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Capítulos Iniciais

Sânge – 2ª edição

1. Escuridão (dois meses antes)

Não havia plantão policial na pequena cidade. Os poucos servidores da lei revezavam-se na quase sempre entediante rotina de patrulha durante o dia e, após o serviço, voltavam para o conforto de suas casas. Era um trabalho tranquilo e as poucas ocorrências compensavam o baixo salário. Tirando uma ou outra briga de bar, raras vezes havia a necessidade de uma saída noturna.

Aquela noite era uma dessas exceções.

Chovia forte na madrugada de sexta-feira quando o telefone tocou.

- Alô? - A voz rouca veio seguida de um pigarro.

- Problema sério, Ana, preciso de você na praça.

- Miguel?

- Põe uma roupa e vem pra cá. Problemão.

- Ok, tô indo.

Minutos depois, Ana encostou a viatura, esfregou as mãos e apanhou a garrafa térmica no banco do carona antes de descer. A praça estava muito mal iluminada, uma névoa densa tomava conta do local. Miguel estava poucos metros adiante, próximo a uma árvore, dois homens o acompanhavam, todos olhavam para o chão.

- O que houve? Trouxe café.

Miguel não deixou que Ana se aproximasse, envolveu-a num abraço e caminharam em outra direção.

- O que tem ali?

- O café tá bom?

- Tá, achei que um problemão precisaria de café.

Miguel balançou a cabeça concordando e aceitou a bebida servida na tampa da garrafa térmica. Ana esperava paciente por alguma explicação.

- Assassinato.

- Alguém conhecido?

- Acho que é o Marujo.

Marujo era o único morador de rua da pequena cidade. Mais por opção do que por necessidade. Não faltou quem quisesse lhe conseguir um teto, mas ele preferia assim, dizia que gostava de dormir olhando as estrelas.

- Alguém matou o Marujo?

- Parece que sim.

- Como assim, Miguel?

- O corpo tá bem danificado, Ana. Aqueles dois encontraram e me chamaram.

- Que horror!

- Já acionei os peritos, mas eles só devem chegar durante a manhã. Daqui a pouco o povo acorda e você já viu, né? Vai ser um longo dia.

- Como posso ajudar?

- Leva os dois pra delegacia e toma o depoimento deles, acho que não tem muita coisa além do que me contaram, mas é melhor formalizar.

- Ok.

- Vou cobrir o corpo e isolar a área.

- Alguma coisa fora do lugar que a gente possa aproveitar pra iniciar uma investigação?

Miguel respirou fundo e soltou o ar num suspiro.

- Nada aparente.

Ana olhou sobre o ombro do companheiro para a cena mais adiante.

- Melhor eu levar esses dois, então.

- Sim, por favor.

Os dois homens atenderam ao pedido dos policiais e entraram na viatura. Ana fez um aceno com a cabeça e partiu em direção à delegacia. Miguel encurtou os passos o máximo que pôde, abriu o porta-malas do seu carro e pegou um cobertor, guardado ali para as emergências de um inverno rigoroso. O corpo de Marujo repousava numa posição incômoda: o tronco caído para trás, como se tivesse desabado sobre os joelhos. Os dois braços voltados para a esquerda, em oposição à cabeça, que pendia para o outro lado, por muito pouco ainda presa ao pescoço. A cena, digna de um filme de horror, trazia uma questão que desde o primeiro momento impressionou o policial: apesar da violência extrema, nada de sangue. Nem uma gota. A ferida aberta parecia ter sido cuidadosamente limpa.

2. Crisálida

Júlia normalmente não se interessava pelas aulas de biologia do professor Augusto. Em um dia normal, estaria com cara de sono, distraída com algum desenho nas folhas do caderno ao invés de prestar atenção nas explicações. Mas o inverno tinha ficado para trás e o dia estava bonito, além disso, a aula era no laboratório de ciências e sobre o ciclo de vida das lagartas. A transformação de um bicho asqueroso em um animalzinho tão bonito como uma borboleta deveria ser ao menos um assunto curioso.

Teatralmente, com a voz empostada, o professor reuniu os alunos na frente de uma bancada. Como se fosse um mágico, foi revelando vidros com os estágios de vida do inseto. Quatro estágios, como se fossem as quatro estações do ano. Aliás, um ano era o tempo que a lagarta levava para se transformar em borboleta. Bastou essa associação para que Júlia se distraísse.

Pensou sobre o seu último ano, saindo de uma cidade grande para se enfiar nesse fim de mundo com a mãe e a avó. Não que tivesse muitos amigos antes, morar cada ano em uma cidade dificultava um pouco cultivar amizades duradoras, mas agora dava para contar nos dedos de uma mão as pessoas com quem conversava e somente uns dois ou três eram da sua idade. O relacionamento com a mãe não andava muito bem. Júlia tinha dificuldades em aceitar a superproteção dela. Tudo bem que quase todo mundo ficou assustado com o que aconteceu no inverno e muita gente ainda falava sobre os eventos do ano anterior, mas esperava que a mãe carinhosa e divertida de antes voltasse logo.

- Não acha, Júlia?

Tomou um susto quando percebeu o professor do seu lado.

- Desculpa, não estava prestando atenção.

- Quanta novidade, não é turma?

A gargalhada foi geral e Júlia ficou vermelha. O professor continuou.

- No estágio conhecido como crisálida, a lagarta encontra-se na última fase antes de se tornar adulta. Seria mais ou menos a idade de vocês, se a lagarta fosse um humano, claro – disse o professor Augusto, retornando à bancada.

A comparação criou novas associações dentro de sua cabeça. Quem sabe entendendo as lagartas pudesse entender a si mesma? Sentia-se constantemente num casulo. Embora todo mundo dissesse que era bonita, preferia esconder o rosto o máximo possível com o capuz do casaco. Evitava maquiagem para não chamar a atenção e sua voz era baixa, nas raras vezes que dizia alguma coisa. Foi essa a maneira que encontrou para mostrar ao mundo que não estava satisfeita com as constantes trocas de cidade. Ok, ali não era necessariamente um lugar ruim, as pessoas se esforçavam para agradar, a escola parecia boa, os professores não eram uns idiotas (tirando o professor Augusto, às vezes) e a casa para onde se mudaram, apesar da internet pré-histórica, era confortável. Mas sentia falta dos shopping centers, dos fast foods e do cinema. Ver os filmes no computador ou na TV não era a mesma coisa.

- Você vai levar outra xingada.

- O quê?

A garota sardenta ao lado de Júlia tirou o lápis da boca e apontou para o professor.

- Ele vai acabar pegando no seu pé se não prestar atenção na aula.

- Ah, tá. Valeu.

A garota voltou a mordiscar o lápis e deu de ombros.

- Quando a borboleta atinge a idade adulta, a crisálida se rompe e aquela lagarta feiosa lá do início vira essa belezinha aqui. – O professor abriu a tampa do vidro e ficou equilibrando uma borboleta laranja na ponta dos dedos.

Como se fosse o fim de um espetáculo, todos os alunos aplaudiram e o professor se curvou, arrancando mais gargalhadas da turma.

- Muito bem, pessoal – disse, devolvendo a borboleta ao vidro. – Quero um trabalho bem feito para o final do mês. Aproveitem a primavera. Observem e fotografem o máximo de borboletas que conseguirem. Não esqueçam de dizer onde bateram as fotos. Quanto mais espécies, melhor a nota.

Pela ausência de reclamações sobre o prazo de entrega, ficou claro que os alunos gostaram da atividade. Alguns já combinavam ali mesmo de se encontrarem à tarde para uma expedição.

- Quer vir com a gente, Júlia? – perguntou a sardenta.

- Acho que minha mãe não vai deixar.

- Bom, se quiser vir, você é bem-vinda. Vamos nos encontrar às quatro na quadra de esportes.

Júlia agradeceu e juntou o material. Gostaria de ir com seus colegas. Um passeio longe dos adultos seria um refresco para a sua cabeça. Quem sabe não conseguiria até se aproximar da turma?

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