top of page
Capítulo Inicial

E a Tia na Lareira...

PRÓLOGO


"BALLET: DECADANÇA DA DECADÊNCIA"


(O ballet de abertura foi coreografado pelo paulista Marco Sanches, premiado na Itália, Espanha, França, Estados Unidos, Argentina, Alemanha, Brasil e Portugal, a partir do texto de Henrique Cambraia.)


      Em poucos minutos, sofremos mais de trinta anos do passado da família Monteiro.

      O palco é escuro. Sob um recém-nascido foco de luz, uma FLORA MONTEIRO CRIANÇA escapa por poucos anos de ser recém-nascida. FLORA usa um vestido leve de verão, os cabelos loiros pendendo em cachos. Enfurnada no quarto, dança para os ursos de pelúcia, não se furtando de espiar no espelho o resultado de seu pouco esforço. Dançar lhe é tão natural quanto a movimentação não-dançada ─ e mesmo essa ela dança! Os atentos já percebem uma espécie de brilho dissociativo invadir seu corpinho. Cumprimenta uma plateia cega e ouve aplausos de uma plateia muda. Inebriada com a certeza do próprio talento, sua infância é, agora, um corcel impetuoso galopando entre quatro paredes.

      O tempo passa e FLORA pisa a juventude. A morte da infância é o início da decadência. Descobre a sexualidade, o casamento da língua com a pele (que aos olhos-sempre-fechados de sua mãe, Genevieve, é licencioso), dos olhos com a língua, da pele com a pele e dos olhos com a desconhecida no espelho. Um foco de luz se acende sobre LAFAIETE, simples e monocromático; insosso. FLORA se contorce de dor. Está grávida. Como possa ouvir a reprovação da mãe, quer rasgar o ventre com as próprias unhas e extirpar a criança que lhe é como um tumor e cresce indiferente ao sufoco decorrente de sua existência. Foco de luz sobre ESTEVAM CRIANÇA, e FLORA virou a dona de casa perfeita que frita pastel sem se engordurar.

      FLORA busca a atenção do marido, mas ele tem os olhos perdidos num jornal de leitura eterna. Vasculha o próprio peito à procura de uma parte-mãe. Pensa encontrar. Beija o filho e se volta para o marido, convidando-o a dançar. Ele nada expressa. Beija o filho e se volta para o marido, convidando-o a dançar. Ele nada expressa. Beija o filho e se volta para o marido, convidando-o a... 

se desespera! Eis que o corcel se percebe de carrossel. Transforma o descaso do marido em raiva do filho, ameaçando agredi-lo quando da aproximação deste com o pai. Encolhido de medo, ESTEVAM como escudo oferece à mãe uma taça de gin. FLORA se anestesia. São feitas novas tentativas, cada vez menos lúcidas, de atrair a atenção do marido, e no menino já germina a semente da incompreensão: o pai já não lhe olha. ESTEVAM arranca o jornal das mãos de Lafaiete e desfaz em retalhos, mas o homem segue, impassível, a leitura de folhas invisíveis sobre as palmas das mãos. O filho tenta a mãe. FLORA convida-o a dançar ─ está se esforçando! ─, mas deixa-o cair e se frustra com a própria falta de habilidade. Ampara-o e tenta novamente, encomendando nova queda. As inúmeras tentativas desesperadas de construir cordões umbilicais com bílis cimentada a choro são regadas a gin. FLORA encontra taças em todos os cantos, já completamente embriagada, e as dispõe no chão quando vazias. As três peças isoladas deste xadrez alquebrado dançam 

contornando-as feito obstáculos de um labirinto.

      Sem despedidas, LAFAIETE se levanta e abandona a família. Estevam junta os cacos que são Flora ─ assistindo a partida do marido, desprendeu-se para sempre da realidade, pondo-se a dançar em desvario de relembrar-décadas-melhores. Os dois dançam, e somos pela primeira vez capazes de respirar. Mãe e filho estão unidos! Esse cheiro quente de ferro é do sangue que os une. FLORA tenta enfiar gin na boca de Estevam, mas este recua. Furiosa, ela dança sobre ele suas desesperanças, acrescendo em taças seu quintal de esquecimento-pelo-amor-de-Deus! FELÍCIA se materializa e estende os braços para o sobrinho, terna, convidando-o a ser amado. ESTEVAM corre a abraçar a tia e os dois vão embora.

      FLORA está sozinha. Rasgada. Despetalada. Tenta dançar, mas cai sempre. Rasteja de volta ao seu quarto de menina, mas as fechaduras já não têm chaves, e os ursos cegos são indiferentes a tudo o que enxergam. Engatinha rumo à juventude, mas sua pele já não tem gosto. Tenta o útero de Genevieve, mas não existem úteros em mulheres inexistentes.

      Se ergue e cai.

      Se ergue e cai em si.

      Se ergue e sai de si.

      Se ergue e se abandona.

      ESTEVAM ADULTO entra, maior-que-mãe e além-pai. Parte dele está disposta a perdoá-la, mas a parte majoritária é filha da frieza e neta do sofrimento. Aproxima-se de FLORA e, quando ela chora de emoção, aliviada, e somos capazes de acreditar que exista um embrionário felizes-para-sempre, ele beija, com uma taça de cristal, os lábios da mãe, derramando nela o gole derradeiro. FLORA se permite arremessar no abismo.

      ESTEVAM empertiga as costas e:


(O palco se acende, revelando a sala de estar da residência dos Monteiro. Passaram-se dez anos desde a morte de Flora)

Gostou e deseja continuar a leitura?
bottom of page