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Contos iniciais

Tu, Frankenstein

A Ruazinha Insone


Amanda Leonardi

“Dorme, ruazinha… É tudo escuro…

E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?

Dorme o teu sono sossegado e puro,

Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos…


Dorme… Não há ladrões, eu te asseguro…

Nem guardas para acaso persegui-los…

Na noite alta, como sobre um muro,

As estrelinhas cantam como grilos…


O vento está dormindo na calçada,

O vento enovelou-se como um cão…

Dorme, ruazinha… Não há nada…


Só os meus passos… Mas tão leves são

Que até parecem, pela madrugada,

Os da minha futura assombração…”

(Mario Quintana, 1940)


Assim me dizia o poeta, ainda em 1940, e seus versos acalentavam as noites em que eu escutava seus passos, perambulando por entre os corredores do meu Hotel Majestic, enquanto ele escrevia e ponderava cada sílaba dos seus sonetos. Na época, meus jardins estavam realmente tranquilos, o tempo passava sem o sentirmos, com a suave brisa da manhã, vinda do pacífico Guaíba, sempre a anunciar um novo dia. Os raios do sol de Porto Alegre traziam luz e vida às plantinhas no terraço do Hotel e às árvores que bordavam meus caminhos, por onde perambulava todo tipo de pessoa, inclusive o poeta, com seus versos. Às vezes chovia, e eu ficava grata pelo refresco vindo dos céus, pois fazia alguns dias quentes, então a água era bem-vinda, e, depois, ela em parte evaporava, em parte escoava tranquila pelos bueiros e de volta para o Guaíba, como devia ser o seu ciclo. Aos poucos, começaram a vir tempestades mais intensas, a água parecia revoltada contra nós e os humanos que nos habitavam, pois caía do céu e não ia mais embora. Em vez disso, se acumulava, litros sobre litros, e eu não sabia mais se ainda era rua ou se virava parte do lago, oceano ou desespero, ou um pouco de tudo isso. Eu sentia a aflição dos humanos em cada quarto do hotel, em cada cômodo das casas e dos prédios que me cobriam, mas nada podia fazer, pois estava na mesma situação deles, debaixo d’água. Era 1941, fazia apenas um ano que o meu poeta me dizia para dormir e ficar tranquila, mas, quando chegou aquela época terrível, ele mesmo afirmou que “era absolutamente desnecessário fazer poemas”. Não sei se concordo, pois os seus versos, a ecoarem em mim, eram uma fonte de esperança de que dias melhores viriam, mas certamente entendo a sua dor; foi também a minha dor. 

“Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores?”, assim contou o poeta sobre a primeira vez que a água subiu. Não era preciso nem possível sonhar, pois eu não dormia, nem as pessoas que ocupavam os meus prédios, cada um mais aflito em um breu úmido, sem saber como ou quando conseguiriam sair de seus apartamentos. As casas foram mais tomadas do que aquela do Cortázar, e as famílias não tiveram opção senão irem embora, escolhendo entre a vida e tudo o que tinham. Até que a água baixou, o sol brilhou, e voltei a ser a ruazinha de Quintana, ainda que com as cicatrizes do desastre, as paredes marcadas pelo nível da água. Com o passar do tempo, o hotel onde vivia o poeta virou um museu, aonde as pessoas vêm para lembrar de seus versos, falar de arte, e quem sabe tentar ouvir os doces passos da sua então assombração (elas quase nunca escutam, mas eu, sim, todas as noites). “Só os meus passos… Mas tão leves são…”, ele dizia, e de fato, são leves. É preciso um ouvido muito aguçado para ouvi-los, talvez apenas o meu ouvido de rua o ouça.

Segui por muitos anos quase tão tranquila como o poeta descreve meu sono em seu poema, com exceção de uma ou outra noite mais chuvosa, em que temi pelo pior outra vez. Mais de meio século se passara, e pensei que o pesadelo tinha sido findado quando, em maio de 2024, a chuva se enraiveceu outra vez, e a cidade se encontrava ainda mais despreparada para a água. Sob administração de políticos corruptos, minha Porto Alegre não contava com quaisquer cuidados para evitar que entupissem bueiros, nossas casas de máquinas e comportas não viam manutenção havia muito. 

O Hotel Majestic se tornara um museu, em homenagem ao meu poeta e, em seu primeiro andar, tínhamos cafés e uma livraria; a água engoliu tudo, inundando os livros e móveis, subindo em ondas sombrias até passar da altura de um humano médio. Outra vez temi deixar de ser rua, até porque nem sempre fui, me lembram alguns humanos: eles dizem que a natureza clama o que era seu, dizem que fui parte do lago Guaíba, que cerca a cidade, e que a natureza estaria em fúria, querendo recobrar seu espaço. Minha memória foi construída com os paralelepípedos que me cobrem, então não lembro de ser nada antes de rua. Mas por que estaria a natureza em fúria? Lembro dos panfletos atirados pelos meus caminhos, propagandas de políticos que me cobriam de lixo e nada faziam para impedir a água de tomar minhas vias, e ainda contribuíam com a poluição com seus panfletos a taparem meus bueiros. A água parecia realmente furiosa, pois, como se dotada de consciência, se atirava do céu com uma força que só poderia significar ou ódio, ou muita tristeza, e se espalhava por todo canto, alagando salas, quartos, cafés, restaurantes, livrarias, desmanchando versos e sonhos, queimando sistemas elétricos, apagando as luzes. A água trouxe o breu, que dominava tudo durante a noite. Eu ouvia lamentos desesperados provindos de cômodos de difícil acesso em meus prédios, ouvia latidos e miados perdidos, seres que não encontravam caminho, ilhados, inundados. O breu estava faminto e devorava os sons da vida, um por um, até que não restasse mais nada além do barulho da água.

Eu tentava me acalmar, lembrando dos versos do poeta, “Dorme, ruazinha… É tudo escuro…”, mas o escuro então era demais, claustrofóbico. “Dorme o teu sono sossegado e puro/ Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos…”, mas eu não conseguia dormir, meus jardins estavam intranquilos, com suas plantas afogadas, submersas, e meus lampiões não funcionam debaixo d’água. “Não há ladrões, eu te asseguro…”, eu lembrava dos versos do poeta, mas, apesar da água, havia, sim, ladrões, a invadir as casas já destruídas pela água, tomando o pouco que sobrara das famílias atingidas. Mas, na esperança de que tudo melhorasse, eu repetia incessantemente os versos “Dorme, ruazinha… Não há nada… Não há nada…Não há nada…Não há nada…”, pois realmente não havia nada além da água e do medo.

Tentava me distrair do horror das águas ouvindo o que as pessoas diziam em seus cômodos, as que ainda tinham forças para dizer algo em meio ao caos, e assim encontrei um homem sentado, solitário em seu apartamento escuro, com uma vela acesa sobre uma mesa de canto. Estava em um andar mais alto, até onde a água não subira, mas não sabia quando poderia sair do prédio, ilhado como estava. O homem segurava em suas mãos um livro e lia em voz alta um trecho: “Se não posso inspirar amor, causarei medo”, dizia a criatura do livro, e ele refletia consigo mesmo, em voz alta: “Não é isso o que está acontecendo conosco e a natureza? Nós a negligenciamos por tanto tempo e agora ela nos causa medo e nos devora, como um monstro abandonado pelo seu criador.” Seria isso o que acontecia então? A humanidade transformou o que deveria ser seu lar, a natureza, em um monstro que a devora? Ou seria a humanidade o próprio monstro que devora a si mesmo? Já ouvi os humanos comentarem que o homem é o maior predador da natureza, pois caça e devora todo tipo de criatura, inclusive a si mesmo.

A estranheza da situação era tanta que já não era possível distinguir entre rua e lago, e os animais que habitavam o Guaíba nos invadiam. Virei então parte do Guaíba, onde peixes nadavam, se batendo, hora que outra, nas placas com nossos nomes, em nossos prédios e em alguns carros inundados e abandonados na imensidão de água que tudo tomava.

Passaram-se os dias e as noites, e comecei a esquecer que um dia fui rua, de tanta água que me cobria e caía dos céus sem parar. Quando parecia que as coisas voltariam ao normal, uma nova tempestade se atirava com mais força ainda. Coberta de água, jurei que havia virado um rio, a correr por entre os prédios, deixando minha marca por onde passava. Tornei-me um rio raivoso e, sem me lembrar da sensibilidade do poeta ou de quaisquer emoções dos humanos que me habitavam, passei a arrastar comigo tudo o que via pela frente, ferindo e destruindo tudo e todos que estivessem em meu caminho. Tornei-me a força da natureza irascível, o monstro que eu mesma temia. Até que aos poucos fui secando, evaporando conforme os raios do sol retornavam e ficavam por mais tempo. Enquanto evaporava e me dissipava como rio, vagarosamente retornei ao meu estado de rua, e uma pergunta surgiu em mim: então é assim que nos transformamos em monstros?

Voltei a ser rua, enfim, mas tudo me parece silencioso e triste demais agora. Não ouço nem os passos do poeta; apenas o eco dos temporais preenche o silêncio com um imenso temor pelo futuro. E agora, será necessário fazer poemas? De que outra forma poderíamos impedir que caia no esquecimento essa dor infinita das ruas de Porto Alegre?


A última trincheira de luz


Gustavo Melo Czekster

Não sei o dia exato em que começou, mas acredito que tenha sido logo depois das queimadas do Pantanal e da Amazônia de 2024, quando a fumaça tomou conta dos céus e até o sol desapareceu, deixando em seu lugar um círculo vermelho repleto de raiva e fogo. Foi por essa época que ouvi falar das pessoas que sufocavam do nada; estavam andando nas ruas, brincando em parques ou dirigindo seus carros e, de repente, levavam a mão até o peito e sufocavam devagar, olhos implorando por ajuda, erguendo as cabeças para o céu que lhes negava apoio, a boca gritando em silêncio enquanto o ar abandonava seu corpo e a vida se extinguia como uma vela tapada por um vidro. Em um primeiro momento, a imprensa culpou os produtos químicos presentes na fumaça, alguma estranha combinação entre elementos que, dependendo de condições preexistentes nas pessoas, como asma ou rinite, interrompiam a laringe e bloqueavam a passagem de ar para os pulmões. No entanto, logo depois das autópsias anunciarem que os pulmões não estavam bloqueados, mas tinham sido queimados de dentro para fora, a mesma imprensa apressou-se a tranquilizar a população, dizendo que aquela era uma combinação extremamente rara de eventos, algo como uma condição genética que, associada a alguns elementos muito específicos presentes na fumaça, acionavam uma alergia, a qual, por sua vez, gerava um tumor, ou seja, algo extremamente difícil de acontecer, uma casualidade, mas ressaltaram que, agora que o sol tinha voltado a brilhar, tudo estava bem de novo. Se mais casos ocorreram depois disso, eles foram abafados, e isso diz muito a respeito do nosso país: a melhor forma de se livrar da sujeira é sempre escondê-la debaixo do tapete.

Normalmente, esse assunto teria me passado batido, com boas possibilidades de esquecimento e catalogação entre as coisas estranhas que todos os dias lemos por aí, mas foi mais ou menos na mesma época que Beatriz desandou a reclamar das sombras. Desde que tínhamos ido morar juntos, eu precisei não só me acostumar com uma pessoa, mas com as suas manias, e talvez esse fosse o maior encanto de Beatriz: a sua instabilidade. Era uma mulher que dava a impressão de que podia se despedaçar a qualquer momento ou, como um amigo uma vez me dissera, era uma mulher flor-de-algodão, o tipo que podia ser destruído a qualquer relance súbito de vento ou palavra impensada proferida no calor de uma discussão. Foi assim que me acostumei com a sua intolerância ao glúten, à lactose, aos frutos do mar, às pimentas adocicadas, ao pólen de determinadas flores e até mesmo ao sêmen: graças a Deus, eram intolerâncias ocasionais, que surgiam e desapareciam com rapidez, e eu podia conviver com isso, apesar de saber que, todo dia, era uma mulher nova quem acordava ao meu lado.

Intolerância a sombras era algo novo para mim. Mesmo achando bizarro, eu a escutei com atenção, colocando essa mania na conta das concessões que se faz no início de qualquer relacionamento, em especial quando se deseja que ele dê certo. Deitada no sofá, com a cabeça no meu colo, Beatriz dizia que as sombras estavam por todos os lugares, escorregando atrás das pessoas enquanto se amoldavam às sombras delas, misturando-se nas paredes das ruas, reunindo-se em becos ou esquinas, correndo nas calçadas. Acrescentou que, às vezes, em momentos de silêncio, conseguia ouvi-las sussurrando entre si; certa vez, em um dos vácuos do seu monólogo, perguntei como eram essas vozes e ela respondeu sem hesitar: “vozes de chumbo”. Naquele dia, dei uma risada e respondi que nunca ouvi uma taça de chumbo resmungando enquanto colocavam água ou refrigerante nela. Creio que a deixei brava, mas hoje entendo o que ela quis dizer: é o som do chumbo quando desliza contra outro pedaço de chumbo, seu irmão e diferente, um som meio metálico, meio gritado, áspero, um som que ainda não tem nome e nem pode ser mimetizado por uma garganta humana.

Em todo relacionamento – ou, ao menos, em todo início de relacionamento –, tentamos dar apoio para a pessoa amada, compreendê-la, acalentá-la, mostrar que ela pode ficar segura ao nosso lado. Nunca consegui tranquilizar Beatriz. Quando ela comprou lâmpadas fortíssimas e espalhou-as por todo o nosso apartamento – “aqui elas não irão entrar nunca, amor” –, confesso que fiquei encucado e, bom, só consegui pensar no valor salgado da minha conta de luz no mês seguinte. Além dessa inesperada questão financeira, era difícil dormir com tanta claridade na cara, sentia-me como se estivesse constantemente debaixo de holofotes ou sob interrogatório. Isso sem contar o calor; eu passava o dia inteiro suado, o apartamento parecia uma sauna. Apesar disso, Beatriz dormia angelicamente, e era um pouco perturbador, pois a luz forte não só iluminava seus detalhes todos, mas revelava as imperfeições. Eu a preferia à meia-luz, assim como todas as pessoas são, mas não admitia para mim mesmo que o amor forte outrora sentido parecia diminuir agora que a luz a desnudava. Mesmo assim, resisti firme, esperando que aquela mania logo passasse, assim como tinha ocorrido com as outras. 

Beatriz passou a ter medo de sair de casa. Só saía comigo e ficava o mínimo de tempo fora, algo que o fato de trabalhar à distância só facilitava (e, é claro, aumentava a minha conta de luz). Às vezes, ela estava caminhando e desviava a trajetória, como se evitasse um obstáculo; em outras, virava do nada e dizia “o que foi” ou “sim?”, achando que tinham lhe chamado. Tentava me mostrar o que via, mas eu só conseguia enxergar sombras. Ora, sombras, assim como as todas as outras que andam impunes por aí.

Deixamos de ir em cinemas, pois a ideia de falta de luz a aterrorizava. Deixamos de ir em parques, pois as sombras dos galhos prometiam infernos indizíveis. Deixamos de ir em shows, pois o som alto a confundia, fazendo com que as sombras gritassem perto do seu ouvido. Eu já estava um pouco cansado de lutar por um relacionamento tão iluminado e, ao mesmo tempo, tão sombrio; não éramos um casal comum. 

A gota d’água foi quando eu a levei para passear na Casa de Cultura Mario Quintana em um domingo de sol. As escadas não-euclidianas do lugar, que começavam em um andar e podiam não acabar no outro, as janelas que se abriam para lugar nenhum, o quarto vazio do poeta (Beatriz apertou meu braço e disse ter visto um vulto caminhando nele quando entramos, mas foi só um reflexo desajeitado do vidro), as salas de teatro repletas de vento e da memória de apresentações do passado, tudo isso foi demais para minha namorada. Em um momento, imaginando-se cercada por sombras, Beatriz desmoronou no chão e, com um grito estrangulado, passou a sufocar. Achei que era um ataque de pânico, mas seus olhos desvairados revelavam o mais puro horror. No esforço de ajudá-la, fiz respiração boca-a-boca e, em um dos intervalos em que tentei forçar a respiração nos seus pulmões, senti algo quente deslizar de dentro dela para mim, algo feito de partículas, como uma pilha de poeira. Com a boca subitamente seca, cuspi para longe um catarro amarelado, e nesse instante ela recuperou um pouco de fôlego, pedindo, com voz chorosa, para ir para casa. Enquanto eu a levava no táxi, a sua cabeça apoiada no meu ombro, percebi que não sentia mais felicidade naquele relacionamento. Pior ainda: se eu não fosse homem o suficiente para acabar logo com ele, acabaria louco como Beatriz.

Não sou nada bom de disfarçar, ainda mais sentimentos. Não tenho poker face. Não deve ter demorado para Beatriz perceber que eu só esperava uma ocasião para terminar o nosso relacionamento. Os longos olhares que me lançava, suas faces encovadas, o cabelo sem brilho, o corpo cada vez mais ossudo, tudo mostrava a sua angústia. Talvez o que mais me impedisse de terminar aquele relacionamento adoecido era a certeza de que Beatriz precisava do meu apartamento, em especial da luz dele, para manter o medo distante. 

Essa situação teria durado por um tempo indefinido – por quanto tempo se estende a covardia de um homem? – se não fosse um acontecimento: o blecaute.

No dia em que uma inesperada chuva se precipitou sobre a capital e lançou-a na escuridão e no caos, em um primeiro momento pensei que logo a energia voltaria e decidi esperar. Não sei se peguei no sono esperando, ou se me distraí olhando no celular, mas, quando percebi, duas horas tinham se passado na mais absoluta das trevas. Resolvi ligar para Beatriz e ela não me atendeu. Devia estar se refugiando perto de velas e lanternas. O seu silêncio me preocupou, assim como uma sensação ruim. Saí correndo do trabalho, desci dez andares de escadas e corri até o meu carro, dirigindo como um louco para casa, desviando dos carros perdidos em meio aos semáforos desligados.

Assim que cheguei, fui recepcionado pela escuridão, uma ausência de claridade tão forte que parecia piche. Liguei a lanterna do celular e procurei Beatriz. Aos poucos, a escuridão pareceu ceder, como se escorresse com relutância para fora do apartamento, e então eu a vi. No corredor que unia o quarto à sala, Beatriz estava caída no chão. Uma vela apagada tinha deslizado para longe da sua mão. Os sulcos nas paredes e os quadros derrubados mostravam que ela se debatera de um lado para o outro no esforço de chegar até o celular, esquecido em uma mesinha de canto. Quando virei seu corpo, não consegui impedir um grito de horror: a boca aberta em um ângulo impossível, os olhos injetados, os dentes subitamente amarelos, a língua dependurada para fora da boca, preta e inchada. Beatriz morrera lutando por ar, o que não deixa de ser irônico em um mundo imerso em oxigênio.

A causa oficial da morte de Beatriz foi embolia pulmonar causada pelo uso de anticoncepcional. Foi uma explicação bonita para esconder a verdade. Dois dias depois, no velório de Beatriz, cercado por tios e primos soluçando, eu vi as sombras pela primeira vez. A princípio achei que fosse um cansaço da vista, mas limpei os olhos com a palma da mão e a sombra continuou ali, dançando embaixo do caixão, preguiçosa como um gato que cansou de brincar. Agora eu conseguia entender a perturbação de Beatriz: aquela sombra não correspondia a nada, nenhuma luz traçava seus limites. Ela tinha um contorno distorcido, parecendo um animal que tivesse se esticado até o impossível, até o ponto em que deixou de ser um animal e virou um pesadelo. Não demorou muito para que outra sombra viesse deslizando pelo cemitério e se juntasse a ela, e outra, e outra ainda, e eu sentia um misto de nojo e raiva ao ver as sombras fornicando e brincando embaixo do corpo da minha namorada.

A morte de Beatriz acabou com a minha inocência. Não conseguia mais deixar de ver as sombras. Elas estavam por tudo, mas em especial na poeira, no cisco, na sujeira, na poluição. Eram sombras formadas por pequenos grãos semoventes que deslizavam de um lado para o outro, formando novas figuras. Um observador distraído poderia confundi-las com sujeira, mas nunca iria se perguntar como a cidade estava sempre suja, como a poeira parecia eterna, invencível. Porto Alegre estava infestada de sombras; eram as responsáveis por chaves que sumiam, por roupas roídas, por animais subitamente assustados. Nós éramos os brinquedos dessas sombras malditas. Como elas surgiram, não sei, e receio que nunca descobrirei; talvez tenham chegado em algum navio vindo de terras distantes, ou talvez sempre tenham existido, vagando sem substância na nossa atmosfera até que a fumaça das queimadas fez com que elas descessem para a superfície e se espalhassem entre nós, sem predadores, sem inimigos, quase como se fossem baratas controlando os bueiros. No início, quando entravam no corpo humano, ao estabelecerem contato com os pulmões e com a sua estrutura esponjosa, acabavam queimando-os, mas era questão de tempo até conseguirem se adaptar e viver dentro de nós, seus hospedeiros. Não faz muito li que o ser humano já tem partículas de microplástico fazendo parte do seu corpo: quem nos garante que, no futuro, as sombras também não viverão dentro de nós, alimentando-se da nossa vida como parasitas, enlouquecendo-nos de depressão e paranoia, saindo à noite para cometerem crimes e outras maldades antes de voltarem ao corpo de seus criados? Depois as pessoas culparão a loucura, o cansaço, e dirão que outra pessoa tomou conta de seu corpo, como um Mr. Hyde pós-moderno. Contudo, cresce em mim o receio de que essa seja uma batalha perdida: se não sabemos que estamos sob ataque, como podemos nos defender?

Ficar no apartamento com as luzes acesas é o que me dá conforto hoje. Consegui transferência para um trabalho que posso fazer de casa. Peço todos os elementos necessários para a vida por meio de aplicativos de celular. Não encontro pessoas, não quero transmitir a elas a maldição das sombras. Meus amigos dizem que estou deprimido, e talvez estejam certos: como não me deprimir, se sou o exército de um homem só? Para lutar contra a solidão, criei um fórum na internet e achei outras pessoas que sabem o mesmo que eu. Estamos tentando organizar uma resistência, mas somos poucos e mais lentos do que os invasores feitos de sombras e pó. Mesmo assim, continuo resistindo: cada vez que abro a porta para algum entregador, vejo as sombras deslizando no corredor, ansiosas para me invadirem. À noite, é impossível não escutar os gemidos da cidade enquanto as sombras devoram um por um de seus habitantes. Por via das dúvidas, agora que os blecautes em Porto Alegre estão se tornando mais frequentes – e a conta de luz cada vez mais cara –, para não ter o mesmo destino de Beatriz, comprei um gerador portátil. Estou cercado por lanternas, lâmpadas, abajures, tochas, lampiões. Em último caso, me transformarei em uma fogueira, tenho um galão de gasolina à espera no canto da sala. Não vou me render sem lutar até o último rasgo de claridade.

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