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Capítulos Iniciais

Dois Nós

carretel

I

Quando um rio morre, tudo o que é terra ao seu redor seca. Vira pó de areia. Toda vida se vai. O restante são cursos de água abandonados sepultados por metros de sujeira endurecida.

Mas não morre um rio de uma hora para outra. Sua secura não se define em um virar de doze horas. Passa anos esvaindo-se em um leito delgadinho daqueles que só molha o tornozelo. Começa a sucumbir quando se vão os primeiros afluentes. Pouco a pouco, suas belas ramificações galhadas vão minguando até tornarem-se cicatrizes em terra rachada. Ali morre o solo e quase nada brota além de umas poucas ervas daninhas. 

Em sua margem, começam a acumular detritos e sedimentos rochosos. Isso dificulta que a água escorra com vontade, já não mais alagando seu desenho rumo à foz.

Alguns cursos d´água, contudo, demoram muito tempo até seu perecimento total. Outros, mais debilitados por uma vida pouco caudalosa, são extintos em questão de um punhado de anos.

Claro, a extinção de um traço de geografia depende de muitos fatores que desembocam em um fim trágico. Mas, quando aparecem os primeiros sintomas, é necessário todo e qualquer cuidado com o leito fluido. Toneladas de peixes morrerão todos os dias, produzindo um desastre ambiental cujos efeitos são muito difíceis de ser avaliados, mas que, por certo, se prolongarão por anos a fio.

Assim, até seu fim total, o rio antes belo, poético e cheio de doçura, deixará apenas seu rastro nas leivas do que, um dia, fora terreno fértil.

Aquela foi uma manhã derradeira.  Quando acordou, Eloá não pôde imaginar ser o dia de sua morte. Arrastou chinelos pela casa, passou o café. Conversou com a filha sobre algumas trivialidades do telejornal matinal, mas não reclamou da queimação estomacal sentida já havia uma semana. Certamente, Camila não a deixaria em paz enquanto não fosse a um dos especialistas de uma lista de médicos. As safenas de alguns anos atrás não eram motivo para preocupação, diria Eloá.

Sentaram as duas à mesa durante poucos minutos. Camila saiu com seu pão pela metade. Despediu-se com um beijo jogado ao fechar a porta.

Naquele dia, Eloá parou de ser. Seus olhos fecharam-se em uma contração pouco dolorida quando o fluxo de sangue tranquilo foi interrompido, de vez, pela obstrução no início da coronária.

Com o remédio para o coração nas mãos, caiu ao chão enquanto as ramificações do músculo cardíaco perdiam o fluxo sanguíneo. Caiu ali, sozinha, às 10h da manhã. 

Peito seco, perdeu o brilho aquoso dos olhos azuis.


1992

O caminhão tombado no quilômetro 80 fez desacelerar o ritmo da estrada sentido capital. Os motoristas já engarrafados especulavam o motivo do acidente. Alguns julgaram, em comissão de caráter extraordinário, serem os ventos cortantes da Lagoa dos Barros o motivo causador do sinistro. Outros culpavam a menina de branco, alma penada da estrada. Divididos entre as três largas pistas, os automóveis, por sua vez, dormiam lado a lado sem previsão para despertar.

Mutiladoras de geografias, a autopista era uma cicatriz traçada entre os morros altos. Ali, punha-se fim à serra e brotava da margem das lagoas o solo claro de cristal de sílica e cheiro de mar.

Pena estarem os ocupantes dos veículos agrilhoados ao levantamento de peso do guincho do autosocorro. Perderam a lua cheia de céu refletida nas águas de abandono de mar. Prateada, clarejava o que os idos e vindos marítimos deixaram na regressão de 12 mil anos atrás. Não assistiram ao relevo caprichoso do derramamento basáltico que delineava perfis humanos nas escarpas. Ficariam emocionados se compreendessem a organização sistemática das lagoas que abraçavam a terra e alimentavam os homens. Mas tudo isso era dispensável enquanto o caminhão tombado atrapalhava a circulação da Freeway.

Ao longo da rodovia, o Fusca azul geladeira punha-se arrastado como um velho animal. Agachara-se, agora, no ponto da parada. Retrato do progresso de outros tempos, o automóvel era registro de decadência de uma época. Em pouco menos de vinte anos, passara de milagre da economia a metal corroído, tal qual os anos de chumbo de um governo ditatorial que lhe deu um motor com 46 cavalos de potência. 

Resolvido o problema na via, o carro cacarejou ao dar a partida. Fez coro aos grunidos dos transportadores de tijolos lançando ao ar o breu que fedia à progresso. Já não era sem tempo. Dava-lhe arrepios ficar parada em meio ao engarrafamento frente à lagoa. Nem a opulência do derramamento basáltico nem mesmo a lua cheia nascida ao leste a retiraram do estado de torpor do início de noite bem quente para aquela época do ano. Entre os dedos, o cigarro já passado do filtro saciava o vício e o medo.

Acompanhada de seus fantasmas, relembrava das histórias de amor e morte contadas pela tia sobre a mocinha porto-alegrense estuprada e morta pelo seu noivo que teve seu corpo encontrado na lagoa décadas atrás. Dessa vez, não pôde sorrir de encantamento e medo como menina diante à história da mulher que a criou. O olho arroxeado refletido no retrovisor não a permitia. Não era da alta sociedade como a adolescente.  Não viraria lenda merecida de ser contada. Provavelmente seu corpo apenas apodreceria atolado em um lamaçal entre um mato aquático qualquer sem tornar-se mito ou capa de jornal.

Morta, ao menos poderia assombrar o caminhoneiro da faixa esquerda que lambia os beiços em sua direção pouco se importando com a criança que brincava de bonecas no banco de trás do pequeno wolkswagen.

Cento e oitenta quilômetros depois, na manhã seguinte, a pequena olhava o labirinto erguido por esquinas. Acordaram junto ao sol no posto de gasolina às margens da rodovia em que repousaram durante algum tempo. Seguiram, então, rumo à capital erguida ao horizonte. Por horas, percorreram um centro da cidade composto por mosaicos entre estilos modernos e antigos. A trama cimentada entalhava na paisagem janelas que tocavam os céus. 

A menina de sardas observou curiosa o ritmo acelerado das pessoas nas calçadas. Imaginava as linhas de chegada, os pódios e troféus para a corrida travada pelos passantes. Não entendia, nos seus quatro anos, a capacidade humana de competir para chegar primeiro a lugar algum. 

Os olhos infantis fixaram-se em uma das figuras dormentes em colchões nas calçadas. Os monstros daquele novo lugar de pessoas que moravam umas sob as outras pareciam bem perigosos. Seriam eles maus? Bateriam também em crianças? Com uma garrafa em mãos, o ser pôs-se a balançar de uma forma familiar. Seguia, agora, os homens de pasta em troca de moedas. Pelo modo como as moças tapavam os narizes, concluiu ela que a criatura deveria estar morta: cheiro de peixe podre, certamente.

A fachada do prédio da Avenida dos Andradas era o retrato da degradação do velho centro da cidade no qual os cafés de conversa deram espaço a artigos importados de um mercado asiático qualquer. Cintilantes, as quinquilharias ofuscavam os acabamentos dos arabescos das fachadas já prejudicados pela erosão. Os prédios estavam destruídos, mas agradavam à criança. Alguns até pareciam castelos.

Com uma chave em mãos, o velho senhor de boina as conduziria dois andares acima. As paredes do corredor sofriam de uma sudorese constante naqueles dias de umidade. Os climas de Porto Alegre brutalizavam os ambientes em tempos de águas e quenturas. Nada parecido com as brisas de mar que balançavam as cortinas ao fim de tarde na lagoa. Mas agora o passado não as acompanharia mais.

Molemente largada aos braços, a pequena dormia um sono agitado de criança cansada. No agora, restava à mãe subir os dois lances de escada e suportar todo o peso que pudesse carregar.

O JK encarpetado possuía apenas uma janela ao fundo. Pouco entrava no ambiente a luz proveniente da rua. Refletido no paredão branco do edifício da esquina, esse era o pouco sol possível de ver por sua única abertura.

As histórias presas àquele chão, pedaços de pele e fios de cabelo alheios, foram varridas pela mulher. A criança não demorou a observar outros monstros pela janela. Ao fundo, o som do último debate eleitoral daquele ano abafava seus suspiros de medo enquanto os gritos dos candidatos a prefeito disfarçavam o soluçar da mãe.


II

Saí do banho, desenhei formas no espelho. O vapor deixado pela quentura excessiva da água ia se dissipando. O calor amoroso dava agora lugar ao frio do porcelanato.

Doze horas. Metade de um dia. Uma mentira protocolada por despertadores e jornadas de trabalho. Essa dúzia de convenções temporais tornou meu mundo outro quando, naquela manhã, o coração dela nos deixou. Minha mãe parou de ser.

A notícia veio em forma de telefone que toca em horário inapropriado. Todos os acontecimentos posteriores foram parte de uma narrativa surreal, obra de algum escritor embriagado. Causas e efeitos de natureza extraordinária fizeram de mim protagonista do insólito. No caixão, parecia mera figurante. Um objeto cênico obrigado a ouvir, de alguns presentes, suas piadas prontas de jornal.

O que aconteceu depois não sei se inventei agora ou ao sentir seu cheiro em minhas roupas. Talvez eu realmente tenha sido parte daquilo. Talvez tenha visto exatamente como aconteceu.

Toda a atenção foi dispensada em flores jovens e na escolha entre mogno ou carvalho. Alojaram minha mãe dentro do esquife de matéria morta. Estava envolvida em um manto branco de crisântemos. Aliás, era um lindo receptáculo para disfarçar suas orelhas já murchas.

Acabaria rápido. Pedi que fosse assim. Lembro-me de como ela detestava esses rituais. Pensei em como ficaria nervosa, mexendo nas chaves dentro do bolso. Era o tipo de pessoa que só aguentava até a vela ser soprada, cantava os parabéns já olhando para a porta. Agora, ela não teria mais pressa. Seu rosto foi consumido por uma tranquilidade inabalável. Nada mais a crisparia a testa: nem as contas a pagar ou mesmo a crise política do país.

Não pôde irritar-se com o discurso pregatório repleto de metáforas barrocas do pároco de plantão. O céu, o inferno, a salvação das almas - onde estaria agora a alma de Eloá? Eu, perplexa pela ladainha, resolvi falar algo que soasse mais honesto pelo menos para mim. Nunca fui grande literata, mas pude ler alguns escritos tecidos durante as horas de preparação dos atos. Assim, de um canto de semiconsciência, vieram palavras. Emocionei os presentes, mas eu mesma não pude me ouvir.

 O cortejo saiu. Perdi o rosto das pessoas na luz projetada pelo crepúsculo. Caminhávamos sob a égide do tempo, conduzidos pela prova maior de nossa insignificância. Pequenos e efêmeros, éramos apenas sombras impressas no chão de pedra pelo pôr do sol.

Desenhei com contrastes o momento. Rascunhei os traços expostos à luminosidade. Fotografei com a retina dos olhos afogados o instante único. Quem sabe eu precisasse revisitar esse momento vezes e mais vezes para compreender ser aquele o fim de nossos dias juntas, de suas bochechas bêbadas de vinho, das agulhas de tricô. Precisaria eu, dali por diante, pensar no pretérito – tempo verbal de memórias ocasionais. Sem suspiros, sem cheiro de perfume. Eloá parou de ser. Nos deixou naquela terça ensolarada. Nos roubou seus tempos, modos e conjugações.

Deixou a mim ser conduzida por outras mãos, por braços que me acolheriam. Deixou-me a outros ombros. Privou-me dos nossos momentos em meio a conversas durante a novela quando ela me contava sobre sua infância pé no chão. Durante esses instantes, se fazia líquida e transparente. Naqueles intervalos, retirava suas máscaras, depunha seus disfarces. Chegava a sorrir.

Destinou-me a lembrança do apartamento do Centro, nosso primeiro refúgio. Guardados em mim, nossos momentos mais íntimos e reclusos quando tricotávamos luvas para o inverno úmido que viria pela frente. Quando comparávamos o tamanho de nossas mãos.  Uníamos a nós. Tramávamos nossos laços.

O vapor dissipou-se. Doze horas depois, estava eu sozinha ao espelho sentindo o frio que subia do porcelanato do chão. Nas mãos, o registro do cartório, a comprovação de sua inexistência em tinta impressa sobre papel timbrado.

Minha mãe parou de ser. De tudo, me restaria apenas o passado. Pretérito perfeito, tempo verbal de memórias ocasionais.


1994


Esse foi um ano otimista para os jornais. As manchetes, mesmo após a comoção nacional pela morte do piloto de Fórmula 1 ídolo da nação, pregavam uma sensação de completude. A seleção de futebol fora campeã do mundo após anos e anos de jejum. É tetra, eles diziam. A crise econômica parecia dar sinais de entrega com a segunda mudança da moeda em dois anos. Contudo, no Brasil profundo, a situação era outra. Enquanto as elites empresárias atualizavam seus equipamentos eletrônicos, os elos da cadeia produtiva social arrebentavam-se em seus pontos mais fracos. 

A classe trabalhadora vivia num arroz com feijão, muitas vezes sem carne, enquanto os heróis do tetra superlotavam seu avião de retorno dos USA com 15 toneladas a mais de bagagem que o permitido. No outro lado da cidade, a catadora de lixo Leonildes Cruz Soares, 65, afirmou ter comido um seio humano pois estava passando fome. Um seio. Comi sim. Eu e meu filho, Adilson. Achamos no lixo do Hospital de Clínicas.

Naquele julho, estampava a manchete do jornal a educação no Brasil. A pior educação do mundo. A última do ranking com apenas 39% dos indivíduos com idade escolar frequentando, de fato, uma escola. Mais abaixo, ainda na primeira capa, anunciava-se a crescente aprovação da nova moeda mesmo entre os eleitores do candidato de oposição.

O dinheiro mudou nas mãos do povo. A fauna brasileira estava agora estampada em notas recém trocadas no banco. Foram-se os cruzeiros reais e suas figuras regionais, ficaram as coloridas onças e araras. Entre os animais, somente uma pequena parcela da população poderia possuir a rara garoupa azul. Era o Plano Real. Mudaram as notas, mas, em 1994, 15,4% do total da população infantil no país, quase 2,5 milhões de crianças, estavam desnutridas. Na barriga nem pão nem leite. O inchaço era mesmo provocado pelas tênias.

As grades do apartamento foram abertas. Três cadeados defendiam a porta dia e noite, já que a fechadura há muito não funcionava. A criança de sardas correu pelo corredor enquanto a mãe rearranjava os salvaguardas das poucas coisas valiosas da residência. Entrelaçaram, assim, as mãos e desceram os dois andares. A alguns metros, o mundo. Um firmamento apressado pelo ritmo constante dos passos. Por todo lado, pernas. Braços que se tocam. Mãos cheias de folhetos oferecendo cortes de cabelo ou compra de ouro. 

O calçadão da Rua dos Andradas era uma imensidão familiar para a pequena. Ela resvalava entre os adultos absortos entre seus cálculos mentais. Era rebatida por todos os lados, mas não reclamava. Sentia-se como parte pulsante da cidade, imaginava-se como uma formiga em seu dever. Conhecia cada loja de discos, cada comércio de 1,99. Sonhava em trabalhar nas marisas. Gostava dos artistas de rua na Esquina Democrática. Achava graça em como os adultos paravam toda sua movimentação rápida e confusa para rir de piadas sobre coisas do interior que ela não entendia, afinal era uma cidadã nascida e criada na capital do Rio Grande do Sul, como repetia a mãe sempre.

Subiram algumas ruas e chegaram ao destino proposto. A fachada do prédio parecia ser contínua ao asfalto não fossem os vidros coloridos a la art français que compunham os vitrais. Cinza por combustível queimado, a tradicional escola das freiras impunha-se monumental. As torres muradas e as esculturas de nosso senhor jesus gritavam o desespero gótico pelos céus tal qual uma Notre Dame feita de pedra sabão.

Ao canto da escadaria, a irmã já esperava as recém chegadas. Em frente à virgem com seu bebê, deu boas vindas que deus as abençoe. O que as traria ali? Em um primeiro olhar, a mãe concluiu que a freira perdera algo de vistoso das mulheres que já foram bonitas. Contudo, as roupas simples cor caqui e o corte de cabelo curto e justo à testa traziam, naquele momento, o abraço familiar.

Passaram corredores brilhosos cheirando à tacolac e salas de aula com portas decoradas por mensagens de volta às aulas. Dobraram algumas escadas à frente após atravessar o pátio central, silencioso àquele horário. 

Ao chegar ao destino, a mulher suspirou ao batente da porta. Entraram, então, na sala da direção, apenas a irmã e a mãe. A menina foi deixada em um sofá da sala de espera a balançar os pezinho no ar.

A pequena circundava os olhinhos pela antessala explorando todos os detalhes e as incompreensíveis frases escritas em latim; registros do carisma das irmãs em sua semialfabetizada leitura eram construções sintáticas difíceis de realizar. O domínio das sílabas, nos últimos meses, fora compreendido e somente treinado por frases pobres em revistas sensacionalistas. 

Seu antigo colégio não lembrava em nada aquele. Ali, não havia rabiscos nas mesas com frases que ela não entendia deixadas pelo turno dos maiores da manhã. Talvez, a futura professora ficasse menos doente e não faltasse tanto. No último dia de aula, tinha prometido levar pipoca, mas não apareceu. Ainda com os olhos vidrados na parede à frente, esforçava-se para reconhecer aquela palavra escrita na cruz. Com o dedinho, acompanhou as letras douradas. INRI. Não sabia o que significava - seu nome não era Jesus? Entediada, fez bolhas com o guspe que ficara acumulado ao canto da boca. Gostava de fazer coisas proibidas quando ninguém estava olhando.

Inabalável pela cara impávida da freira, a mãe prosseguia, sem timidez, a destrinchar seu histórico de hematomas e sangue seco. Estavam ali, na capital, há pouco mais de dois anos.  A filha nada lembrava da infância distante. Parara de fazer perguntas quando a mãe, incessantemente, a contava outras histórias em que acreditar. Porto Alegre as abrigara em seus verões úmidos e invernos cor de gris.

Não era caridade o que pedia à irmã. Fez questão de repetir. Lavaria, passaria. Lustraria o chão histórico escolar de século XIX caso fosse preciso. O grito era silencioso, mas desesperado. Suas mãos agarradas e trêmulas buscavam por soluções. Era perante a deus e a santíssima virgem que implorava por ajuda.

 Por um quarto de hora, a mãe narrou à espectadora o entrelace dos fatos que as levaram até ali. Contou à interlocutora interessada como conseguira um emprego, mesmo sem ter os estudos completos, como caixa de supermercado. À noite, seus trinta anos ainda a permitiam trabalhar em bares como garçonete. Afinal, não era velha o suficiente para não mais atrair a clientela. 

Inicialmente, a freira não soube o que dizer quando atendeu ao telefone três dias antes. Do outro lado da linha, a amiga dos tempos de escola católica, companheira de corridas entre dunas. Demorou a reconhecer aquela voz. Já não carregava a doçura adolescente a qual guardara como recordação. Era rouca e compassada por pigarros de fumante. Distante de sua terra natal desde os tempos de noviça, a freira perdera contato com os conterrâneos logo na época da morte de seus pais. Sem ninguém a quem recorrer, a jovem dos ainda cabelos castanhos e ondulados aceitou o convite das irmãs professoras para ingressar na congregação. Logo acabou por sair da cidade e deixar as velhas amigas para trás. Inclusive aquela que agora ali estava diante de si, a garota bolsista das saias desbotadas.

 A tragédia do ano de 1977 fez chorar a pequena cidade litorânea do Rio Grande do Sul e adiou todas as celebrações na igreja naquele mês. Lembrou, então, do convite de casamento rasurado de data riscada. O envelope carmim que recebera semanas após o ocorrido. Era daquela mulher. 

Juntas, rasgaram as lembranças do passado. Tramaram um acordo para que a pequena continuasse a ter sua paz infantil. Esqueceriam os tempos antigos pela criança. Mãos apertadas, trato firmado: era a menina agora aluna do colégio católico. Aprenderia inglês e francês com as primeiras letras. Margulharia, juntamente com os privilegiados de parcela mínima da população, em histórias costuradas em papel. Correria pelo pátio central com o mesmo uniforme colorido de outras meninas. Cantaria os hinos pascais com os olhos cheios de lágrimas pela morte de nosso senhor. Não seria mais uma porcentagem nos rankings de semianalfabetos do país. A mãe não veria mais a filha soluçar pela ausência de uma professora qualquer.

A partir daquela tarde, os pesadelos que faziam a garotinha acordar pela noite seriam deixados para trás em algum canto empoeirado de memória. Passariam, agora, a figurar seus maus sonhos as gárgulas góticas da torre da escola. A mãe apenas enxugaria seu suor noturno e diria serem os monstros feitos de pedra. Nesses momentos, repetia a si em frases baixas, sussurros, que o passado não as alcançaria mais. 

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