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Contos Iniciais

Boiada de Elefantes: e outras histórias curtas

Entre flores e cucas

Tudo aconteceu há muito tempo. Não era domingo. Mesmo assim, chegamos bem cedo no sítio da tia Eulália. Um cheiro de canja exalava da casa principal, uma construção antiga, branca com um grande porão de pedras, ladeada por outras duas casas menores, nas cores azul e verde. No pátio e nos pomares que ficavam entre as três casas, muita gente circulava de um lado para o outro. Empregadas e vizinhas carregavam panelas de sopa e pratos de pães e cucas.

Encontrei logo minha amiga Lully, com quem, por ordem expressa de mamãe, eu deveria brincar.

– Brinquem por aqui. Não andem no barro! E fiquem longe da casa verde!

Tomamos canja e, em seguida, saímos para brincar na beira da sanga. Algum tempo depois, completamente sujas de lama, fomos direto para a casa azul. O perfume do café passado na hora rescendia entre as laranjeiras carregadas, que brilhavam ao sol e circundavam a porta dos fundos. Entramos com passos rápidos. Na cozinha, devoramos, com vontade, vários pedaços de cuca de bergamota. Os gomos assados, cobertos com açúcar e canela, explodiam na boca em cada fatia. Depois, fartas daquela maravilha, lembramos a ordem de mamãe e fomos espiar o que havia na casa verde.

– Lully, o que a tia Eulália está fazendo deitada naquela mesa, com tanta gente na volta?

– Não é uma mesa. E estão se despedindo dela!

– Por quê? Para onde ela vai?

– Minha vó diz que ela vai para o céu. O vovô diz que ela vai virar poeira e se misturar com as árvores e as minhocas.

– E quando ela volta? Quando a gente vai ver a tia Eulália de novo?

– Quando a gente for para o céu!

– E quando vai ser isso?

– Vai demorar. Só quando ficarmos velhinhas!

– E quando a gente for para o céu, vai ter cuca de bergamota?

– Só se for no inverno. Se for no verão, a cuca vai ser de pêssego!

E foi assim, naquela tarde ensolarada de inverno, que vi a tia Eulália pela última vez. Descansando, entre flores coloridas, cucas de bergamota e todos os seus amores.

A lavadeira

Ajoelhada à beira do arroio, Berta esfrega, bate várias vezes sobre a pedra e torce o camisolão branco. Mergulha tudo, mais uma vez, na água corrente e volta a examinar a parte de trás da peça. As manchas avermelhadas, no formato de longas linhas paralelas, continuam ali. Ela suspira, chora baixinho e lembra como tudo começou.

Com cerca de trinta casas muito próximas, a colônia de São Nicolau convertera-se em um povoado próspero. Após a chegada dos primeiros imigrantes italianos e alemães, instalaram-se ali uma serraria e uma fábrica de carroças. Foram construídos, também, uma escola, um salão de bailes e a igreja. O lugar transpirava movimento.

Era primavera de 1850. Naquela época do ano, todas as sextas-feiras, à tarde, as mulheres reuniam-se às margens do arroio para a lavagem das roupas. A água corrente e límpida era ideal para lavar peças grandes e muito sujas. A passagem das lavadeiras, em direção à cachoeira, era uma festa.  Elas desciam os barrancos íngremes cantarolando antigas canções folclóricas.  O coro continuava, depois, na sombra, à beira d´água, enquanto lavavam, batiam e esfregavam a roupa suja. Naquela hora, a alegria tomava conta do lugar e até os pássaros silenciavam para ouvir a cantoria.

A maioria das lavadeiras se ocupava das roupas da própria família. Algumas poucas, porém, sobretudo as solteiras, em troca de alguns trocados, faziam o serviço para casais de idosos e pessoas doentes. Berta era uma delas.  A jovem, órfã de pai e mãe, vivia só. Tinha um guarda-roupas enxuto e aproveitava as tardes de sexta para ganhar algum dinheiro. Mas, ao contrário das demais, ela não cantava. Durante essa tarefa, dedicava seu tempo a imaginar histórias. Em cada mancha, em cada dobra ou rasgão das peças lavadas, via personagens e seus dramas. Pensava nos segredos que a água límpida do arroio carregaria para sempre, correnteza abaixo. Enquanto batia cada vestido contra as pedras para amolecer as sujeiras incrustradas, imaginava as pequenas tragédias escondidas atrás de cada sinal deixado nas tramas do tecido que esfregava.

Naquela sexta, a última de setembro, Berta recebeu um recado do novo pároco, solicitando seus serviços. Nos tempos do padre Anselmo, ela não ia muito à igreja. Tampouco necessitava lavar a roupa do religioso, que, durante os anos passados na comunidade, vivera na casa paroquial, ao lado de uma senhora, apresentada a todos como sua prima. Dona Moca, como era conhecida, cuidava de tudo na capela e, com um zelo desmedido, fazia questão de costurar e lavar pessoalmente cada uma das batinas usadas pelo primo. No início, ela foi alvo de muitas insinuações maldosas. Mas, muito carismática e prestativa, aos poucos, abafou às más línguas e conquistou o povoado com seu sorriso de avó carinhosa.

O chamado do novo padre seria a oportunidade para voltar à igreja, pensou Berta. Talvez rezar um pouco. Andava com saudades dos pais e aproveitaria para trocar as flores de seus túmulos. Ela, então, colheu um ramalhete de rosas e dirigiu-se à capela. Atravessou o pátio lateral e, quando se preparava para abrir o portão do cemitério, encontrou um rapaz, sem camisa, capinando um canteiro de alfaces.  Com as mãos e as calças totalmente sujas, o jovem desculpou-se:

- Não pretendia te assustar. Peço desculpas!

- Sou Berta. Vim para buscar o cesto de roupas sujas do padre Guido. Ele está?

- Eu sou o padre Guido. Muito prazer, Berta. Vou lavar as mãos e já trago as roupas. Podes me aguardar aqui.

Ela jamais imaginaria o padre Guido assim tão jovem. E nem em sonhos poderia imaginá-lo tão lindo. Alto, moreno, musculoso e com aquele sorriso estonteante. Tremeu da cabeça aos pés. A respiração ofegante precisou ser contida com pensamentos rápidos. Pensou nos pais e na sua saudade. Respirou profundamente.

Guido retornou. Olhou Berta nos olhos. Entregou o cesto e, sorrindo, disse que precisaria de seus serviços semanalmente.  Ela agradeceu. Combinou os detalhes para a semana seguinte e despediu-se. Chegou ao arroio com a roupa suja do padre e o ramo de flores, que esquecera de entregar aos pais.  Naquela tarde, não conseguiu pensar em mais nada. Não imaginou nenhuma de suas histórias. Jogou as rosas na água. Com os olhos marejados, acompanhou o brilho dos raios de sol deslizando sobre a correnteza e cantou. Cantou só para si.

Nas sextas-feiras seguintes, o olhar do padre foi ficando cada vez mais intenso. A moça retribuía sempre na mesma intensidade. Primeiro, trocaram olhos de gentileza. Na semana seguinte, olharam-se com carinho. Depois, contemplaram-se com pupilas de fogo. Na quarta semana, Berta desmoronou. Derreteu-se. Não se falavam, mas ela percebia todo o sentimento que Guido tentava esconder. Ele passou as mãos por seus dedos, entregou a cesta de roupas e voltou correndo para o interior escuro da igreja.

Agora, Berta estava ali.  À beira do arroio, com a roupa de Guido nas mãos. Ela sabia o que significavam as manchas de sangue nas costas do camisolão branco. Lera muito, em seus romances favoritos, sobre os açoites usados por religiosos, em rituais de autopunição, como forma de expiarem suas culpas.  A jovem, então, seca as lágrimas, abraça a vestimenta molhada e decide que não deixará o amado carregar sozinho a dor de uma culpa causada por ela. Só por ela e por mais ninguém.

Naquela tarde, as mulheres pararam de cantar quando viram a camisola branca deslizar correnteza abaixo.

Berta nunca mais foi vista. O padre abandonou a paróquia. Uns dizem que os dois foram vistos andando de mãos dadas, faceiros, em uma cidadezinha próxima. Outros contam que, nas noites quentes das sextas-feiras de setembro, uma jovem vestida de branco flutua, até hoje, sobre as águas do arroio.

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