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Capítulos Iniciais

Entrevista com o Caudilho

1. RIO NEGRO

Ontem, os Maragatos degolaram 300 soldados da Brigada Militar.

Ambrose Bierce recebeu a notícia pelo telégrafo. Estava em Buenos Aires. Era dia 29 de novembro de 1893. A mensagem dizia: “Massacre no Rio Grande do Sul. Centenas de mortos. Encontrar cônsul americano em Montevidéu. Enviar matéria sobre o assunto.”

A mortandade foi perpetrada após o combate do Rio Negro, no interior da cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul, dia 28 de novembro de 1893. Depois de derrotada, a tropa do governo estadual foi presa em um curral de pedra, que os gaúchos chamam de mangueira. O Major Adão Latorre, ex-excravo, que aos 16 anos fugira para o Uruguai e agora lutava como oficial rebelde da tropa do Caudilho João Nunes da Silva (Joca) Tavares, comandou a degola.

Foram assassinados, na maioria, castelhanos, ou caracos, como eram chamados os argentinos e uruguaios que peleavam para o governo de Júlio de Castilhos. Também foram mortos alguns oficiais do governo estadual, que anteriormente haviam comandado chacinas contra os rebeldes.

Os presos eram despidos e, na saída da mangueira, Adão Latorre bradava:

– Fala pão!

– Pão.

Brasileiro, soltava. Vinha outro soldado.

– Fala pão!

– Pan.

Castelhano, degolava.

Um dos oficiais brasileiros que estavam para morrer tentou se salvar. Indagou ao Major Latorre:

– Adão, quanto vale a vida de um homem valente e de bem?

– Valente, sim. De bem, não sei. A vida de um homem valente vale muito, a tua não vale nada. Está no fio da minha faca, não há dinheiro que pague.

– Pois então degola, negro filho da puta!

​       E Adão Latorre aplicou a gravata colorada no infeliz; que podia ser à brasileña, com dois cortes seccionando as carótidas, ou à criolla, o corte de orelha a orelha.

​       A notícia correu o Pampa feito rastilho de pólvora. Em Soledade, o Capitão Vidoca Cunha, tão logo tomou conhecimento da má nova, deu nó no lenço branco, girou o braço direito no ar e, como quem carrega uma bandeira, prometeu:

​       – Isso não fica assim! Chama a gauchada, reúne a tropa, ajeita os apetrecho pra peleia. Vamo atá as bruaca nos tento e encilhá os cavalo. Vai tê volta!

​       Enquanto o Capitão Vidoca Cunha reunia sua tropa em Soledade, em outro canto do Estado, na cidade de Bagé, cinco mil Maragatos, rebeldes de lenço vermelho, cercavam aproximadamente mil homens do lenço branco, que faziam parte da tropa leal ao governador Júlio de Castilhos, e que à época eram chamados de Pica-Paus. A área da refrega era pouco maior que a praça central do povoado, uns dez mil metros quadrados (o tamanho de um estádio de futebol). Os dois lados ergueram barricadas. A igreja e os prédios em torno foram crivados de balas. Era tiro para todo lado: revólver, mosquete, metralhadora e até canhão. O sítio de Bagé começou em 29 de novembro de 1893, o ano da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, a revolução da degola.

2. GUERRA CIVIL

​       A reação mais explosiva que existe não é nitroglicerina nem pólvora, é a combinação de medo e ódio que em meio à Guerra Civil toma conta das pessoas. Guerra civil não é guerra, é doença, escreveu Antoine de Saint-Exupéry.

​       A Revolução Federalista se iniciou em janeiro de 1893 e acabou em agosto de 1895. Pouco importa quais as razões do conflito, cujas raízes eram políticas e econômicas (a ditadura científica de Júlio de Castilhos e o combate ao contrabando na região da fronteira). A verdade é que, no Rio Grande do Sul, desde o século XVII, quando os bandeirantes lutavam contra os jesuítas, há dois lados para tudo.

​       Estima-se que entre 1893 e 1895 foram assassinadas 12 mil pessoas no Estado. Na época, habitavam o Rio Grande do Sul quase 900 mil almas¹. Para efeito de comparação, no início do século XXI, eram 11 milhões de gaúchos. Portanto, os 12 mil mortos do final do século XIX, que equivaliam a 1,3% da população de então, corresponderiam a um morticínio de mais de 140 mil pessoas no início do século XXI. E em apenas dois anos.

​       É a mesma proporção de mortos na Guerra Civil da Síria (algo em torno de 300 mil pessoas entre 2011 e 2015), tomando-se por base a população da Síria em 2012, de 22 milhões de pessoas².

​       E a matança fica ainda mais chocante quando cotejadas duas informações importantes: a) a ampla maioria dos mortos na Revolução de 1893 eram homens; b) no Rio Grande do Sul, em 1889, dois terços da população eram compostos por mulheres (900 mil pessoas, sendo 600 mil mulheres e 300 mil homens, reflexo das guerras que formaram a região, desde as Guerras Guaraníticas do séc. XVIII, passando pelas disputas de fronteira, Revolução Farroupilha, Guerras Platinas e Guerra do Paraguai).

​       Assim, cotejados os dados, percebe-se que a taxa de mortos na população masculina pode ter chegado a 4% (se considerada a estatística de 12 mil baixas), ou até mesmo espantosos 5%, pois o número de 15 mil mortos no conflito é perfeitamente factível, como sustentam muitos historiadores.

​       Segundo Décio Freitas, historiador do Rio Grande do Sul, a revolução da degola tinha por objetivo mesmo exterminar o gaúcho, esse indivíduo bárbaro e rude, produto do Pampa, cruza do soldado português ou espanhol que desertou porque não recebeu o soldo e precisava comer, e a índia, que ele chama carinhosamente de china. Ao contrário do cowboy, que dispunha dos recursos da revolução industrial norte-americana, especialmente do revólver Colt, que ele podia comprar, nossos avôs e bisavôs precisavam se virar com faca, lança – um que outro trabuco –, pau, pedra, faixa na cintura e bombacha trazida como ponta de estoque da Guerra da Crimeia por navio inglês.

​       Para a novel liderança positivista que se assenhoreou do Estado do Rio Grande do Sul, após a Proclamação da República em 1889, o individualismo e o temperamento típico do gaúcho eram incompatíveis com seus ideais de “Amor, Ordem e Progresso”, digo, “Ordem e Progresso”, pois a primeira parte do lema positivista foi extirpada dos anais da história brasileira³.

​       Ao fim e ao cabo, o clima de briga entre lenço branco e lenço vermelho só terminou quando Getúlio Vargas criou o Banco do Estado do Rio Grande Sul – BANRISUL, em 1928, e distribuiu dinheiro para os dois lados. Mas essa é outra história⁴.

1 897.455, segundo o IBGE http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Grande_do_Sul Acessado em 8/5/2015.

2 22.530.745: http://www.indexmundi.com/pt/siria/populacao_perfil.html Acessado em 8/5/2015.

3 O axioma positivista é: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Os vetustos senhores de antanho provavelmente julgassem que amor fosse coisa de francês, ou do Alberto Santos Dumont, e que não fosse pegar bem por estas bandas.

4 Getúlio Vargas foi eleito governador do RS em 1928. A vedação do sexto mandato de Borges de Medeiros foi uma das condições do Pacto de Pedras Altas, que pôs fim à Revolução de 1923. Borges de Medeiros, de quem Getúlio Vargas era aliado, sucedeu Júlio de Castilhos e cumpriu cinco mandatos de Governador entre 1898 e 1928 (a fraude campeava nas eleições). Entre 1908 e 1913, governou Carlos Babosa. O último governador do RS a ser reeleito foi justamente Borges de Medeiros, em 1923. Eleitorado difícil, não?

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