
Capítulos Iniciais
A maldição da safira
1
O carro voou.
As quatro rodas aro 15 polegadas perderam contato com o asfalto a mais de 100km/h. O rugido dos 98 HPs encheu a madrugada chuvosa no Centro Histórico de Porto Alegre como o uivo de um enorme animal extinto.
Mas dentro do Onyx Activ vermelho um silêncio muito grande tomou conta de tudo.
Diana, a motorista de 16 anos de idade e jaqueta jeans, apertou os dentes, manteve os olhos arregalados e as mãos esmagando o volante. Seus cabelos castanhos flutuaram com o voo. A seu lado estava Toninho, o copiloto, de 12 anos e moletom com capuz. Diferente dela, ia com os olhos fechados e a boca aberta para o grito que não saiu.
Passava das 4h. Por sorte o cruzamento da Rua General Vasco Alves com a Rua Duque de Caxias estava vazio. Com a decolagem, os faróis de máscara negra do veículo iluminaram as fachadas dos prédios da rua estreita.
A gravidade começou a trazer de volta ao solo Diana e Toninho.
Pouco mais atrás, o Ka sedan prata, iniciava o mesmo voo, também a grande velocidade.
Dentro dele, dois homens: o motorista de chapéu Fedora de aba curta e o outro, de barba volumosa. O barbudo ia com meio corpo do lado de fora. Ele segurava sua pistola escura.
O Onyx aterrissou com estrondo. Uma chuva de fagulhas nasceu do contato do protetor do cárter com o asfalto. A traseira subiu de novo e os pés de Toninho foram parar sobre o painel.
Diana, sem saber como, conseguiu manter o carro em linha reta ao passar rente aos veículos estacionados dos dois lados da via.
O Ka sedan prata também estourou no piso. Além das faíscas, o impacto arrancou boa parte da surdina que rodopiou até se chocar com o container de lixo.
A menina não acelerava, mantinha o pé sobre o freio, mas sem pressionar o pedal. Lembrava das lições do pai: o motor ajuda a frear o carro, filha. Achou o ensinamento adequado para a circunstância, embora ele, por certo, nunca imaginaria a filha furtando um carro e trafegando sem a Carteira Nacional de Habilitação a 100km/h no centro da cidade.
Cruzou a Rua Riachuelo ainda em alta velocidade, ela e Toninho congelados em suas mudas caras de espanto.
No carro de trás:
— Mais rápido! — berrou o barbudo enquanto tentava estabilizar a pontaria.
O motorista do Ka sedan permaneceu quieto. Estava concentrado. Sabia que bater em algo com aquela rapidez era morte certa. Seu único pensamento repetia-se: impossível ser aquela guria no volante, não desse jeito.
A ladeira da General Vasco Alves acabava na Rua dos Andradas em ângulo de 90 graus para direita ou esquerda. Sem alternativa, Diana pisou forte no pedal, forçando a frenagem. Ela também puxou o freio de mão e torceu o volante à direita ao acessar a Andradas com um guincho medonho dos pneus. Teve de fazer a curva aberta e quase bateu nos carros estacionados ao longo da Praça Brigadeiro Sampaio.
Dominou o automóvel e voltou a acelerar. Agradeceu pelo carro ter câmbio automático. Detestaria ter de usar embreagem e tirar a mão do volante na hora de passar as marchas. Avançou, dessa vez, sobre os paralelepípedos irregulares e escorregadios pelo efeito da chuva.
Logo atrás, o Ka sedan fez o mesmo, mas com ímpeto redobrado. Aproximou-se.
Foi quando o barbudo começou a disparar.
2
Quarenta e seis anos antes, em uma noite também chuvosa, em Dak Nong, no Vietnã do Sul, o jovem minerador Phuoc Nguyen se abaixou para retirar uma pedrinha que se depositara entre seu pé e a palmilha da sandália. Ele estava ao lado da pilha de rejeitos minerais e algo lhe chamou a atenção.
Ali, ao seu alcance, uma pedra do tamanho de um ovo. Apesar do barro e das formas brutas, do seu interior vinha brilho azulado e tal cor fez o estômago de Phuoc Nguyen congelar.
Será possível?, ele se perguntou.
Ergueu-se com ela na mão e correu em busca de abrigo. Se sua suspeita estivesse correta, seria um dos homens mais ricos do seu país. Poderia comprar passagem para longe da guerra e de sua nação à beira do caos. Era órfão, sem parentes conhecidos. Começaria de novo. Talvez na Tailândia, país vizinho. Já ouvira falar das praias mágicas. Ou na América. Quem sabe em New York?
Sob a aba do telhado da choupana do maquinário, Phuoc Nguyen limpou, a pedra com a água da chuva, depois riscou um palito de fósforo. Aproximou a pequena chama vacilante e examinou os contornos da pedra. Ali, no interior daquele cascalho desprezado, mesmo sem polimento, brilhava a lateral da gema em deliciosa tonalidade azul cor do céu.
Não teve dúvida: era uma safira, uma safira enorme.
A chama encostou em seus dedos e ele jogou longe o palito enquanto murmurava palavrões. Nesse momento, um fiscal começou a gritar com ele, perguntou o que fazia ali. Phuoc Nguyen puxou a carteira de cigarros do bolso e mostrou a ele com sorriso nervoso. Convidou-o para fumar, enquanto deslizava a pedra até as profundezas do bolso da calça. O outro homem fez gesto ofensivo, afinal quem fumaria debaixo de chuva? E saiu resmungando.
Phuoc Nguyen levou o cigarro à boca, acendeu-o e desfrutou de enorme alívio. Trabalhar na mineradora de pedras preciosas colocava todos os funcionários sob natural suspeita. Com a guerra, as atividades se tornaram cheias de desconfiança e paranoia. O bom, ele concluiu, foi ter tido sangue frio na hora de se livrar do fiscal. Eles estavam sempre de olho, como se houvesse algo de valor na pilha de rejeitos ou no pátio.
Phuoc Nguyen riu baixo:
— Agora tem — ele murmurou.
De imediato começou a traçar seus próximos passos. Era quinta-feira. Sua folga seria só no domingo. Teria de esconder a pedra em local seguro no alojamento, ou enterrá-la em um canto protegido dos colegas. Depois, aproveitaria a folga e viajaria até Saigon.
Na capital, encontraria algum lapidador de pedras preciosas. De preferência alguém com sua própria oficina, um negócio pequeno, incapaz de chamar a atenção. Sim, precisava ser lapidador discreto, mas competente a ponto de retirar com cuidado as impurezas da pedra e trazer à vida a safira em todo seu esplendor.
Em Saigon, encontraria os americanos também. Claro, havia rumores de que os vietcongs avançavam de forma sólida rumo ao sul. Alguns falavam até em derrota para o norte em poucos meses. Outros falavam em acordo de paz sendo
confeccionado por autoridades diplomáticas, enquanto muitos previam a possível retirada das forças dos Estados Unidos.
De posse da pedra, essas eram questões menores. Phuoc Nguyen não poderia perder tempo com pensamentos patrióticos. Precisava ser prático.
Após a lapidação, projetava valor de milhares de dólares para sua pedra. Imaginou vendê-la a algum colecionador. Ouvira dizer que os europeus ricos gostavam de presentear suas esposas com safiras. E se fosse morar em Zurique? Apesar do frio, a Suíça, diziam, era linda.
Mas Phuoc Nguyen nunca conseguiria antecipar como sua safira trocaria de mãos com a urgência de um carro em alta velocidade.