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Capítulos Iniciais

Chamas

CAPÍTULO 1

Do Começo

“O fogo comeu tudo.

Comeu a fábrica do vô.

Comeu a fábrica do pai.

Mas, antes disso, um grande incêndio

comeu parentes meus.”

Li esses versos ao abrir um livro. Fechei logo. Era da minha mãe, a anotação foi feita por ela. Um pouco da nossa história. Uma verdade cheia de mistérios e segredos. Abri de novo. Fechei. Peguei um caderno. Comecei a escrever.

[Meu nome é João e tenho dois irmãos. Sou o do meio, e isso nem sempre é bom. Meus pais parecem se impressionar muito com o meu irmão Thiago, aquele que começou a família Dias. Também não sou o último e mimado. Fico em dúvida; acabo sempre concluindo que sou transparente ou invisível.]

Minha mãe estava me chamando. Guardei o caderno com cuidado. Nele tinha algumas informações que não podiam chegar em mãos erradas. Quando a dona Celi convoca, tem de ser na hora, senão são intermináveis minutos de discurso de mãe. Saí do quarto anunciando:

— Tô indo, mãe!

No corredor fui atropelado pelo Thiago, que adorava chegar primeiro em tudo. Lucas estava sentado à mesa, esperando o prato. Minha mãe, com ares de “ninguém me ajuda”, sorriu quando nos viu. Me servi e comi calado até o Thiago começar a rir de um adesivo colado no cabelo do Lucas. Copo derramado, minha mãe pedindo para parar e o meu prato cheio. Não consigo com tanto barulho.

— O que aconteceu, João?

— Não aconteceu nada, mãe, só quero ficar quieto, minha cabeça tá pegando fogo – falei, lembrando do bilhete no livro.

Queria saber mais sobre essas histórias. Minha mãe desviava do assunto; meu pai, acho que nem sabia direito ou não queria falar. Eu sentia que os incêndios ali no bilhete estavam conectados de alguma maneira.

— Já eu, gosto de conversar— disse a minha mãe enquanto insistia para o Lucas prestar atenção na comida — mas, talvez, nem lembro, quando tinha a idade de vocês também não gostasse. E tu, Thiago, também não quer falar?

— Quero falar! Hoje tem filme na minha sala, vocês sabiam? — Lucas se atravessou.

Daí para a frente pude ficar no meu silêncio. Gosto de entrar no meu pensamento e me perder ali. O mundo em volta fica distante, posso estar em mim. Ser quieto não é coisa ruim. Pelo menos não fico usando as palavras sem necessidade ou para dizer besteiras. Gosto da minha família, é legal ter dois irmãos, não é nada com eles. Nem sei sobre o que conversaram depois.  Assim que acabei, levei meu prato para a cozinha e fui para o meu quarto, na verdade, meu e do Lucas.

Peguei novamente o caderno e, aproveitando que ele iria para a escola, recomecei a escrever.

[Há vezes que acho que nossa família tem o nome errado. Em vez de Dias, seria melhor Dramas. Meu pai, por ser médico, sempre conta histórias lá do hospital onde trabalha. Minha mãe é professora, tem uma escola de inglês, vive dizendo que está difícil e que tem aluno que não paga. Mas não é por isso, não!

Na verdade, é o fogo e as histórias que não contam para nós. Acho que são tão dramáticas e, ainda assim, fingem que não aconteceram. Não sei por que os adultos fazem isso. Parece que não recordam como é ser filho. Também não lembram que pensamos e temos sentimentos. Ter a inteligência ignorada é complicado.

Pior disso tudo é a Paula. Ver que ela está com o Celo é tão difícil. Sou amigo dele desde sempre. Às vezes acho que ele devia ser meu irmão. Mas a Paula estragou tudo. Se eu tivesse dito que queria ficar com ela, acho que não teria rolado nada. Mas sempre tenho essa mania de guardar meu silêncio. Acabei ficando sem ela. E ainda preciso me controlar, já que meu amigo nem sabe o que passa na minha cabeça cada vez que os dois estão de agarramento.]

— O que tá fazendo João? Tem amigo teu lá na porta — avisou o Thiago.

— Tô estudando — menti.

— Vai lá então, o cara tá te esperando.

— Quem é?

Ele já tinha sumido.

Ainda bem que era o Dudu. Ficamos jogando até a hora do vôlei. No caminho para o treino, fui me preparando para encontrar o Celo. Só não esperava ver a Paula lá, mas claro que os dois não podiam se desgrudar.

A Paula estava linda. Ela é linda! Quando nos viu chegar, veio correndo nos abraçar. Pura provocação. Eu nunca disse nada, mas parecia que ela sabia. Então por que ficou com o meu amigo?      Nessas horas que queria voltar para o meu mundo, o meu canto, o meu silêncio.

— E aí? Chegaram juntos? — perguntou o Celo segurando a mão da Paula.

— Sim — respondeu o Dudu. — A gente estava jogando na casa do João.

— Ah, sério? Não me chamam mais? — falou antes de dar um beijo na Paula.

— Por que será, né? — comentei ao entrar na quadra.

O jogo não podia ter sido pior. Torci meu pé e fiquei no banco. Ao lado de quem? Não quis perguntar se dava para piorar porque a minha mãe vive dizendo que dá. Acho que ela está certa, porque na volta para casa, além do meu pé estar latejando de dor, o Celo foi junto e a Paula também.      Moramos perto, bem perto, no mesmo condomínio, só que em torres diferentes.

Tive de assistir àquele show de horrores até chegar em casa. Quando finalmente chegamos, o meu pé parecia uma bola. Meus pais me levaram no hospital e voltei enfaixado e de muletas.

CAPÍTULO 2

Da Alegria

Já fazia três semanas que eu andava de muletas quando finalmente meu pé foi libertado daqueles trapos fedorentos. Era período de provas na escola, e eu, na sequela. Mandaram que fizesse fisioterapia e foi lá que conheci a Patrícia.

Enquanto estava em tratamento, gostava de ficar perguntando mil coisas sobre a profissão. Por isso, a Patrícia me convidou para ir um dia como aprendiz. Achei legal e lá estava, uma vez por semana, para passar parte da tarde. Ajudava em pequenas coisas e observava tudo.

Em função do tempo de uso das muletas, acabei com uns calos nas mãos. Apliquei como desculpa a dificuldade em me mover para não ter de encontrar o grude dos namoradinhos. Um dia o Celo apareceu aqui em casa sozinho. Depois chegou o Dudu e jogamos um tempão. Estava sentindo falta de ter meus amigos sem interferências. Ficamos comendo besteiras e rindo. Foi super. Claro, quem estragou tudo foi a Paula.

[Eu disse que nossa família é Dias, né? Seria melhor se fosse Anos, porque os anos passam e meus pais não percebem que eu cresci. Então, ficam me tratando como se tivesse a idade do Lucas, mas não tenho, faz tempo.

Todos os dias tento escrever um pouco aqui, mas não é um diário, é muito mais um desabafo. Começou quando ouvi meus pais discutindo. Deu mesmo uma vontade de sair correndo. Foi o que fiz. Fui para o quarto, que não é só meu, e fingi que era. Nestas páginas posso escrever o que quiser, ninguém invade nem se mete.]

Naquele dia, quando o Celo, o Dudu e a Paula saíram daqui, chorei. Chorei mesmo, de raiva. Não porque quisesse a Paula. O Celo é meu amigo, ela não é mais a questão. Acho que, na verdade, quero meu amigo de volta. Parece que, se estamos só eu e o Dudu, não é a mesma coisa. Não fica completo. No fundo, bem lá, no meu caderno, o bom mesmo seria uma namorada para mim e outra para o Dudu.

Acho até estranho que eu tenha pensado na Paula tanto tempo e agora nem consigo imaginar ficar com ela. Claro que ela continua sendo suuuper linda, mas, se tá com o Celo, não serve mais para mim.

Depois do almoço, troquei umas mensagens com a turma e fui para a clínica. Curto muito ir. Da última vez conversei com uma paciente que quebrou a bacia. Ela contou cada coisa, dei muita risada com ela. Gosto de pessoas que são bem-humoradas. Desde que caiu no banheiro, ela não conseguiu voltar ao normal, mesmo assim acha graça nas coisas. O que achei mais legal foi o comentário do quanto melhorou.

Cada vez que vou na clínica, me sinto como um estagiário. Faço quase nada, mas vejo tanto e aprendo também. No fundo, ter me tratado lá transformou meu ano. Penso que sou útil e que as pessoas se sentem melhores com o tempo. É bom cuidar dos outros, principalmente dos mais velhos. Alguns são ranzinzas, mas são divertidos e querem conversar. Estranho, mas lá eu sou o maior conversador. Talvez porque eles enxerguem o João mesmo, da idade que tenho, não uma criancinha de tamanho maior.

Tá certo que ainda não fui muitas vezes, mas, em uma delas, um paciente me perguntou das namoradas. Adulto adora ficar especulando. Acho que gostam de lembrar que um dia foram jovens, que era bom namorar. Mas a pergunta me incomoda.

Na volta do “trabalho”, eu chamo assim, encontrei o Celo e o Dudu, e fomos tomar um sorvete. Fiquei ouvindo meus amigos contarem sobre o vôlei. Eu ainda não podia voltar, ou talvez não quisesse.      Ouvir eles falando daquele jeito, até dava vontade.

Contaram que um colega nosso estava saindo com uma guria mais velha e que estava o maior rolo por isso. Nossos assuntos eram esses, vôlei e gurias. Aí, quando o Celo falou na Paula e que eles tinham avançado para o próximo estágio, o namoro, eu disse que precisava voltar para casa.

Fui direto para o meu quarto. Não deu dois segundos de sossego, e minha mãe entrou com o Lucas, que pulou na minha cama e começou a contar tudo o que tinha feito na escola.

— Oi filho — disse ela, enfiando a cara pela porta.

— Oi mãe, tudo bem? — perguntei.

— Sim, e contigo? Queria ajuda com as compras, poderia vir aqui?

Respondi que sim, dentro da minha cabeça mesmo, e fui até a cozinha.

— Foi na clínica hoje? — ela perguntou puxando assunto.

— Fui e depois saí com os guris.

— E estás gostando? O que tu fazes lá?

Que saco! Queria terminar logo e fugir para o meu quarto.

— Ah, mãe, faço de tudo um pouco. Ajudo com os equipamentos, arrumo material fora do lugar, converso com os pacientes.

Até me deu vontade de dizer que estou pensando em cursar fisioterapia, além de contar o que gosto de conversar com os pacientes. Mas, se eu começasse a falar, as perguntas iriam me metralhar e, sério, não estava a fim disso.

— Mas que legal, parece que gostas muito, fico feliz. Quando eu tinha a tua idade, achava que nada me interessava profissionalmente. Ao entrar no último ano, já sabia o caminho que escolheria. Nessa época o teu avô começou a ter problemas na fábrica e tudo ficou confuso. Deixa pra lá, é outra história.

— Sim, a história dentro de tantas outras que tu nunca quer falar. Eu sei. Terminamos? Posso voltar para o meu quarto? — perguntei quase saindo.

— Pode, sim, querido, obrigada pela ajuda. Lembra que podes falar comigo, estou aqui. — Fez um carinho na minha cabeça.

Minha mãe é legal, gosto dela. Só que não tô a fim de conversar e, também, ela nunca quer contar sobre essas coisas que chama de “outra história”, daí eu fico inventando mil coisas na minha cabeça.

[É disso que falo, da minha vontade de conversar com estranhos na clínica e da minha falta de vontade de falar em casa. Ainda que tenha o caderno. Mas minha família não sabe, nem quero que descubram. O Thiago começou a tocar a guitarra dele, alto, bem alto. Acho até bom. Nessas horas ele "silencia" a casa. A minha mãe em seguida vai pedir para ele parar, falar que toque durante a tarde e não quando todos estiverem em casa. Todos menos o meu pai, que deve estar de plantão no hospital.

Acho o meu pai um cara bem calado. Poucas vezes vejo ele falar. Mas noto o sorriso dele, mesmo quando é só com os olhos. Ele diz que nos ama, repete sempre isso. E tem uma mania que eu gosto. Todas as noites, quando ele não fica no hospital, me abraça forte e me olha nos olhos dizendo do jeito dele que sente saudades e que quer muito nos ver feliz. Um dia, disse que sou parecido com ele quando tinha a minha idade. Quando contei que ia ajudar na clínica, os olhos dele brilharam. Senti uma coisa. Foi tão forte que virou um abraço bem demorado.]

Sentei no quarto do Thiago e fiquei ouvindo ele tocar. Gosto de música, curto ficar ouvindo meu irmão. Acho que ele também gosta porque, quando entro no quarto, sempre fica mais alegre e me pergunta o que quero que toque. Nessas horas, parece bem irmão mais velho mesmo. Quando para de tocar, a gente conversa.

— E essa guria que tá com o Celo? Tu não tava na dela? É essa Paula que tu tinha me falado? Achei ela bem bonita... — Fez uma piscada para mim.

— Agora não é mais ela... — falei olhando o chão.

— Já aconteceu comigo cara, não te incomoda com isso. O Celo é teu amigo e isso nada supera.      Tá certo que uma vez eu entrei numa roubada dessas. Mas saí logo — o Thiago falou sentando ao meu lado no chão do quarto.

Nossas conversas terminavam logo, porque os “Dias” tinham de comer juntos, e minha mãe já estava chamando para jantar. Como o Lucas adora contar tudo o que acontece com ele, a janta foi tranquila. O melhor de tudo é que era cachorro-quente e eu comi muito.

Um dia vou perguntar para o Thiago se ele tá a fim de alguém, porque tá sempre falando com uma guria, acho até que sei quem é. Meu irmão está estudando para entrar na faculdade de Psicologia, tentando vaga na federal, mas, aqui em Porto Alegre, passar na UFRGS é bem concorrido. Acho que ele até se dedica bastante. É estranho pensar nele como um futuro psicólogo.

[Foi bom ficar perto do Thiago enquanto ele tocava. Lembro quando o Lucas era bebê, e a gente ainda brincava. Agora parece tão diferente. Cada um com suas coisas, ele estudando para a faculdade, e eu entre o colégio e a clínica. Certo que, quando ele ficou um ano inteiro namorando com a Tati, não sobrava muito tempo para conversar. Antes, até ele queria descobrir sobre os incêndios, mas agora parece que só eu ainda tô nessa. Sinto uma baita alegria lembrando de nós dois e nossas brincadeiras. Às vezes, bem de vez em quando, dá vontade de ser criança de novo.]

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