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Capítulos Iniciais

Nossa parte proibida

Prólogo

CANTADA DE PEDREIRO


     Minha amiga era muito espirituosa e, um dia, chegou na sala indignada.

     Disse que há pouco havia passado por uma obra e nada. Nem uma cantada esdrúxula, nem um assobio, nem comentários altos, daqueles feitos para que a transeunte ouça, nem sequer burburinhos. Nada, nadinha.

     E não adiantou bater mais forte o salto na calçada. De lá só se ouviam as marteladas e a betoneira girando mais ao fundo.

Ela foi, voltou, e então passou mais uma vez, mas só recebeu mais um grande e silencioso nada!

     De repente as marteladas cessaram e o som da massa girando na máquina parou. Ela pensou: é a minha chance! E tentou mais uma vez. Eles tinham parado para tomar um café e deviam estar assistindo um tanto intrigados o porquê daquela jovem senhora passando tão sorridente na rua vazia. 

     Quando viu que não estava tendo sucesso na sua empreitada com os obreiros, virou-se para eles e falou de forma clara e com tom de simpatia. Foi então que entendeu a sua mãe.

     Contava ela que, quando adolescente, chegava esbaforida em casa de tanto xingar mentalmente o povo da obra da casa ao lado. Acontece que, cada vez que ela passava, eles vinham com piadinhas e aquelas cantadas de tio dos anos 80, tão populares que foram parar até em comercial.

     A mãe, para acalmar a menina, repetia: espera, minha filha, vai chegar um dia que nem cantada de pedreiro tu vai receber.

     Mas ela, no alto da sua jovialidade, achava aquilo um ultraje. Ora essa, ficar feliz por circular na rua livremente, sem risco de sofrer algum tipo de galeio indesejado. Que disparate imaginar que um dia posso achar isso ruim!

     A menina cresceu e fez trinta e oito duas vezes, trinta e nove mais algumas e, quando chegou aos quarenta, parou de contar. Achou que a idade estava condizente com o que sentia e se recusou a acrescentar dígito algum ao lado daquele número quatro. Pelo menos por enquanto. Porque também, dizia ela, vai ter um momento que plástica nenhuma vai segurar a força da gravidade, e aí vai ser preciso aumentar um pouco o número se quiser ter alguma credibilidade. Ou, quiçá, instaurar o benefício da dúvida. 

     A filha dessa minha amiga, já adolescente, sabia que a mãe fazia quarenta há uns poucos anos, mas, a determinada altura, quando pegou a identidade da sua progenitora por engano enquanto renovavam o passaporte, deixou todo o público incrédulo com sua descoberta: cin-quen-ta-e-cin-co, mãe?

     Cin-quen-ta-e-cin-co mãe? Tu já tem tudo isso, mãe? Como assim???

     Pois bem, essa mesma jovem de cinquenta e cinco anos, que aquele dia andava com a autoestima mais em baixa que em alta, ao passar pela obra deu razão à sua mãe.      Usando seu melhor sorriso, peito inflado, barriga para dentro e bumbum para cima, ela deu oi para os homens que sentavam no meio-fio da calçada e em resposta obteve: 

     — Boa tarde, senhora.

     Eu, ao ouvir a história, não sabia se ria da surpresa da filha. Do desconforto da mãe. Do fato de ela ter sido chamada de senhora depois de tanto empenho em chamar atenção. 

     Ou se me compadecia do nível daquela estima ser medido pela cantada (ou falta da cantada) dos operários ou mesmo pela necessidade de não assumir cada ano de sua idade com o orgulho que lhe é merecido. 

Fato é que o que já virou estigma ainda assola tantas e tantas mulheres. Umas com mais idade do que outras, mas algum tipo de assédio, em algum momento da vida, atinge a todas.

     As cantadas, que antes eram complementos de obras, passaram a permanecer no ambiente, servindo de herança aos novos habitantes do espaço. Se tornaram comuns nos escritórios e de lá foram se propagando para as praças e as esquinas, tomando as vias públicas e privadas e até tendo lugar no horário nobre da mídia.

     Aquele assédio deu abertura para outros, um pouco mais velados. A massificação foi tornando-os comuns e banalizados. E, quando as mulheres passaram a assumir cargos nas mesmas empresas onde tal inconveniência circulava, se tornaram presas fáceis em nome da sua permanência. Outras aceitaram flertes para manter ou ascender em seus cargos. Era um preço baixo a se pagar se quisessem crescer (as faziam crer). 

     Muitas não sabiam, outras tantas não percebiam o tanto de violência que estava contido ali. 

     O Dia da Secretária e o Dia da Amante estão entre as três datas de maior procura a motéis. A terceira data é o Dia dos Namorados. Não sou nenhuma expert em comportamento e entendo pouco de estatística, mas o fato, certamente, me intriga.

     Nas casas, a reprodução de comportamentos abusivos, passados de geração em geração, tentam ocultar o que lateja em muitas de nós. Mas esses comportamentos se reproduzem nos bares, nas praças, nas relações sociais como um todo.

     Não que outrora não existissem. A história começa muito, muito antes daquela cantada. Vem de séculos atrás onde o patriarcalismo imperava em quase todas as sociedades. 

     Não é só a normalização desses comportamentos, mas o medo de coisa potencialmente mais grave que nos congela. 

     O medo da agressão física, do estupro, do assassinato.

     Quem dera o impacto dessas “brincadeiras” tidas como ápices de virilidade masculina não tivesse nos atingido tantas vezes de formas mais ou menos dolorosas. E não fizesse com que chegássemos a ter dúvidas de nós mesmas ao não perceber os atos e gestos e toda a comunicação de assédio.

     Quem dera esse tipo de comportamento não fosse repassado e banalizado, de pai e mãe para filhas e filhos, que replicam, sem ter real consciência da profundidade que eles têm sem sequer perceberem o tanto que tais atitudes levam e de tudo que elas já trouxeram. Quem dera fôssemos ensinadas a nos ouvir. Mas, para algumas, o incômodo persistia, ele vinha de algum lugar. Aos poucos, as mais atentas foram abrindo os olhos. Essas, que não conseguiram deixar de se ouvir, apesar de todas as barreiras que tiveram que transpor para tal, foram também criando caminhos. Foram fazendo história frente a uma sociedade patriarcal e machista. Foram mostrando um outro lado, dando voz a outras que foram por tanto tempo caladas, mostrando o valor em ser mulher e toda a potência possível de, dali, reverberar. 

     Quem dera pudéssemos olhar mais para nós mesmas, para nossas crianças e resgatar, ali, o tanto de humano que nos foi tirado ao longo de anos e anos de desrespeito, de desamor, de desumanidade ainda que tais destratos fossem denominados de outra forma. Que pudéssemos resgatar o nosso feminino.

     Se pudéssemos escutar mais a nós mesmas, se observássemos mais o mundo ao redor e nos permitíssemos um ainda que tímido autoquestionamento, talvez alguma coisa já se fizesse distinta.

     Quem dera não fôssemos todas vítimas daquela mãe da minha amiga, que não foi até a obra e colocou cada homem no seu devido lugar, mostrando que mulher se trata com respeito. Assim como qualquer outro ser vivo do planeta.

     Mas a fizeram crer que isso era tratamento dado a mulheres tidas como bonitas, formosas, gostosas e, sim, jovens. Elevaram a invasão a nível de elogio onde a cordialidade não teve vez. A verdade é que, naquele tempo, nem ela (a mãe) sabia de onde vinha a dor que sentia quando, ao passar pela mesma casa ao lado, ao invés de assobios, recebia tratamento solene e distante e até um pouco respeitoso: “boa tarde, senhora!” 

1

BATOM VERMELHO

     Eu ouvia desde cedo aquela história. Minha mãe no centro de alguma cidade, vendo uma vitrine, quando se param ao seu lado duas mulheres lindíssimas. De unhas feitas, roupas vistosas, saltos e muito bem maquiadas. 

     Minha mãe, que era uma criança na época, ficara encantada com a beleza daquelas mulheres. E desde então soube que deveria se cuidar e se arrumar.

     Mas lhe chegou a vida adulta e das maquiagens, diz ela, nunca pôde usar muita coisa. Nunca a vi de olhos pintados, apesar de guardar em sua gaveta até hoje uma caixinha com dois pares de cílios postiços. Também lembro de cobiçar as bases, uma em bastão, muito vistosa e interessantíssima para uma criança, que abria e fechava aquela engrenagem como quem descobre um brinquedo novo. 

     Já o batom vermelho, esse era sua marca registrada. Tinha sempre um ou cinco em casa. Um na bolsa, afinal não podia andar por aí desprevenida. E a cada passadinha no banheiro, retocava os lábios, pois uma mulher não pode ficar com o batom rebuscado.

     Ela tinha, realmente, muito orgulho da boca vermelha. 

Não que fosse a única das suas vaidades. Na verdade, os colares coloridos e de materiais diversos também me remetem rapidamente a ela, mas era na boca que a expressão ficava mais marcante e perene.

     Para mim, aquele era também um objeto de desejo. Lembro de ter um preto, maravilhoso, quando brincava de casinha. Lembro de mostrá-lo às minhas primas como se fosse o objeto mais raro de um tesouro precioso. Lembro que, naquele dia, todas cruzamos a porta rosada, com desenho de uma boneca de peito inflados e sorrisos poderosos. As árvores, os pássaros e os nossos pais poderiam ver aquelas supermeninas que tinham sido, subitamente, empoderadas.

     Mas lembro também da cara de reprovação e do tal do batom sumir. Desaparecer. Escafeder. 

     Vários anos se passaram até que ousei pintar novamente os lábios e as opiniões controversas me deram alguma permissão de repetir o evento esporadicamente e, assim, me sentir sen-sa-cio-nal.

     Outras colegas usavam cores mais sutis e eu me sentia validada em me parecer com minha mãe. Estava a um passo de ser reconhecida por traços que lhe são vistos como valor.

     Então, um belo dia, o motivo de preocupação se materializou, bem ali, à minha frente.

     Era meu aniversário de doze anos, e estava tão feliz que íamos na pizzaria. Antes de acabar a aula, pedi para ir ao banheiro e lá, de frente ao espelho, coloquei meu batom vermelho. Voltei confiante para a sala a tempo de guardar as coisas e ir até a rodoviária pegar o ônibus de volta para casa. Ia pela rua me achando linda. Como se todos que passavam estivessem notando que a menina que andava a flutuar, de orgulho de si, era a aniversariante do dia. 

     Já no meu assento, vi que o batom tinha sido notado, pelo menos por um bêbado, que, tão rápido quanto entrou, colou os olhos em mim. E ali se fixou, logo ao meu lado. 

     Ele puxou conversa atrás de conversa e, mesmo que fosse monossilábica, ao meu redor, os colegas que costumavam ir e vir de uma cidade a outra davam-lhe trela para continuar. E ele, esperto, aproveitou-se desse aval para se aproximar cada vez mais.

     Afinal, não era todo dia que alguém visivelmente alterado e engraçado se aproximava do grupo para aumentar a algazarra daquele fundão que, por si só, já era bastante animado.

     Mas acontece que o dito se sentiu em casa com a acolhida e, em momentos, já vinha para cima de mim, tentando me beijar. 

     O cobrador do ônibus, que devia ter visto que aquela junção não sairia ilesa, foi rápido em me levar até o banco da frente e impedir que as tentativas continuassem. Ele barrou a passagem do homem. “Daqui você não passa, não está vendo que é só uma criança? Senta logo ou desce.” 

     Mas o que barrou sua passagem não calou sua boca, que seguiu, em alto e bom som, para que todos que estavam no mesmo transporte não ficassem em dúvidas: “Quero só um beijinho, vem aqui, me dá um beijinho, essa boca deve ser ótima de beijar.”

     Nessa altura, toda minha face corou, tomada pelo batom que já estava apagadinho diante do seu contorno. E pelo coração acelerado, ouso dizer que a pigmentação se expandia ao longo de toda superfície corporal passível de ser coberta por pele.

     Não tinha coragem de olhar para trás e as colegas ao meu lado tentavam me acalmar. Mal sabiam elas que não era apenas o bêbado o problema. O problema agora era algo que nem eu saberia explicar ao longo de muitos anos. Me senti violada, ridicularizada, completamente desprotegida, apesar da pronta acolhida assim que a situação passou do controle.

     Um bêbado e uma criança. 

     Quando contei aflita no carro aos meus pais, esperando ser amparada, não imaginei que a situação poderia ser ainda pior.

     As críticas e os gritos “Eu disse que não era para usar esse batom!” de quem se sentia impotente frente ao que havia sucedido, e que se mostrava tão assustado quanto eu, me deixavam sem chão.

     Me senti ainda mais ridicularizada e culpada. Era como se alguém visivelmente alterado estivesse certo. E pela cor do meu batom tivesse o direito de me pedir um beijo, de tentar me forçar a beijá-lo. Em pouco tempo entendi: eu tinha lhe dado motivos para se apropriar de um corpo que sequer era meu.

     Me senti tão traída. 

     Tão sozinha. 

     E, principalmente, tão confusa.

     Porque, de fato, havia sido sexualizada desde pequena. Era o namoradinho na pré-escola, um adulto de quem eu supostamente denominava namorado antes mesmo dos seis anos de idade. A televisão ligada em programas nada infantis, letras de músicas pesadas demais para crianças ouvirem, erotização feminina naqueles concursos de misses mirins… um mundo inteiro girando ao redor de gostos, estereótipos, comportamentos e definições que deveriam ser moldados.

     Mas o batom, no caso, não tinha nada a ver com gostos e desgostos sexuais de alguém que ainda brincava de bonecas. Tinha mais a ver com uma tentativa de valorização e de pertencimento. Eu queria ser como ela, como minha mãe. Ser bela, estar arrumada, sempre com aquele batom vermelho na boca. Eu queria ser tão linda quanto eu a via. Não era, em momento nenhum, para estranhos na rua, era para mim. 

     Mas em mim esse batom não servia. Eu não ficava bonita com ele. Era a palhaça de um circo que não entendia. 

     Me lembro de olhar o escuro pela janela do carro, com luzes vagas e distantes e pensar que era exatamente esta a minha situação: vagando no escuro, muito, mas muito distante da luz.

     Eu aboli o batom. E com ele, parte de quem eu era. Uma parte fantástica, potente, especial, única. 

     Na época da faculdade, o salto e a maquiagem eram constantes na minha vida. Mesmo em solos não adequados, o bico fino e o salto agulha não abandonavam o meu pé. Faziam parte da minha identidade, das minhas referências, da necessidade de aceitação e de valor. Usei a beleza, por vezes premeditadamente, para alcançar objetivos, conseguir favores. Nas minhas crenças da época, parecia que era assim que funcionava. Era como se ocultamente me mostrassem as regras de um jogo e eu as seguisse sem entender direito tudo que acontecia. O que eu não percebi era que o jogo todo estava errado, com peças fora do lugar e com muita coisa que não fazia sentido ali.  

     Mais de vinte anos depois, posso voltar a passar batom vermelho com orgulho, para mim. Ou posso não usá-lo e me sentir mais poderosa ainda por ter essa escolha. Me libertei do salto e quase não uso maquiagem. Posso, enfim, representar tantas mulheres como eu, que vagaram perdidas de si, sem voz, e dizer que nada é capaz de as calar.      Porque algo segue queimando lá dentro. 

     E, no momento em que perceberem uma brecha, uma pequena brecha por onde passar, e se agarrarem a ela, aos poucos a liberdade vem. Dói, dói muito, mas nada é capaz de conter a potência prestes a surgir. Porque ela, a beleza de tudo, não está em espaço externo algum. Ela vem de dentro e seu poder tem capacidade de aterrar tudo que está ao seu alcance.

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