top of page
Contos Iniciais

Histórias misteriosas e outros contos

Prefácio


      A antologia de contos que aqui apresento é um acervo que venho reunindo há anos. São relatos de personagens que enfrentam os desafios do cotidiano através de soluções reais ou imaginárias. Assim o humor, a fantasia, o drama e o suspense fazem parte destas narrativas.

      A fantasia é o realismo fantástico que desperta interesse nas pessoas, bem como os sonhos e os delírios que por vezes nos acometem. É parte do imaginário que também vivenciamos no mundo real. Debruçamo-nos sobre fábulas, mitos e ilusões porque temos muitas necessidades em meio a dilemas, medos e pilhérias. 

      Claro que não é possível classificar de forma precisa alguns desses contos, como é o caso de “Eterno”, considerado uma fantasia, mas que em minha opinião tem também suspense e drama e é o único texto não inédito deste livro.

      Um dos contos, “Matilde”, não é de autoria única. Foi escrito em coautoria com Cíntia Moscovich. Isso ocorreu porque alguns desses textos foram produzidos durante a oficina de criação literária dessa grande escritora e amiga.

      Por fim, quero destacar o meu apreço por obras que abrangem a natureza dos sentimentos e do comportamento humano, pois nos fazem compreender melhor as relações interpessoais e contribuem para o nosso autoconhecimento através da leitura e da reflexão.


Ricardo Machado


MEDO

      Fábio sentou-se na ponta da cama enquanto Júlia saía do banho com os cabelos úmidos e o frescor do seu corpo exalando um perfume de alfazema. Ela caminhou descalça, com a toalha enrolada pelo corpo, deitou-se na cama e abriu vagarosamente a toalha à sua frente, como se abrisse um presente. Fábio sentiu o coração disparar. O corpo jovem de Júlia o excitava de uma forma como nunca havia sentido antes em toda a vida. E arriscava tudo, até o medo de se encontrar com o seu marido, Arnaldo, primeiro-tenente da marinha. Homem alto, de rosto quadrado, ombros retos como dois cabides.

      Aquilo lhe dava um medo danado.

      Arnaldo costumava vestir a sua farda o tempo todo. Fábio, só de imaginá-lo entrando na casa com aquele uniforme de militar, parecendo ter os dois cabides como ombreiras, ficava bastante ansioso. Mas, por estar a sós com Júlia, tudo compensava; até aquele medo que sentia de Arnaldo. Mas naquele dia, justamente naquele dia, a imagem do marido de Júlia fardado entrando na casa, entrando no quarto, não lhe saía da cabeça.       O que não ocorria em outras vezes. Talvez um pressentimento, como se algo ruim fosse acontecer.

      O corpo de Júlia, fresco pela água-de-colônia, os bicos dos seios saltando como dois botões rosados e aquele desabrochar de pétalas dos lábios eram súplicas. Seus olhos tinham um brilho carregado de desejos. Aqueles desejos não precisavam ser ditos. Ela permanecia calada. Ele, tudo entendia.

Enquanto faziam amor, Fábio ouviu um barulho. Se afastou como uma mola e disse que alguém teria entrado na casa.

      — Arnaldo está a quilômetros daqui — disse Júlia.

      Ele vestiu-se ligeiro.

      Caminhou pela casa. Pé por pé pelo carpete do corredor. Desceu as escadas. Estava trêmulo. Arnaldo costumava andar armado. Foi até a sala, espreitando tudo: atrás das poltronas, da despensa, do banheiro no primeiro andar. Revisou a porta. Estava fechada. Não ficou satisfeito. O coração ainda disparava.

      — Volte pra cama! — implorou Júlia numa voz doce.

      A sensação de Fábio era de que ele estava sob a mira de alguém, possivelmente com uma pistola.

      Sem se despedir de Júlia, ele deixou a casa, fechou a porta, ganhou a rua, atravessou a avenida. Havia uma multidão. Era hora do rush.

      Fábio e Arnaldo eram amigos há muitos anos e, desde sempre, desde que Fábio conheceu Júlia, quando o amigo lhe apresentou a namorada, não pôde controlar aquele desejo de conquista. O seu corpo, os seus olhos, os seus cabelos, o seu cheiro... E somente depois que ela se casou com Arnaldo é que Fábio pôde conquistá-la. Sentia-se o homem mais feliz do mundo, mas sentia-se também o maior dos traidores.

      Fábio ouviu o primeiro tiro ao acabar de atravessar a avenida. Eram muitos os transeuntes e os carros que passavam. Ouviu o segundo disparo. Todas as pessoas ouviram os disparos. Alguém na multidão gritou: tiro!

      E Fábio também gritou: 

      — É tiro.

      Grande corre-corre. As pessoas se atropelavam. Centenas de pessoas que corriam. Uns caíam ao chão em desespero. Foi ouvido um terceiro disparo. Fábio acreditou que ele seria o alvo e que Arnaldo poderia atingir um inocente, mas ele não estava preocupado com isso. Aquele medo todo fazia com que ele só pensasse em se salvar.

      Ouviu um quarto, um quinto, um sexto tiro, um atrás do outro.

      Paaaá! Paaaá!

      A essas alturas Fábio estava atrás de um edifício alto junto à rua que cruzava a avenida. Espreitava devagarzinho essa avenida quando viu um fusca muito velho subindo a ladeira com disparos no cano de descarga.

      Paaaá! Paaaá!

Gostou e deseja continuar a leitura?
bottom of page