Contos Iniciais
Contos da Minha Vida
O sagrado coração de Quirino
Capítulo 1:
A comunidade vive o pesadelo de Candida de Ardoza
Quarenta anos depois de seu marido e pai de sua filha ter se enforcado, Candida de Ardoza decidiu que já era tempo de a comunidade conhecer as verdadeiras razões desse ato de profunda violência moral.
A história possuía tantas facetas quantas eram as lendas dela surgidas, e, no entrelaçamento de todas, surgiu a atmosfera que assombrava a região. Um dos motivos era a total inexistência de qualquer meio de informação. Assim, as pessoas enxergavam na tela das suas mentes tudo o que ouviam. Contar e ouvir para enxergar era o vício coletivo da comunidade mergulhada em si mesma.
Candida de Ardoza sabia que o relato de sua vida fervia no caldeirão da comunidade. O povo acrescentava tantos e novos ingredientes que, com o passar dos anos, ela passou a acreditar que era tudo verdade.
Tudo teve início quando Cândida sonhou que Quirino de Ardoza surgiu à frente de um grupo de ciganos, despejou uma grande quantidade de moedas de ouro aos seus pés e disse: “Estou rico, já podemos nos casar.”
Uma cigana, vestida com cascatas de tecidos furta-cor e com enormes argolas douradas nos lóbulos das orelhas, pediu para ler a mão de Candida. Após alguns momentos, disse que ela não devia casar-se com aquele homem.
— Por quê? — perguntou.
— Porque ele já está morto — respondeu a cigana, apontando para o chão.
Quirino submergia lentamente num charco até não restar mais nada de seu corpo, mas ainda assim gritava no fundo do lamaçal. Ao despertar, Candida de Ardoza levou algum tempo sonhando acordada, com ondas de arrepios nos braços e na nuca. Imediatamente decidiu falar com Mafalda de Aragon, avó de Quirino por parte da mãe. Mafalda costumava dizer, em locais públicos (em alto e bom tom), que conhecia a maldade humana até pelo lado do avesso.
Capítulo 2
Mafalda de Aragon conduz Candida de Ardoza pelos labirintos de Quirino
— Amor não é para ser uma doença, minha filha — disse Mafalda de Aragon em seus aposentos com as paredes cobertas por fotografias em cor sépia. As roupas de época não permitiam dúvidas: eram todos finados. Seu tom de voz doce e baixo nada tinha a ver com os rumores de suas práticas de ocultismo.
— Não te iluda — continuou. — Quirino sempre foi assim, ele não ama ninguém, quando gosta de uma mulher enlouquece. — Mafalda de Aragon, com sua memória ardente, trazia a céu aberto detalhes assustadores da conduta de um Quirino de Ardoza tomado de loucura mórbida quando em estado de paixão. — Em seus extremos beira a cenas de sangue. É o ciúme enraizado na escuridão da sua alma. O veneno esfacela e desgraça todos os amores de sua vida.
Quirino Benitez de Ardoza não tinha noção de sua fama contaminada pelos miasmas de sua insanidade lá onde vivia, na Grota da Varginha, um povoado submerso em sua
santa ignorância.
Capítulo 3
Candida e Quirino Benitez de Ardoza se casam e abrem as portas da maldição
Candida de Ardoza transferiu para a decoração da casa muito dos seus sentimentos de tal arte que cobriu as paredes de flores e, em cada canto da casa, vasos com as mesmas flores pintadas na parede. Mandou pôr um grande quadro de Cristo com o coração apunhalado e cercado por uma coroa de espinhos. Na área nobre da parede, um retrato do casal com moldura ovalada.
Como não arranjava emprego, Quirino Benitez de Ardoza decidiu ser caixeiro-viajante. Pelas suas contas, passaria dez dias viajando no lombo do burro e dez dias em casa, no paraíso. Na partida não era incomum o beijo de despedida deixar um rastro de aflição; da porta até a cama do casal calça, vestido, chapéu, pano de prato. A seguir ela ficava no portãozinho acenando até o burro do caixeiro desaparecer na névoa.
Sabe-se lá por que Quirino de Ardoza pegou uma trilha desconhecida. Se embrenhou no meio dos matos e avançou como os conquistadores dos sertões bravios, com uma faca no meio dos dentes. Súbito, viu ao longe a fumaça branca de uma chaminé e logo avistou uma casinha. Embainhou a faca e fez reflexões reconfortantes; naquele fundão, no meio do nada, as gentes abrem as portas de suas casas ainda que seja para desconhecidos. Pediria pousada, um naco de carne ou um pedaço de galinha assada. Depois recostaria o esqueleto num colchão de macela perfumada, como era costume.
— Ó de casa!
Bateu palmas uma, duas vezes e, na falta de resposta, autorizou-se entrar sem pressentir que essa decisão o levaria para o vestíbulo da tragédia de sua vida. Subiu os degraus de acesso ao hall, de modo que bastou olhar pela porta aberta para ver o quadro de Cristo, com uma coroa de espinhos e, em volta do coração, um fiozinho de sangue. Ao lado, um quadro com moldura ovalada com a foto de sua esposa. No entanto, quem estava ao lado dela na foto era um desconhecido. O seu recalcitrante e mórbido ciúme despertou animado pela dor e pelo medo. Aterrorizado, fugiu e se embrenhou no meio do mato sem observar os detalhes do quadro. Mesmo tendo uma semelhança extraordinária com Candida de Ardoza, aquela que estava no quadro de moldura ovalada não era Candida de Ardoza. Mafalda de Aragon, tivesse assistido a essa cena, diria que o ciúme doentio robustece imagens e sentimentos que só existem na mente dos enfermos.
Quirino Benitez de Ardoza voltou para casa remoendo o plano de sua vingança. Ao entrar na Grota da Varginha, passou por três casas. Em uma delas havia um casamento, na outra um batizado, mas ele apeou para entrar na casa de um velório de gente desconhecida. Era Quirino em conversa com a morte.
Capítulo 4
A vingança
Entrou em casa em silêncio e, ao chegar no quarto do casal, quedou-se com a visão da esposa dormindo. Ouviu sua respiração, sentiu seu perfume delicado e teve vontade de chorar. “Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome...” rezou em silêncio. Queria afastar o desejo de matá-la. Sentou-se na cama e contrariado pousou sua mão na curvatura do quadril de sua mulher. Ela despertou em meio à preguiça lânguida e sensual. Porém, ao olhar para os olhos de Quirino, viu a presença do demente, do louco varrido.
Quirino pressentiu o medo da mulher e logo concluiu que se tratava de culpa. “Ela fez uma sacanagem grossa”, pensou com absoluta convicção. Levantou-se rangendo os dentes e foi para a cozinha tentando lembrar-se onde havia guardado sua faca açougueira. Ao ouvir o barulho dos talheres, Candida de Ardoza gritou do quarto:
— Vou chamar a Mafalda agora mesmo!
O nome de Mafalda de Aragon fez Quirino soltar a faca na gaveta. O medo de Mafalda datava de quando era criança, ao dar ouvidos sobre o que diziam de sua avó nas ruas: uma bruxa; seus feitiços aleijavam (ou matavam) quem ela quisesse, até parente ela entortou.
Quirino saiu da casa e foi para o pátio, sob um luar radiante que desenhava sombras duras no chão. Numa dessas sombras, de cócoras, surtado, Quirino se imaginou pendurado numa corda, enforcado. Imaginou Candida desesperada, inconsolável. Num impulso, entrou no galpão, e, de posse de uma corda, enquanto preparava o nó de forca pensava em voz alta. Candida de Ardoza tudo ouvia atrás da porta do galpão. O ponto alto da sua queixa era a hipótese de ela ter uma segunda casa em que vivia com outro homem, na sua ausência. Com a voz rouca, Quirino deixava transparecer o estresse que antecede os momentos do suicídio. “Ela vai carregar um enforcado no coração para o resto da vida. Vai purgar dia e noite, vai deitar e levantar comigo.”
Quirino Benitez de Ardoza ajustou o laço de forca no pescoço, subiu em uma cadeira que possibilitou a altura para o enforcamento e, decidido, chutou a cadeira. Candida deu alguns passos e se plantou na frente do marido pendurado pela corda, esperneando em desespero. Ela percebeu que ele se arrependera e tentava encontrar a cadeira a um palmo de seus pés. Candida Ramilda de Ardoza gritou como gritam os que atravessam a linha entre a vida e a morte, e aos gritos disse:
— Vou carregar um enforcado no meu coração para o resto da vida. Melhor assim do que viver para sempre com medo de ser assassinada pelo meu marido. E num repente Quirino Benitez de Ardoza ficou imóvel, como se ali estivesse pendurado um saco de batatas.
Capítulo 5
Filha de Candida de Ardoza surge em festa pública em Grota da Varginha
Grota da Varginha possuía uma população flutuante de não mais de cinco mil pessoas. No entanto, em dia de festa do padroeiro da cidade, agregava-se a ela um fluxo impreciso de centenas de pessoas que acorriam das comunidades vizinhas com a intenção de participar dessa que era a maior festa religiosa de toda a região. Com o tempo o Dia de São Peregrino mostrou a cara do povo, com suas músicas, suas comidas, suas risadas e um cheiro persistente de perfume ordinário misturado com o de carne assada e suor.
Mobilizada, a população organizou um espontâneo mercado das pulgas. Panelas antigas, rádio Semp, ferros de passar a carvão, espada da Guerra do Paraguai, moedas com 300 anos, relógios cuco e uma variedade indescritível de estranhos objetos expostos exclusivamente para vender e sem nenhuma outra serventia. Mais ao fundo, nas sombras do arvoredo, prostitutas pobres e vestidas com molambos assediavam jovens ingênuos encharcados de feromônios.
Não se sabe de onde surgiu um circo armado na praça central. Circo pobre, sem jaulas nem feras exóticas, carências compensadas pela atividade frenética dos palhaços, dos malabaristas, dos cuspidores de fogo, dos mágicos e dos trapezistas. Do alto-falante fixado num poste, a voz afetada do locutor avisou que iria começar o maior espetáculo da terra. E logo a trapezista, por erro de cálculo, passou rasante por sobre a plateia.
O mágico fechou três anões dentro de uma caixa e, após bater na tampa e abri-la, dali surgiram três leitões imediatamente surrupiados pelo povo, e, a um só tempo, os anões apareceram correndo no meio da multidão que, por sua vez, fez explodir uma salva de palmas creditadas a um grupo de malabaristas com suas tochas de fogo. Até mesmo um bando de chineses surgiu em evoluções ao jogar facas rentes ao corpo de uma mulher de formas generosas amarrada na grande placa do alvo. Só vendo para crer. Era uma arena com uma imensa profusão de facas e fogos, gritos e danças, mágicas e malabarismos e o espanto emocionado nos olhos inocentes do povo da Grota da Varginha.
Candida de Ardoza, sentada em um lugar discreto da arquibancada, experimentou um mau pressentimento ao ver um jovem cigano com um lenço vermelho na cabeça. Num salto de felino, ele soltou o trapézio e caiu no meio do palco. Sua camisa aberta no peito deixava entrever um coração tatuado com algo escrito no centro. Candida fracassou ao tentar ler.
O alto-falante do poste anunciou o momento mais espetacular da festa:
— E com vocês... ela, a rainha do circo!
Quando o cortinado foi aberto, a plateia viu surgir do fundo do palco um tapete púrpura, visivelmente roto e empoeirado, sendo desenrolado por mãos invisíveis. Homens enfileirados com suas tochas faziam um túnel de fogo, e eis que aparece a rainha, com seus trejeitos sinuosos e sua cadência coreografada pelo rufar dos tambores. Ao cruzar a fronte do palco e revelar sua figura bela e altiva, ouviu-se um imenso clamor.
As pessoas que ficaram confinadas no purgatório de suas casas, no outro dia, disseram terem ouvido ao longe as vozes do medo, o clamor. E se sentiram mal. É aceitável: quem entrou no palco foi Candida de Ardoza, que se encontrava sentada em lugar discreto da arquibancada. Ou era uma cópia de Candida de Ardoza? Observando-se melhor, a versão recém-aparecida aparentava ser bem mais jovem do que a original. Candida de Ardoza, mais velha e desassombrada, não se conteve: saiu da arquibancada e subiu no palco. As duas mulheres se quedaram frente a frente, imóveis, olhando-se nos olhos, atordoadas. E logo se entregaram num demorado abraço. Um silêncio de cemitério pairou sobre tudo e sobre todos. O mágico, intuindo que aquilo podia provocar um estouro da multidão, jogou sua capa em cima das duas mulheres e, por artimanhas do seu ofício, fez com que as duas desaparecessem, restando somente sua capa em cima da serragem sob uma retumbante salva de palmas. Para o povo tudo era parte do show.
Ao cair da noite, ninguém notou que mãe e filha saíram de cena por baixo das arquibancadas e sumiram na escuridão.
Quando entraram em casa, Candida de Ardoza perguntou à filha o que estava tatuado no peito do jovem cigano.
— Amor de Erisa — respondeu a jovem.
— Você se chama Erisa?
— Sim, mamãe.
Cândida lembrou que na época, quando contou para o Quirino que estava grávida, ele enlouqueceu de medo. Medo do padre e do diabo. Erisa ouvia o relato como se estivesse em transe.
No sermão da missa, era comum o padre dizer que mulher solteira que ficasse grávida o diabo viria buscar a criança.
O teu pai estava aterrorizado e mandou eu tirar. Respondi que não tirava nem que o Capeta me mandasse tirar pessoalmente, não tirava. Ele implorou para que ela abortasse. e, ao ver que a mulher se mantinha irredutível, foi para o pátio. Caminhava de um lado para o outro, enquanto mordia as mãos e tentava arrancar os cabelos.
Com o tempo eu fui ficando cada vez mais barriguda, então perguntei para ele que nome que a gente ia dar para a nossa criança, se fosse menina, ou que nome se fosse menino.
— Tanto faz, esta criança vai ouvir o chamado do Demo e se jogar antes da hora — respondeu Quirino, saindo às pressas para a rua.
— Eu sabia que era uma menina, não tinha certeza, meu sangue me dizia que sim. Não tive tempo de pôr o teu nome, minha filha — Candida de Ardoza respirou fundo para não chorar. — O teu pai te vendeu para os ciganos quando tu eras recém-nascida.
Neste momento da conversa, Candida de Ardoza, com sua sensibilidade de sobrevivente, deu-se conta de que não deveria falar dos ciganos, nem bem, nem mal. Eram pais de criação de Erisa Zaragoza de Castela, família tradicional oriunda
da Espanha.
Candida contou para Erisa que, quando nasceu, levou-a para Mafalda de Aragon, sua avó. Mafalda notou a estrela no lado esquerdo de sua testa, pequena, discreta, mas uma estrela. E disse a ela que a estrela era o sinal de que aquela criança estava protegida da má sorte, de gente do mal e dos espíritos das trevas. Emocionada ao ouvir a história contada por sua mãe, Erisa segurou a mão de Candida. Afinal ela sempre cultuara sua estrelinha ao longo da vida.
Capítulo 6:
Quirino vende a filha para os ciganos
Após o nascimento de sua filha, Quirino, em pânico dia e noite, saiu de casa e se embrenhou na mata. E lá ficou por sete dias e sete noites, bebendo água da chuva e comendo raízes. Era o medo do Cavernoso, do Não Diga. Passou a sofrer de diarreia crônica, e já era possível ver seu esqueleto debaixo da pele. Porém, foi no silêncio da mata que teve a ideia de como se livrar do diabo: levaria a filha para os ciganos, com os quais tinha um vínculo fortalecido pelos negócios.
Candida de Ardoza não se deu conta quando Quirino partiu em busca do seu plano. Foram três dias na garupa do burro para contornar a região dos alagados e ingressar na mata cerrada. Sem trilha ou outras referências, o viajante guiava-se por sua memória. Quirino de Ardoza conhecia cada palmo daqueles lugares, onde quem se perde morre de fome e de sede. Passando as serranias, mais dois dias de marcha batida, contornou a região dos alagados e por fim ingressou nas paragens dos ciganos, nas quais esteve diversas vezes para trocar fumo por pimenta, pólvora por tecido e adagas por ferramentas.
Chegou à noitinha no acampamento. De longe já viu a fogueira que ardia dia e noite e ouviu a algazarra das músicas, das cantorias. Atravessou o pátio central, terreiro das danças e das prendas, foi abraçado por todos e levado em meio a risadas até a tenda do chefe, parceiro de muitas barganhas. Sentou-se, comeu, bebeu, lambeu os dedos e viu as ciganinhas mais belas dançando em cima dos tapetes persas.
Estava ali para um negócio especial. Tinha uma mercadoria diferente e muito valiosa, e que por menos de dez moedas de ouro não tinha negócio, mas se fosse à vista deixava por cinco.
— E o que me ofresques de tan precioso valor, hombre?
— Te vendo uma escravita para tu criares e tomar posse. Quando se quedar mui guapa, te será de toda serventia.
Por amizade, ou porque estava muito embriagado, o chefe mandou que entregassem os cinco dobrões de ouro. Que fossem buscar a “mercadoria”.
Ao pegar o caminho de volta, Quirino pela primeira vez se perdeu. Após voltas, idas e vindas, estava no mesmo lugar. Quanto mais andava, mais se bifurcava na mata, e assim permaneceu durante quase uma semana. Cansado, sem comer e sem beber, Quirino deparou-se com uma visão que o aproximou de uma epifania e fez com que levantasse as mãos para o céu. Há poucos metros, havia uma mesa com manjares sofisticados, fatias de porco assadas, frutas exóticas, um verdadeiro banquete. Com os olhos esbugalhados, Quirino se curvou por sobre a mesa enchendo a boca e, no meio da comilança, gritou desbocado:
— Que se foda, vou comer tudo, nem que o Diabo me carregue!
Bem próximo, um moço bonito, vestindo um terno preto, cabelos engomados, modos elegantes e muita luxúria no olhar, deu um sorriso e perguntou:
— Me chamou, Quirino Benitez de Ardoza?
Quirino não suportou a visão do seu pesadelo. Seus joelhos se dobraram, viu a floresta girar e, numa sucessão de imagens, viu o padre, o chefe dos ciganos, Candida grávida, o quadro de Cristo, viu sua avó Mafalda de Aragon e, por fim, o apagão.
Acordou com o ruído do passaredo, o saco de lona no chão, aberto, com as moedas de ouro espalhadas. Cadê o demo?
A mesa do banquete? O burro? Seja como for, juntou as moedas e saiu cambaleante. Quando Candida de Ardoza viu aquele espantalho saindo do meio dos arbustos, sujo e esfarrapado, não reconheceu o marido. Correu em busca da espingarda e, como não encontrou os cartuchos, deu tempo de Quirino se apresentar:
— Olha, estou rico – e despejou as moedas de ouro.
De fato, cada moeda daquelas valia um bom dinheiro, mas Candida, despachada, não acreditava em fortunas repentinas. Logo foi tomada pelo pressentimento de que aquele dinheiro estava manchado por algum crime, era dinheiro maldito — intuiu. Para não despertar nenhuma cisma, agiu com naturalidade e mandou Quirino tomar um banho, ela já iria servir a janta. Na cozinha, sentiu o mesmo frio na alma de quando o marido não quis tomar conhecimento sobre o nome da filha. Pressentiu algo de muita maldade no seu jeito, nos seus olhos, nos seus modos. Não sabia exatamente o que, mas com certeza tinha a ver com sua filha. E foi invadida por um rancor irreversível. Quirino Benitez de Ardoza não viu nenhuma estranheza na mulher, cego por sua urgência em se livrar do medo, experimentava até mesmo uma fisgada de euforia.
Capítulo 7
A farsa criminosa de Quirino
Conforme o plano, os ciganos chegaram no pátio de sua casa às 4 horas da madrugada. Um deles trajando uma capa preta e dois chifres ajustados em sua cabeça. Vieram buscar Erisa. Era uma encenação para convencer Candida de Ardosa que o Lúcifer queria levar a criança, de acordo com o padre.
Gritos afiados pelo desespero, Candida acordou a tempo ver um vulto sair com sua filha. Correu para a janela e ficou paralisada de terror. Baixou a cabeça para não ver a cena brutal no pátio da sua casa: um círculo de fogo rasteiro e, no centro, o cigano, com sua capa preta e os chifres na cabeça, segurava a criança no colo. Quirino agarrou Candida pelos cabelos e a obrigou a assistir ao teatro tosco.
— Eu não disse? — perguntou triunfante. — Eu avisei!
Candida chorou desesperada, mas logo perguntou ao marido quem era aquele moço bonito, vestido de preto que a tudo assistia. Quirino Benitez de Ardoza desmoronou. Trêmulo e aos gritos, novamente foi acometido pela diarreia e se borrou de medo. Correu para o quarto, enfiou-se embaixo da cama e ali ficou três semanas, imóvel, como se fosse um cadáver insepulto. Candida de Ardoza, volta e meia, gritava da cozinha: “Aqui se faz, aqui se paga.”
Capítulo 8
Os poderes de Erisa Zaragoza de Castela
Com o passar dos anos, Erisa Zaragoza de Castela espantava a todos com suas feições carismáticas, de uma beleza rara. Entre danças clássicas e rodopios, não se fazia de rogada e assim rematou sua lenda ao se tornar a rainha do corredor do fogo, a grande dama do espetáculo que banhava de espanto os olhos das gentes na solidão daquelas paragens.
Ernandez de Alcabrez, com dezoito anos de idade e uma morte nas costas, apaixonou-se às últimas consequências ao voltar de canoa pelo rio. Numa enseada mínima de águas cristalinas, Erisa se banhava nua e solitária, cercada por uma nuvem de borboletas com as mais diversas cores. No exato momento em que sua canoa contornou a curva do rio, o cigano foi atingido em cheio pela visão de Erisa Zaragoza, nua e dourada pelo incêndio do pôr do sol. Abalado, Ernandez pressentiu estar diante do amor da sua vida. Não somente pelo corpo desnudo, pela beleza astronômica da mulher, mas porque viu os espíritos dos seus antepassados envoltos na nuvem de borboletas que voejavam em torno de Erisa.
Na noite dos sortilégios, quando o vinho é bebido em grandes canecas de níquel e a música recebe o reforço de profissionais contratados, Ernandez de Alcabrez mandou seu primo, um tal de Trajano, o doido, roubar uma garrafa de Sangre del Diablo, uma bebida escura feita de cogumelos apodrecidos. Quem bebe desse veneno não morre, mas perde o peso e flutua, razão pela qual a beberagem estava proibida pelas leis da tribo.
Um pouco antes de morder um pano, Ernandez bebeu meia garrafa de Sangre del Diablo e mandou Trajano, o único cigano da tribo que conhecia o alfabeto, desenhar um coração em seu peito e, no centro, as palavras “Amor de Erisa”, tudo feito pela ponta de um punhal em brasa.
Ernandez gritou de dor abafado pelo pano e quando Trajano, o doido, terminou o serviço, o cigano levitou, atravessou a fenda da barraca e pairou no alto. Lá de cima viu as tendas e a fogueira que nunca se apagava. Viu Erisa acenando com os braços levantados, e sua mãe sendo socorrida por outras mulheres. Antes de perder os sentidos, lembrou de um parente embriagado por Sangre del Diablo que foi carregado pelo vento e nunca mais foi visto.
Um vento mais forte levou Ernandez de Alcabrez para o alto das árvores. Seu pai disse que ficasse por lá, agora todos sabiam que ele havia bebido Sangre del Diablo, uma vergonha. Quando o dia amanheceu, Ernandez havia desaparecido. A tribo toda saiu à sua procura pela mata, pela ravina e, como não se via o menor sinal do cigano, fizeram uma busca pelos povoados das imediações. “Não viram um cigano passar flutuando?”, perguntavam. “Tomou Sangre del Diablo?” Tomou. Viram, mas o vento levou seu corpo para as bandas da Grota do Pântano. “Alguém viu por aqui um cigano cair do céu meio bêbado?” Não, mas disseram que na Grota da Varginha tinha um sujeito flutuando preso pelo cinto na cruz de ferro da igreja. Quando seu pai viu a cena, entendeu que Deus segurou o seu filho. Se Deus segurou o seu filho na cruz da igreja, estava perdoado.
Ao chegarem no acampamento carregando o corpo de Ernandez de Alcabrez, Erisa Zaragoza de Castela perguntou aos ciganos o que estava escrito em seu peito. Ninguém soube dizer, era preciso esperar Trajano, o louco, voltar para saber. Como Trajano foi picado por uma cascavel na mata e morreu no caminho, durante muitos anos Erisa ficou sem saber o significado daquelas palavras queimadas no peito do homem que ela amava desde criança.
Capítulo 9
Erisa Zaragoza de Castela leva Ernandez embora
Com as feridas cicatrizadas, Ernandez de Alcabrez saiu da cama para ir direto falar com o pai de Erisa. Pediu a mão da moça em casamento. O chefe do bando não consentiu.
— É sua irmã, reconheço que não é de sangue, seja como for, é sua irmã, e ainda tem o dote dela que vale uma fortuna, nem pensar.
Por causa do desgosto, o jovem cigano afundou na tristeza movediça dos viúvos. Se afastou do bando e passava as noites bebendo Sangre Del Diablo. Para não ser levado pelo vento, amarrou a ponta de uma longa corda em seu pé, a outra ponta em uma árvore.
Foi numa dessas noites que Erisa, apaixonada e sem sono, saiu para caminhar e viu o amado a uns vinte metros de altura, seguro pela corda. Por trás de seu corpo havia uma imensa lua, tão cheia e redonda. Ernandez de Alcabrez lá em cima parecia uma figurinha perdida e desolada. Um homenzinho de braços e pernas abertas, balançando como um afogado, ancorado pelo pé. Erisa foi tomada por um choro ressentido. Voltou para a sua tenda, arrumou suas coisas e foi buscar seu futuro marido.
O povo da Grota do Pantanal já estava habituado com as cenas de surrealismo do bando de ciganos e, portanto, não houve estranhamento quando Erisa Zaragoza de Castela entrou no povoado montada num jumento com suas trouxas e o corpo de Alcabrez amarrado pelo pé a uns cinco metros de altura, como se fosse um balão.