corpo no sofá.

Subi novamente as escadas e bati na porta do quarto, que estava entreaberta. Ouvi o som do choro assim que terminei de abri-la. Vem do closet. Fui até lá e Antônia estava sentada no chão, diante de uma mala aberta.

— Gatinha — chamei e ela ergueu os olhos para mim — Já não desidratou?

Sentei-me ao seu lado no chão e espichei as pernas, sentindo uma dor desagradável na lombar. Carregar peso não me faz bem.

— Não devia ter tomado aquele copo d'água, renovei o estoque de lágrimas — ela fungou, enquanto secava o rosto.

— Quer classificar o problema por ordem de merda? Desabafar?

Ela suspirou e me olhou desconfiada. Eu sei que ela me acha um cretino egocêntrico, e nem está cem por cento errada. Foi o que demonstrei até aqui. Mas agora que seremos família, ela merece o meu melhor lado.

— Diz para mim, em qual dos dois homens tu quer que eu bata primeiro? No Rodrigo ou no teu pai?

— Duvido tu bater no Rodrigo! — Ela sorriu e ganhei um ponto.

— Por quê? Tu acha mesmo que nós nunca saímos no soco? Amizade de homem é diferente, Tatá. É testosterona na veia. A gente se soca e depois se abraça.

— Credo, parecem meus alunos! — Outro sorriso, outro ponto. — Mas se tu achar meu pai para bater, pode começar por ele.

— Vou levantar cada bueiro desta cidade atrás dele — prometi. Claro que iria, Rodrigo também, e o Felipe sabe muito bem quem fará o serviço.

Ela suspirou e outra lágrima escorreu. É muito foda isso, porque senti vontade de consolar a menina. Não que ela seja exatamente uma menina. É uma mulher bonita e gostosa para cacete, mas com uma fragilidade tão grande e um jeito tão infantil, que eu até esqueço esses atributos. Os cabelos castanhos estão enrolados em um coque desajeitado e tem vários fios soltos que se desprendem dele. Bonita e sem pretensão de ser. Por isso o Rodrigo se encantou tão rápido por ela. Até puxei minha medalhinha do peito e beijei. Deus que me livre de topar com uma criatura perigosa dessas pela frente.

Então, aqueles olhos molhados se viraram na minha direção:

— Tu sabia de tudo isso, não é? Do Rodrigo com a minha mãe?

— Sabia, Tatá. Mas também sei que é diferente agora, ele te ama. E faz tempo que estava se contorcendo de culpa por isso.

— Ele devia ter me dito, Marcondes. Não consigo perdoar isso.

— Se ajuda, eu e o Felipe o aconselhamos a deixar esse papo para lá, já que a Valentina não era mais importante para ele.

— Mas não ocorreu que seria para mim? — Ops, temos algo se voltando contra a minha pessoa, aqui.

— Não pensei nisso, Tatá. Vocês se envolveram rápido demais.

— Tu é tão culpado disso quanto ele — ela se ergueu em um acesso de fúria e começou a gritar — Tu sempre soube disso e incentivou, inclusive me empacotou pro Rodrigo — ela fez aspas e eu me levantei, porque pensa numa mulher braba! — Só se preocuparam em satisfazer as necessidades do amigo, nunca pensaram nos meus sentimentos quanto a isso.

— Nem vem, Antônia! Tu estava bem faceira e satisfeita. Não te empurrei para a cama dele — Na verdade, empurrei ele para a dela, mas ela não precisava saber.

— Mas não era de verdade! Não era eu para ele, era a minha mãe!

— Esse problema não é meu — ergui os braços. — Já não tenho namorada justamente para não ter esse tipo de discussão. Mas vou te dizer uma coisa: o Rodrigo te ama e está sofrendo. Tu o ama também, né? Então, pensa se vale a pena colocar essa mulher, que apenas te pariu, no meio da relação de vocês.

— Foi ele que a trouxe, quando não contou a verdade.

— Mas é tu que não a está deixando ir.

Antônia calou aquela boca bonitinha e arregalou os olhos um pouco, me encarando séria. Aproveitei a deixa, beijei seu rosto e escapuli dali, antes que a fera voltasse a tomar conta daquele corpo. Essa encrenca é do Rodrigão, não minha.

Ele já não estava na sala, então fui para o meu carro. Trinta minutos depois, estava chegando em casa, cansado, louco por um banho, pois suei como em uma sauna com essa mudança da Tatá, e de noite quero ir à 4Ty, caçar uma companhia, porque não vou passar o final de semana sozinho. Caçar é forte, digamos apenas colher, porque a nossa casa noturna é meu pomar e não me dou ao trabalho de conquistar ninguém. Eu pego. Se for difícil, mando à merda e procuro outra. Não preciso disso.

Para meu desânimo, a minha vaga na garagem do prédio estava ocupada. Quem, caralhos, colocou o carro na minha vaga? Porra! Cada um tem a sua, vão se catar!

Saí do carro desejando o rim de alguém. No mínimo, é um visitante que não queria deixar o carro na rua. Mas porra! Vão enfiar o carro no… Puxei o fone, ao lado do elevador, e aguardei.

Alô? — disse a voz do porteiro.

— Marcondes, do 801 — me apresentei — Tem um Jeep Renegade na minha vaga.

E não é visitante do senhor?

— Se fosse meu, não estaria reclamando, tu não acha? — Revirei os olhos, tentando manter a paciência.

— Desculpa, senhor, vou verificar.

Afastei o bocal e sorri para um casal de vizinhos que aguardava o elevador. Os olhos da mulher me percorreram de cima a baixo. Elas tentam disfarçar, mas acontece tantas vezes, que já conheço de cor os efeitos que provoco. Talvez ela tivesse puxado assunto, se estivesse sozinha. Não teria sido a primeira vez. Nem a primeira vizinha.

O porteiro se enrola e não me responde. Passei os dedos pelos meus cabelos, revirando a parte de cima, maior que as laterais, frustrado. Então, ouvi o som do gancho do telefone sendo manuseado:

Senhor, é da nova moradora do 802. Ela disse que está terminando o banho e vai descer. Pediu quinze minutos.

— Nem pensar! Ela vai descer agora! Manda vir agora ou vou abrir uma reclamação!  — O porteiro silenciou a ligação e depois retornou.

Ela já está descendo para tirar.

Agradeci e fui para o carro aguardar. Abri o celular e procurei, entre os contatos femininos, alguma interessante para a noite, uma opção mais simples do que a 4Ty, de repente. Um jantar e uma foda estaria excelente. Estava realmente cansado.

Rolando a tela, me deparei com a Márcia. Estou querendo comer aquela bunduda, desde a semana passada. Ela só quer se for com o Rodrigo junto, mas talvez mude de ideia. Abri o contato e ia escrever, quando escutei dois tapas no capô do meu carro.

Olhei para frente, putasso, e tinha uma mulher gesticulando, furiosa, do lado de fora, com uma toalha enrolada no cabelo. Abaixei o som que tocava alto no carro e abri o vidro, por onde espichei o pescoço.

— Que porra é essa? — perguntei, indignado — Vai bater no carro do teu marido!

— Pode ter certeza de que não seria um problema — a vizinha furiosa respondeu.

— Não desconta no meu carro as tuas frustrações, não temos nada a ver com isso.

— Tu é o nervosinho que não pode esperar pela vaga?

— Esse carro na minha vaga é o teu?

— Não podia esperar um pouco?

— Não podia pôr na tua própria vaga?

— Minha vaga é longe do elevador e eu tinha muitas coisas para carregar — ela tentou se justificar.

— E o problema é meu, por quê?

Ela ergueu o braço, mandando eu me ferrar através de um gesto, e sapateou até o carro na minha vaga. Dei a ré e aguardei a criatura manobrar lentamente, só para me irritar. Ela foi para frente e para trás várias vezes, com se não conseguisse sair dali facilmente, e de olhos fechados, provavelmente. Era uma excelente vaga, larga e próxima aos elevadores, com um bom espaço para manobra. Por isso era minha. A diaba levou quase cinco minutos para sair. Eu estacionei em um movimento só e desci do carro. Apertei o botão do elevador e voltei ao contato da Márcia.

Começava a digitar quando um aroma de flores chamou minha atenção. Olhei para o lado e a vizinha nervosa estava ali, de braços cruzados e olhos no visor do elevador. O nariz arrebitadinho estava ainda mais erguido e ela ajeitou o volume da toalha sobre a cabeça. Um perfil bonito.

Aproveitei para observar o resto: pescoço longo, que ela mantém levemente inclinado para o lado oposto ao meu; os braços finos e dobrados não conseguiam esconder o volume dos seios arredondados; a cintura está escondida pela camiseta larga, mas espichei o pescoço para trás e percebi que a traseira também é avantajada. Gostosa.

E no instante em que ela virou o rosto para me olhar, capturou meus olhos que admiravam sua bunda. Um raio explodiu tão perto, que as luzes se apagaram, no mesmo instante. A última coisa que vi foi aquele par de olhos escuros, que me encararam com irritação. Deu até medo.

Talvez ela seja uma bruxa.

Vitória


Adorei meu apartamento novo. Amplo e arejado, embora a vista não tenha nada de espetacular. As portas da sacada estão fechadas, impedindo que o ar geladinho escape, enquanto observo os prédios vizinhos e uma parte da cidade, entre eles. As nuvens de um temporal se aproximam pelo sul, e tornam o final de tarde violento e fabuloso. Capturo as imagens e busco a melhor delas. Envio para o meu celular e de lá posto no Instagram com a legenda: “Nada volta, mas algumas coisas, graças a Deus, recomeçam.”

Entendedores entenderão.

Flor vem até a sala arrastando minha sandália e travamos uma luta rosnenta pelo sapato. Soltei, com medo de rasgar o couro dourado e assim que percebeu minha desistência, a cachorrinha correu pelo apartamento. Alcancei minha filhotinha encurralada na lavanderia, com o focinho e o sapato escondidos dentro da casinha de tecido que ela nunca usa para dormir.

— Dá o sapato da mamãe, Flor! — ordenei e ela soltou. Custava ter soltado antes?

Enfiei a mão lá dentro e retirei minha sandália dourada que me valeu uma pequena fortuna e agora tem marcas de caninos nas tiras.

— Vou descontar dos teus petiscos — xinguei a minha cadelinha.

Por fim, deixei o corpo cair no chão de porcelanato branco e suspirei. A Flor veio se acomodar no meu colo e passei a acariciar seu pelo caramelo, macio e encaracolado, o que me trouxe uma sensação de conforto.

— A mamãe vai ficar bem. O papai também vai ficar e te ama. Logo a gente se acostuma a sermos só nós duas. Pelo menos tu vai poder dormir sempre na minha cama — Flor me olhava, com a boca aberta e a língua para fora, atrás de refresco para o calor que deve ter sentido ao correr.

Em seguida, ela levantou do meu colo e foi até a guia pendurada no gancho da porta, pedindo para passear. Minha cadelinha quase sabe falar. Orgulho da mamãe!

— Ok! Vamos enfrentar o abafamento global que deve estar lá na rua — falei, desanimada, mas sempre faço o que ela quer.

Meu apartamento ainda está uma zona! Tem caixas pela sala, em um dos quartos e a cozinha só arrumei pela metade. Geladeira, Ok. Microondas, OK. Cama, OK. O resto vamos com calma que o mundo não foi feito em um dia só. Fiquei com boa parte da mobília e utensílios da minha outra casa, depois do divórcio. Mas assim que puder, vou trocar uma por uma dessas peças que me lembraram o Luciano.

Desci até o cachorródromo com a Flor e ela brincou por ali. O dia está terrível, com uma eletricidade no ar anunciando um temporal em breve. Eu sei disso. Eu sinto dentro de mim. Adoro temporais.  Cheiro de chuva, grama molhada, asfalto chiando. Adoro fotografar raios, também.

Estou suando mesmo parada na sombra. O sol incidindo sobre o saibro grosso me desconcerta. Por fim, o calor se tornou tão insuportável que decidi subir, me sentindo toda melada. Separei uma roupa leve e me enfiei debaixo do chuveiro que tem a pressão que os chuveiros devem ter no céu. Só imagino isso daqui no inverno, o que deve esquentar! Aproveito para fazer uma hidratação no cabelo e outra corporal. Não é porque não tenho mais marido para sentir a maciez e o perfume, que vou deixar de cuidar de mim.

Estava começando a tirar o creme da cabeça, quando ouvi o interfone. Tentei ignorar, mas ele insistiu por vários minutos. Pode ser fogo, falei para a Flor, que assistia meu banho de Cleópatra.

Enrolei-me em uma toalha e saí pingando pelo apartamento que eu mesma terei que secar depois.   Atendi a sirene que não parava de tocar e o porteiro informou que um vizinho reclamava que meu carro estava na sua vaga e não teve sequer a empatia de esperar que eu terminasse o banho. Já começamos mal!

Ao dar o primeiro passo de volta ao quarto, para me vestir, pisei em um brinquedo da Flor e escorreguei, caindo de bunda no chão!

— Flor, olha essas porcarias espalhadas pela casa! — gritei, descontando na cachorrinha o meu estresse com o novo vizinho.

Vesti rapidamente uma camiseta e uma bermuda, enrolei a toalha nos cabelos e saí batendo os pés e a porta do apartamento. Que vizinho idiota! O que custava esperar um pouco, ser gentil? Vou abrir uma ocorrência… Grande merda, abre mesmo, imbecil! Minha bunda doía, meus cabelos estavam grudando cheio de creme e minha paciência foi pro saco, pois ela andava mesmo curta, no último mês.

Chegando na garagem, vi o carro estacionado atrás do meu e imaginei que fosse o dono da vaga. Ele estava sentadinho, no ar condicionado, curtindo um som, que era audível daqui de fora, não sei com ele aguenta. E bem confortável!

Chamei e gesticulei, mas ele não me ouviu. Então, bati no capô e os olhos saíram do que deveria ser o celular e vieram na minha direção, parecendo irritado. Ele abriu o vidro, já gritando. Só faltou me chamar de louca. Antipatizei ainda mais! Presunçoso, arrogante e esquentadinho. Mandei à merda mentalmente outra vez, e com um gesto, e fui tirar meu carro da vaguinha preciosa dele.

Mas fiz com toda a calma do mundo que não estou sentindo. Enrolei e só saí da vaga quando quis.   Mas enfim, uma hora precisava sair. Estacionei na minha, do outro lado da garagem, e fui aguardar o elevador.

Ignorei o sujeito antipático ao celular até perceber que ele olhava para a minha bunda. Filho da mãe! Se tem uma coisa que me irrita até o mais profundo âmago do meu ser é homem que se vira na rua para olhar a bunda da mulher que passou. Tenho vontade de descer do carro e berrar na cara do escroto que faz isso. E é exatamente o que esse ser ao meu lado está fazendo, sem nem disfarçar.

Sorte dele que um raio o fez desaparecer da minha frente. O trovão retumbou, ecoando por toda a garagem, disparando alguns alarmes, e tudo escureceu.

— Puta merda — ele reclamou, acho que pela falta luz.

Estamos no subsolo do edifício que, com exceção das poucas luzes de emergência, está na penumbra. Só pude agradecer a Deus por não estar dentro do elevador, trancada com esse homem.

— Será que vai demorar? — falei, mais comigo do que com ele.

— Está com medo do escuro? — O idiota respondeu e resmunguei um vai à merda, baixinho.

— Ao menos assim tu não olha para onde não deve — aproveitei para reclamar.

— Dois montes formam sempre uma bela paisagem.

Ele tem coragem, não dá para negar. Cara de pau também.

— Idiota — reclamei, dessa vez mais alto.

— Respondendo à tua pergunta, as luzes do gerador devem ligar em breve.

O vizinho voltou a se concentrar no aparelho celular, que iluminou um pouco o breu ao nosso redor. Lembrei da Flor, sozinha lá em cima, morrendo de medo dos trovões. Ela deve estar apavorada!

— Onde ficam as escadas? — Perguntei.

Ele apontou para a lateral, onde uma porta corta fogo aparecia, com a placa indicando as escadas. Sequer tirou os olhos da tela, para isso. O temporal continuava forte, raios e trovões se sucediam, sem falar no calor abafado e insuportável dessa garagem e da companhia desagradável. Melhor enfrentar as escadas.

Abri a porta contrafogo e uma lufada de ar quente chegou até mim. Oito andares, mais os dois lances até a portaria. É para matar qualquer um, mas o que não faço pela minha Florzinha? Subi os degraus, consciente de que o vizinho estava atrás, provavelmente olhando para a minha bunda.

Ele podia ter evitado isso tudo, se tivesse sido menos nervosinho. Espiei por sobre os ombros e os olhos dele estavam mesmo na minha bunda. Respirei fundo e expeli com força.

Idiota. Mala.

CAPÍTULO II


“Tem amores da vida que não são para a vida.

Nesse caso, eu e você somos a prova viva.”

(Henrique e Juliano)


Antônia

Passei o resto do dia arrumando minhas coisas no quarto. Rodrigo me deu espaço e não veio insistir.   Sentia-me tão perdida… Precisava usar essa última semana de férias para organizar minha vida, traçar planos a curto e longo prazo, precisava estar por mim, já que ninguém mais estava. E o Rodrigo não conta. Não vou depender dele além da moradia, o que já é muito. E isso é outra coisa que preciso providenciar, não dá para viver aqui para sempre. Chegará o dia em que ele vai cansar de esperar e eu não tenho psicológico suficiente para vê-lo com outras mulheres.

O Marcondes veio defender o amigo, claro. Disse que eu estava mantendo a Valentina entre nós.   Mas tem como ser diferente? Quem me dera ter uma tecla delete no cérebro, que apagasse seletivamente as lembranças que doem, que machucam. Visualizar Rodrigo transando com a minha mãe, apaixonado por ela, certamente seria uma das imagens que encheriam minha lixeira. Mas quando foi que a vida facilitou, não é?

Terminado tudo, desfiz as caixas de papelão, diminuindo seu volume, e com todas embaixo do braço, fui despejar no lixo seco. Caminhei até a frente da casa, o vigia abriu o portão e deixei tudo na lixeira. Voltei para dentro da segurança dos muros daquela masmorra que agora será meu lar por um tempo indeterminado, mas eu espero que não seja longo.

A casa ainda me impressiona, como no primeiro dia. Tão linda, grande e cheia de diversão como o próprio dono. Ela combina com o Rodrigo, não comigo. E agora eu sei que não combino com ele também.

O dia está terminando, com um temporal se armando. Um fim de tarde abafado e úmido, com um vento quente, que bagunça meus cabelos e levanta a areia fina do cascalho aos meus pés. Os primeiros pingos grossos da chuva me atingiram antes de chegar ao chafariz da entrada. Uma água morna, que combina com as lágrimas que eu ainda insisto em verter. Ergui o rosto e recebi a chuva em cheio, lavando meu rosto.

Senti os raios, ouvi os trovões. É uma tempestade de verão, intensa e perigosa. Duas massas de ar se chocavam sobre Porto Alegre. Uma quente e úmida, vinda do norte do país, outra fria e seca, querendo chegar pelo sul. E no meio delas estava eu. Abri os braços e recebi a chuva torrencial que caiu, o vento que fazia voar a vegetação, que dobrava e quebrava galhos e folhas, da mesma forma que a vida fazia comigo.

Abaixei o rosto e abri parcialmente os olhos ao sentir a mão que grudou em meu braço e me fez andar. Rodrigo veio me tirar da chuva e me arrastou de volta à casa. Assim que chegamos à varanda, ele se sacudiu, tirando a água dos cabelos e das roupas.

— Estamos perto do rio, Antônia, caem muitos raios por aqui — explicou com um tom de advertência.

— Não resisti — dei de ombros.

Pouco me importo se um raio me partisse. O que ainda existe inteiro em mim? Um clarão iluminou o rosto lindo diante de mim e um trovão soou em seguida, agitando meu peito. Esse foi perto! Rodrigo tem razão.

— Vamos entrar — ele puxou minha mão e no mesmo instante percebemos que as luzes tinham faltado. A casa estava uma penumbra.

O dia se transformou em noite, em questão de minutos, e o vento do temporal fazia a chuva bater com força contra a casa. Eu pingava, molhando o chão onde fiquei parada esperando Rodrigo me trazer uma toalha.

Eu vejo seus olhos apavorados e ansiosos. Vejo seu sofrimento. Só não consigo superar, não sei se um dia poderei. Rodrigo amou minha mãe como nunca mais amou outra mulher. E embora ele diga que me ama, não consigo crer que não esteja apenas revivendo aquele sentimento cruelmente interrompido.

— Aqui, princesa — ele me alcançou a toalha e ficou diante de mim, esperando que me secasse.   — Eu ia pedir nosso jantar, mas agora teremos que esperar a tempestade passar.

— Posso cozinhar para nós — me ofereci. Isso sempre me distrai.

— Hoje não — ele pôs os olhos tristes em mim. Azul é uma cor que combina com tristeza — Sem luz, sem fogão.

Ah, sim! O fogão chique dele é todo elétrico e moderno, o que não nos ajuda em nada, neste momento. A menos que a luz retorne logo, o que não parece acontecer. Avisei que ia subir e me afastei dele. Ouvi o suspiro forte que deu e meu coração apertou.

Existem sentimentos intensos em mim: a tristeza e o amor. A decepção e a gratidão. Estou triste e magoada, mas também o amo e sou grata. O conflito está me enlouquecendo e trouxe as lágrimas de volta. Uma catástrofe caiu sobre mim. Perdi, no mesmo golpe, minha mãe, meu pai e o homem que amava. Só me restava resgatar o pouco amor-próprio que se escondo no calabouço da minha alma, e me blindar com ele.

A tempestade amainava quando saí do banho, mas a luz ainda não tinha retornado. Usei a lanterna do celular para iluminar o quarto e escolhi uma roupa bem simples. Bermuda e camiseta, não preciso mais me arrumar para o Rodrigo. Nem devo. Agora, quanto mais sem graça ele me achar, melhor.

Meu coração falhou uma batida quando, do meio da escada, vi a sala. Sobre a mesa de centro havia diversos castiçais com velas acesas. Dois conjuntos de jogo americanos, guardanapos, pratos e copos estavam organizados e uma tábua de frios com vinho me aguardava. Uma música antiga tocava. Não é nenhuma que eu conheça, mas me fez chorar de novo. Acho que não consigo mais parar. Nem descer. Travei na escada.

Rodrigo


Minha decisão de reconquistar essa mulher estava enfrentando a frieza e a tristeza dela. Ela tem razão, não a julgo por isso.  Prometi que vou respeitar, prometi que continuaria amando, prometi que não desistiria.  Mas meu corpo pede pelo dela, meu coração implora para consolar seu choro. Eu, Jair e Valentina arrasamos essa menina.

Preparei um jantar leve, alguns queijos, frios, petiscos e vinho. Queria que ela relaxasse e esquecesse um pouco o dia terrível que teve. Estava voltando da cozinha quando a vi parada na escada, com a mão no corrimão e as lágrimas lavando outra vez aquele rosto bonito. Não suporto mais vê-la chorar.

Subi os degraus que faltavam e passei os braços ao seu redor. Estávamos na mesma altura e ela apoiou o queixo no meu ombro, abraçando meu pescoço. Todo o corpo sacudia. É como um luto profundo. E quem matou suas esperanças fui eu.

Nem tenho mais o que dizer. Eu sabia que revelar meu passado ia quebrá-la, mas foi preciso. É necessário enfrentarmos isso para seguir. E já que a situação estava tão perdida, achei que tem mais um detalhe que ela precisa saber, para que possa me odiar e chorar tudo de uma vez só. Limparemos o lodo juntos, depois. Não esconderei mais nada da Antônia.

— Vem, vamos sentar — convidei, quando ouvi o choro cessar.

Segurei aquela mão pequena na minha e a guiei até o chão diante do sofá. Servi o vinho e ela emborcou a taça, sem aguardar mais nada. Ok. Enchi novamente e me sentei ao seu lado. Ela recuou um pouco e isso me incomodou.

Antônia começou a comer sem uma palavra. Espetou um quadradinho de queijo estepe e deu outro gole no vinho. Minha pinguça preferida. Ela ainda fungava e secava o nariz. Está tão bonitinha, assim simples, enfim se sentindo em casa, eu espero. E cheirosa, pois o aroma de morango com champanhe me envolveu assim como seus braços, na escada. Mastiguei o presunto de parma e o queijo parmesão, então quebrei aquele silêncio, onde só o U2 fazia algum som, buscando seu perdão outra vez:

— Eu só tinha dezesseis anos, Antônia. Consegue entender que faz tempo e não significa mais nada para mim?

— Não — ela encheu a boca novamente.

— Foi coisa de adolescente, antes ainda de tu nascer.

— Devo agradecer que tu não seja meu pai, inclusive! Já pensou que havia essa possibilidade?

— Não vai por esse caminho, Antônia. Ele só machuca, não tem por que levantar uma questão que nem vem ao caso — me incomodei muito com essa postura da Antônia.

— Esse assunto não, Rodrigo, por favor — ela espalmou a mão, me pedindo para parar e eu bufei. Queria muito resolver aquilo. — Vamos falar sobre o futuro, que me interessa mais, neste momento.

— Tudo bem. Qual futuro quer discutir? — Tomei um bom gole de vinho, pois já imaginei que nada iria me agradar naquela conversa.

Antônia se remexeu e colocou ainda mais espaço entre nós. Não sei se é consciente, mas sinto ela se afastar de mim física e emocionalmente. É doloroso assistir.

— Sobre nós, primeiro. Sobre mim, depois.

Outro gole, outro queijo. Indigesto. Movi as mãos, incentivando-a a falar.

— Quero te pedir para respeitar meu momento, sem quebrar a promessa que me fez. Eu sei que brincamos sobre isso até agora, mas se quebrá-la, Rodrigo, vai quebrar a minha confiança. Conversas como essa há pouco não vão se repetir. Não tenho nada para te dizer que não vá te magoar, te ferir e a mim mesma, sobre isso. Entre nós, terminou, Rodrigo.

Assenti. Com uma pequena pinça e sem anestesia, ela arrancou do meu coração a última esperança.

— Mas eu ainda te amo, Rô. E seremos amigos e moraremos juntos. Por isso eu queria que… — ela abaixou os olhos, retorceu e estalou os dedos, sem coragem de falar o que estava pensando — Eu não queria… Não sei se aguento te ver…

— Com outra mulher? — conclui e ela assentiu, com os olhos cheios de lágrimas.

— Eu sei que não posso te pedir isso. É ridículo, porque é tua casa e teu direito, se não há mais nada entre nós… Mas… — ela ergueu um ombro, sem concluir.

Antônia não me olhou enquanto pedia isso. Tinha a mão segurando a base da taça, que girava entre os dedos, encarando o líquido escuro em seu copo. Que bom que ela sabe que não pode me pedir isso, que abria mão desse direito, naquele instante. E eu só pensava no quanto me sentia igual, sobre ela. Eu não aguentaria vê-la com outro homem.

— Por isso — ela continuou, já que eu não soube o que dizer — prometo que vou ficar o menor tempo que conseguir. Vou usar essa semana de férias para distribuir currículos em outras escolas, e quando conseguir um salário melhor e puder bancar um apartamentinho, ou achar alguém para dividir, te deixo em paz...

Porra! Ela quer acabar comigo de vez e sem qualquer gentileza. Meu coração estava tão apertado que ia ter um troço. Não poderia tê-la, não conseguia imaginá-la com outro e ainda longe? Eu não tenho nem maturidade suficiente para isso!

— Não quero que vá embora, não precisa fazer isso. Eu te trouxe para cá e quero que fique.

— Não posso ficar, Rodrigo. Já era um absurdo antes, agora então é… impossível. Dói demais. E tu vai ter tua vida, não quero assistir.

— Não quero falar disso — determinei. Minhas necessidades sexuais não são a prioridade neste momento.

— Mas eu quero, ou tu vai virar monge a partir de agora?

— Para com essa merda! — estourei — Eu não quero nada desse monte de regrinha que tu está impondo. Não quero te perder, não quero que tu vá embora, não quero foder ninguém!

— Mas eu preciso!

— Tu precisa foder? — Me irritei tanto que a pergunta saiu sem qualquer cuidado.

— Não, idiota! Preciso viver minha vida, sem ser tua refém! — Ela começou a se erguer — Quer saber? Isso não vai dar certo!

Segurei seu pulso e a impedi de se afastar. Antônia me olhou com irritação e sei que a estava olhando da mesma forma.

— Senta que não terminamos de falar — ordenei, mas ela se manteve de pé — Eu que vou dizer como as coisas serão, daqui para frente: tu vai procurar um emprego que pague mais, mas não vou te deixar sair daqui para se enfiar em qualquer buraco ou dividir apê com quem quer que seja — ela tentou puxar o braço, mas apertei mais e a controlei. — Tu agora mora comigo e vai guardar o salário para fazer um curso, como me disse que queria, uma pós, um MBA. Eu pagaria com prazer, — ela negou com a cabeça, eu revirei os olhos — mas sei que tu não aceitaria. Quer sentar? — reclamei e ela obedeceu. — Sobre outras mulheres, ou caras… Acho cedo para falarmos. Também não suporto a ideia de te ver com alguém.

Antônia concordou com a cabeça, mas o queixo se encheu de furinhos por causa do choro que segurou. A luz das velas dourava seu rosto e a deixava ainda mais bonita, fazendo brilhar as lágrimas que retinha a muito custo. É difícil demais isso! Eu a quero tanto!

Deus, acaba com isso! Devolve ela para mim…

— E sobre nós — continuei e ela ergueu os olhos marejados, me encarando, em expectativa — Está doendo demais agora e não consigo prometer nada além de que vou me esforçar, todos os dias, para te reconquistar. E não é brincadeira mais. Não é uma promessa que eu não vou cumprir, princesa. É a promessa mais importante que já fiz na vida.

A mão dela ainda estava na minha. Soltei seu pulso e entrelacei nossos dedos. É assim que devem ficar, é assim que a quero, entrelaçada a mim. Braços, pernas, dedos, vida. Antônia ficou olhando para o efeito que nossos corpos unidos causavam em nós. Senti o calor da palma quente dela irradiar pela minha.

— Eu preciso me fortalecer, Rô. Nunca serei boa para ti, se não for o suficiente para mim. A vida chutou a minha bunda e eu preciso acordar, sair do casulo e respirar. Enxergar o caminho e seguir por ele, entende?

— Entendo. Mas precisa deixar de me amar, para isso? Precisa me abandonar?

— Preciso, porque não sei quanto tempo isso vai levar, e não é justo contigo.

— Não está sendo justo agora… Nunca vai ser, minha pequena — levei a mão ao seu rosto, conquistando mais um pouco do que me deixava ter.

— Não — ela sorriu, tristemente — Está tudo uma merda agora.

Aproximei-me mais e passei os braços ao seu redor. Ela veio e se aninhou. Em seguida, soltou minha mão e passou o braço pelo meu pescoço, onde escondeu o rosto. Então, gemeu:

— Puta merda, tu tinha que ser tão cheiroso? — Eu ri. Essa é a minha garota.

— Esse cheiro de morango não me ajuda em nada, também.

Abraçamo-nos ainda mais forte. É tão fodido e difícil isso! Porque já passei por dezenas de términos, todos eu quis. Praticamente todos partiram de mim. Em nenhum havia amor. Se um dia houve algum carinho mais forte, já tinha se dissipado. Mas aqui, entre os meus braços, está a única pessoa que eu quero sempre manter. A única que conseguiu penetrar na gruta escura que era o meu coração, desde que a mãe dela desmoronou a entrada. Não é incrível que tenha sido assim? Fodidamente incrível que a filha da Valentina tenha sido a única a desfazer a maldição do coração do rei? O problema é que a minha princesa não pensa assim, ela não aceita.

— Podemos ser só amigos, por um tempo? — Ela perguntou.

— Podemos ser amigos que se amam, se beijam e transam gostoso em todos os cômodos dessa casa? — Tentei, né? Vai que

— Não — ela riu de leve. Ao menos riu. Então, se afastou e me encarou, com aqueles olhos castanhos molhados que cortam meu coração — Tu vai conseguir não trazer ninguém para cá quando…

— Maria Antônia, já te pedi para não falar disso!

— Não dá para ignorar, Rodrigo. Tu vai ter vontade e eu entendo, quer dizer, vou desejar que broche, todas às vezes, mas entendo…

— Que vingativa — eu ri dela.

— Não ri, é horrível te pedir isso — ela abaixou os olhos.

— Mas não quero que te preocupe com isso — juntei todos os fios do cabelo dela na mão e a fiz me encarar — Não vou trazer ninguém aqui.

Disse sério, pois não pretendo mesmo. Pretendo estar dentro dela, tão rápido, que nem sentirei falta de outra mulher. Mas ela me olhou tão triste e deu um soluço profundo, que irrompeu um choro desesperado. Tudo bem que mulher não venha com manual de instruções, mas a bula podia, né? Quem entende uma coisa dessas? Não era isso que ela queria ouvir? Tecla sap, legenda, é pedir muito ainda?

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