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Capítulo Inicial

Crônica de uma vida doada

Capítulo 1

Desbravar de novas fronteiras

     Me contam que, quando eu tava na barriga da minha mãe, fizemos uma longa viagem, que quase matou nós duas. Se bem que meu pai não sabia se seria pior a gente morrer naquele navio ou dentro da nossa própria casa. Se é que aquilo poderia ser chamado de casa...

     A vida dos meus pais era muito difícil, eles já tinham quatro filhos e eu tava a caminho. Meu pai mal vencia trabalhar de dia pra nos alimentar de noite. Já me incluo nisso, porque eu tava na barriga da mãe, né, e ela comia por nós duas. E era o que tinha, às vezes um pedaço de pão, um caldo quase que só de água ou um mingau de farinha. Minha mãe tava tão fraca que mal podia com os afazeres domésticos.

     Aí surgiu essa oportunidade de ir embora e poder viver um pouco melhor. A mãe tava no sétimo mês de gestação e passava mal direto no navio, tinha dores, febre, vomitava muito. Meu irmão Casimiro dizia que ela tava sempre verde. No navio não tinha médico, mas Deus colocou lá alguém pra interceder por nós.

     Uma passageira notou toda aquela situação e se aproximou da gente, se apresentou como Nikolina e disse ser parteira. Ela tinha percebido uns sinais estranhos saindo da minha mãe e disse que sabia que não tava no tempo, conseguia dizer só de olhar pra barriga dela, mas via que eu queria nascer. E ela tava certa.

     A mulher ajudou no parto, que foi ali fora, no navio mesmo, com todos passando. Mas ninguém se atrevia a se aproximar. A cara de preocupação do meu pai era substituída por fúria incontrolável quando percebia que alguém chegava perto da gente.      A pessoa logo se dispersava e seguia o próprio caminho.

     A mãe perdeu muito sangue, e eu quase sufoquei. Demorei muito pra nascer e vim ao mundo toda roxa, quase asfixiada e muito pequena. O pai me enrolou no casaco dele e, por isso, quase congelou naquela noite. Todos os agasalhos dos meus irmãos foram destinados à mamãe. O batimento dela tava tão fraco que o luto já se apossava da nossa família. E a minha sobrevivência era muito incerta também.

     A parteira não tinha muito, mas ajudou como pôde. Conseguiu algumas ervas medicinais e tirou da própria comida pra oferecer pros meninos, que tavam só pele e osso também.

     Como que por milagre, a mãe sobreviveu. Tava frágil e vulnerável, mas disse a vida inteira que naquele dia se negou a morrer, porque uma menina precisa ser educada pela mãe. Ela sempre foi assim, casca grossa, mandona. Obrigou o próprio corpo a se curar.      Depois de uns dias, começou a cuidar de mim. Pra falar a verdade, nem sei como me alimentaram, não tenho ideia de como eu tô aqui hoje.

     Enfim, foram meses de muita dificuldade. Era tempo ruim, pouca comida, fraqueza, doenças. Mas a gente conseguiu chegar na terra prometida. E o pai sempre fala que, quando chegou, nem sabia o que sentir. Era puro mato, mas era nosso.

     Era um pedacinho de terra só, bem pequeno. O pai e os guri começaram a fazer serviço que nem loucos. A gente tava numa espécie de acampamento, junto com várias famílias. Foi onde eu e a mãe conseguimos revitalizar um pouco a saúde, tinha mais comida e dava pra gente se proteger do frio.

     O lugar que a gente tava era bem gelado em uma época do ano e bem quente em outra. Bem extremo mesmo, ou um, ou outro, não tinha muito meio termo. Se dava um dia ameno no ano, já era bastante.

     Aos poucos, fomos conseguindo prosperar, meu pai construiu uma casinha simples, mas bem forte, resistente ao mau tempo. Eu fui crescendo nesse espaço, rodeada de muitas pessoas de países diferentes, falando línguas diversas. Mas tinha uma escolinha, em que ensinavam pra nós o português. Meus pais não chegaram a aprender nada além do polonês, meus irmãos aprenderam um pouco da língua brasileira, mas, ainda assim, se confundiam bastante e misturavam tudo em diversos momentos.

     Aprendi a falar bem, mas escrever e ler eu não sabia. Passei grande parte da minha vida sem saber, sem poder me virar quanto a isso. Não deu tempo de estudar, como se diz, né.

     Depois das dificuldades dos meus primeiros meses, fui crescendo bem, não dava pra dizer que era forte e saudável, mas era uma criança alegre. A mãe contava que eu vivia saltitando pra cá e pra lá no meio do mato, catando bichinhos pra brincar. Ela tava sempre trabalhando, cuidando da nova casa, fazendo comida, junto com as outras mulheres da vila que nascia. E eu ali, ao redor.

     Aprendi a trabalhar muito cedo, quando a mãe percebia que tinha uma coisa que eu podia fazer, me botava pra fazer, me ensinava, e eu ia, aos pouquinhos, aprendendo e conseguindo realizar as tarefas que ela me dava.

Até os 5 anos, fazia mais coisas domésticas, limpava louças, o chão, ajudava na cozinha e lidava com os bichinhos pequenos, umas galinhas e uns porquinhos. Depois é que o negócio ficou pesado.

     Quando eu tava com 6 anos, minha mãe ficou grávida de novo. Meus outros irmãos já eram bem crescidos, praticamente adultos. O Casimiro já tinha até saído de casa, tava casado e tendo os próprios filhos. E Stanislaw, perto de completar 18 anos, iria pro exército. Ele tava animadíssimo com isso, mas eu tinha medo. Não sabia o que era o exército e, quando perguntei pra mamãe, ela disse que era onde os soldados de uma pátria eram treinados pra proteger seu país, mesmo que precisassem morrer por isso. Na minha cabeça, isso não fazia o menor sentido, parecia uma barbaridade. Ninguém deveria ter que morrer por um país. Eu só sabia que não queria que meu irmão morresse.

     Os outros dois guris, o Jan e o Ludwik, eram mais novos, o primeiro com 12 e o segundo com 10. O nome da mãe era Dorota, e do pai era Piotr, mas todo mundo aqui chamava ele de Pedro. O meu nome era o mais diferente de todos, porque eu já tinha nascido longe da Polônia, daí, né, a mulher que fez o meu parto disse pra botarem um nome que ia ser mais fácil no lugar em que eu ia crescer. Por isso, meu nome não foi Apolonia. 

     Acabaram me chamando de Maria, porque diz que todo mundo tava dando o nome das crianças de Maria alguma coisa por aqui. Só que ao invés de botar Maria Paulina ou Maria Krystyna, colocaram Gertrudes, que vinha de origem germânica. Mas enfim, as coisas eram como eram. Do meu sobrenome eu tinha orgulho. Dobrovolski. Um sobrenome de gente forte, de gente guerreira, de gente lutadora.

     E eu cresci bem assim, sendo uma rocha.

     A mãe sempre contava que lá pelos meus 8 anos eu já ajudava ela mais do que qualquer outra pessoa e que eu era um orgulho pra ela. A mãe já tinha tido mais duas crianças, um menino, que chamaram de Tarciso, por influência de umas amizades que meus pais fizeram no país novo, e outra menina, que chamaram de Lurdes. Esses dois eu praticamente criei!

     Me lembro até hoje de quando as porquinhas começavam a raspar o chão, o que era sinal de que iam dar cria. Daí, né, a gente sempre ia lá, levava a pequena em um cesto e deixava perto, e o guri tinha que ficar sentadinho quieto, senão a mãe xingava na hora, e ai de quem desobedecesse. Aí a gente forrava o cercadinho delas e, meu Deus, aquela palha com terra parecia tão pesada! Depois de grande, eu fazia as coisas e parecia tão leve, mas quando pequena, era tudo tão difícil, tão mais pesado e ameaçador. Mas eu aprendi a lidar com os medos e as dificuldades, tive que aprender.

     Lembro que eu tinha dó dos leitãozinhos. Quando nasciam, a mãe cortava os dentinhos, pra não machucarem a porca e nem um ao outro. Nas primeiras vezes, eu chorava escondida de pena dos bichinhos. Mas daí, né, a gente se acostuma. Mesmo não gostando daquelas coisas, não tinha muita opção e, no final das contas, eles ficavam bem.

     O mesmo acontecia quando matavam os bichos. Nossa, quando eu era criança, sofria tanto! Você nem imagina como aquilo me magoava. Eu odiava ouvir os animaizinhos chorando e gritando. Pra mim, aquilo era um terror, me destruía. Tanto que, nas primeiras vezes que tive que ajudar, tomei umas xingadas do meu pai, pois deixei escapar uma galinha que ele ia matar. Mas eu era pequena, né, me assustei e não queria que o bichinho morresse.

     Depois fui me acostumando, ajudava a fazer mais a parte final, limpar os bichos quando já tavam mortos e guardar as carnes. Não adianta, nunca consegui matar. Eu senti culpa por isso durante muito tempo, mas depois percebi que era porque eu não gostava de ver sofrimento, de bicho ou de gente, sempre tive um coração bom, sabe? Isso é uma coisa de que me orgulho muito, mesmo em meio às dificuldades, mantive a honestidade e os valores que a mãe me ensinou.

     Daí, né, quando eu tava com quase 9 anos, um mês antes do meu aniversário, me lembro bem certinho, o pai faleceu. Até hoje não sabemos o que aconteceu com ele, mas a gente calcula que foi um ataque do coração, porque trabalhava demais, descansava e comia quase nada, sempre naquele solão de rachar, já tava acabado tinha uns anos. Uns três meses antes de morrer, ficou muito mal. Parece que, pensando lá atrás, ele foi se arrastando até o último dia, até que o corpo dele não aguentou mais de tanto trabalhar.

     Nisso, dois dos meus irmãos tavam fazendo umas amizades meio suspeitas, indo muito pra bodega da cidade, bebiam e jogavam, e a família ficou feia de dinheiro. Daí, né, eu e a mãe nos obrigamos a ir pras roças. Não tinha o que fazer.

     Mas eu era mais forte do que ela, mesmo quando novinha. Ali eu já tava com bastante força, e isso só foi aumentando. Meus irmãos, às vezes, iam ajudar na lavoura, mas eram preguiçosos, e o trabalho pesado sobrava pra mim. A mãe começou a ficar em casa cuidando do resto das coisas, que também era muito pra dar conta. Ela já não era a mesma desde a morte do pai.

     Tanto que meu irmão e minha irmã mais novos viviam atrás de mim. Eles brincavam lá pelas roças, mal tinham idade, mas ficavam por lá, porque a mãe brigava demais com eles, coitados. Ela sofria e não sabia o que fazer com aquele sofrimento, daí, né, acabava descontando em quem tivesse perto.

     Mas eu sabia que toda aquela fraqueza não tava normal. Fui ficando cada dia mais preocupada com a saúde dela, sabe? Via ela muito debilitada, precisava passar muito tempo deitada. Dormia até umas nove horas da manhã.

     Muito antes disso, eu já tinha dado café pras crianças e mandado elas pra escolinha, tinha tratado os bichos e ido pra roça. Eu trabalhava a manhã inteira. A mãe mal conseguia fazer o almoço, eu deixava tudo prontinho pra ela, pra ver se ficava mais forte se alimentando bem.

     Depois que a gente comia de meio dia, as crianças me seguiam pra lavoura. Se dava o milagre de algum dos piás mais velhos tá por lá, era certo que dava briga. Não paravam de inticar com os mais novos, e eu assumia o papel de mãe ali, fazia eles parar.      Às vezes, eu tomava umas bordoadas de algum deles, mas era aquilo mesmo, não tinha o que fazer. Tinha que aguentar e pronto.

     A gente voltava tarde pra casa, e a mãe normalmente tava dormindo. Durante a tarde, ela ia na horta e tratava os bichinhos, pelo menos no início da doença dela, mas depois eu tive que fazer tudo mesmo. As crianças iam me ajudando no que podiam. A janta eu fazia, a gente comia e já ia dormir, né.

     A mãe mal aguentava fazer qualquer serviço. Tava com uma depressão braba, não se alimentava direito, foi ficando com anemia, e aí começou a aparecer todo tipo de coisa. Tinha muita tontura e desmaio. Teve até gente falando que ela tinha se envolvido com algum homem por aí e pegado barriga. Meus irmãos contaram isso em casa um dia, fiz um escândalo de tão braba que fiquei. Mas ia fazer o que, né? A mãe só chorava, mas, quanto a isso, pareceu bem indiferente.

     Me obriguei a levar ela pro médico num dia em que desmaiou e não acordava por nada. Cheguei a achar que tivesse morrido. Fiquei com muito medo. Pedi ajuda pros vizinhos, que nos levaram de carroça. Era muito longe, eu não tinha como carregar ela sozinha.

     No final das contas, ela tava com uma anemia severa. Disseram que, mais um pouco, ia ser difícil de tratar, mas tínhamos ido a tempo. Fomos no postinho municipal, então não precisei pagar nada pela consulta e nem pelos remédios. E graças a Deus por isso, porque, se tivesse que pagar, não sei o que eu ia fazer. Nossas economias mal davam pra gente se sustentar, e o trabalho rendia cada vez menos.

Já era noite quando os vizinhos nos deixaram em casa. Tava tudo tão quieto que até pensei que as crianças tavam aprontando algo, mas, ao chegar perto de casa, vi os dois abraçados em um cantinho, chorando.

     – O que aconteceu?

     – Veio uns cara, mana! Eles tão lá dentro de casa ainda, tão fazendo um monte de barulho. Mandaram a gente ficar aqui quieto, senão matam a gente!

Quando meu irmãozinho disse isso, meu peito apertou. Sentei a mãe no chão, do lado deles, e pedi que cuidassem dela. Óbvio que eu não queria entrar lá, mas não tinha o que fazer. A minha irmãzinha tentou segurar minha saia e me puxar, mas sinalizei que ficasse bem quieta e peguei um pedaço de pau.

Entrei na casa de cabeça erguida e encarei os sujeitos. Eram dois homens corpulentos e sujos. Até hoje não me esqueço da maldade com que me olharam, me dá calafrio só de pensar na intenção deles. Eu era só uma menininha de nove anos.

     – O que vocês querem na casa da minha família?

     – Viemos cobrar uma dívida que seu irmão foi covarde demais pra pagar.

     – Meu irmão?

     – É, aquele bosta do Jan conseguiu fugir antes da gente pegar ele, diferente do merda do Ludwik.

     Nesse momento, senti minhas pernas gelarem e soube que algo terrível e sem volta tinha acontecido. No final das contas, aqueles caras tinham assassinado o Ludwik na bodega e teriam matado o Jan também, se ele não tivesse fugido a tempo. Os caras já tinham feito uma bagunça na nossa casa, revirado tudo, e eu sabia que se não conseguissem o dinheiro, iam fazer coisa pior. Fui até o lugar em que a gente escondia o dinheirinho da família, mas tava vazio. Adivinhei na hora o que tinha acontecido: era certo que meu irmão tinha passado pra pegar nossas economias antes de desaparecer no mundo.

     Mas eu não era besta e já tinha notado o comportamento perigoso dos meus irmãos, sabia que dali não ia sair coisa boa. Então, passei a esconder uma parte do dinheiro todo mês. Assim, fui até o esconderijo, o tempo inteiro de frente pros sujeitos, peguei tudo o que tinha e joguei pra eles, falando com firmeza:

     – Não sei no que os meus irmãos tavam metidos. Mas minha família já não tem mais nada, o pai morreu, a mãe tá doente, meus irmãos precisam de mim pra criar eles. Peguem isso e sumam daqui, deixem a gente em paz e não voltem nunca mais. Não adianta vocês virem atrás do meu irmão, porque eu conheço ele e sei que nunca vai voltar, vai deixar a gente largado, e eu sou a única que mantém isso aqui. Vocês deram a chance dos meus irmãozinhos não interferirem no que iam fazer aqui. Sabem que eles não têm nada a ver com isso, que são inocentes. Em nome de Deus, só peço que tenham misericórdia e aceitem isso como pagamento da dívida do meu irmão, já que do outro tiraram a vida. E sigam em frente.

     Eles se olharam e acho que ficaram com pena de mim, sei lá. Os caras eram ruins, dava pra ver. Mas deviam ter filhos, porque depois que eu disse aquilo, o semblante deles mudou. Vi que a maldade de antes tinha apaziguado, me viram como a criança que eu era. Pegaram todo o dinheiro, levaram mais umas coisas e foram embora.

     Nunca mais deram as caras e não vi mais sinal deles, mas vivemos durante muito tempo com medo, eu imersa em um luto terrível. Tive medo de que, se a doença não destruísse a mãe, aquilo acabaria com ela, e meus irmãos eram novinhos demais pra lidar com tanta dor. Então, pela primeira e única vez na minha vida, eu menti.... Falei que os dois tinham conseguido fugir.

     Não sei nem o que foi feito do corpo do Ludwik. O Jan nunca mais apareceu. Todo mundo ficou triste pensando que tinham abandonado a gente, mas ia ser bem pior se soubessem toda a verdade.

     Eu menti sobre isso e nem consegui me sentir culpada. Nossa família ficou zerada, não tinha dinheiro pra nada. Eu tava trabalhando pra alimentar nós quatro, meu irmão mais velho dava uma ajuda quando podia, mas também já tinha a família dele, mulher e filhos, não era fácil pra ninguém. A gente entendia isso, lógico.

     Meu irmão do exército tava longe, a gente mal conseguia contato. Na verdade, nem sabia se ele tava vivo ou não. Recebia uma carta aqui e ali, mas era muito distante, nem me lembrava mais do rosto dele. Enfim, fui segurando as pontas até onde dava. Quando fiz 10 anos, minhas mãos já eram mais calejadas do que as do pai quando faleceu.


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