Capítulos Iniciais
Decálogo
Prólogo
“Pois eis que põem ciladas à minha alma”
(Salmo 59, versículo 3)
Gilberto Fonseca
Um tapa na cara e um soco no nariz.
Fora a surpresa e a tontura, André foi tomado pela vergonha de ter recebido os golpes diante da esposa.
“Ah, se arrependimento matasse” – pensou.
Se sobrevivesse, juraria por tudo que é mais sagrado que daria ouvidos à intuição de sua mulher.
“Quem sabe ficamos por aqui, junto dos nossos?” – disse ela, antes.
“É uma grande oportunidade” – argumentou.
E era.
Sair de uma pequena comunidade e se tornar responsável por centenas, talvez milhares de pessoas, era um passo gigante para alguém que estava há tão pouco tempo atuando como pastor.
De onde vinha, um ano havia sido tempo suficiente para apontar todo e qualquer pecado dos membros de sua congregação. Sabia das mentiras, das traições, de quem lutava contra o vício. Já sentia o gosto amargo da estagnação por enfrentar a resistência natural da ingenuidade e da falta de perspectivas de seu rebanho.
Soava prepotente, sabia.
Sonhava com algo mais.
Uma metrópole traria desafios, exigiria reinvenção, mas também abriria portas para que suas palavras chegassem a um número maior de ouvidos e, se Deus permitisse, de almas também.
E, caso a sorte ou a intervenção divina assim quisessem, cumpriria sua missão como religioso.
Além de sepultar de vez um segredo.
— É pra matar ou só dar porrada? – perguntou um moleque de pouco mais de quinze anos. O bigode fino sobre os lábios e a expressão endurecida até podiam enganar os desatentos, mas André sabia que o menino não tinha mais do que isso.
— Deixa ele responder de novo – disse o outro, este, sim, mais velho.
Limpou uma tira de sangue que escorria e secou as lágrimas que o impediam de ver o rosto da esposa.
— Fala aí, pastor. Porrada, tiro ou vai fazer o que o Doutor lá pediu?
O “Doutor” era, indiscutivelmente, a pessoa mais importante da comunidade e estava diretamente relacionado à situação.
Desde o primeiro encontro, sabia que o relacionamento dos dois seria, no mínimo, conflituoso. O “Doutor”, na falta de uma expressão melhor, era o dono de tudo que envolvia o morro, inclusive das pessoas que ali habitavam. Apareceu no primeiro culto e sentou-se no banco da frente, rapidamente desocupado para que ele fizesse uso do lugar privilegiado. Escutou com atenção tudo que André havia preparado para a pregação daquele dia. Sorriu nas horas certas e silenciou em oração como todos os demais, mas transpirava uma energia que não fazia parte daquele espaço. Ao final, depois que todos já haviam recebido os cumprimentos de despedida, dirigiu-se a André para um boas-vindas.
“Então o senhor é o novo pastor” – disse. “Boa pregação”.
“Obrigado. O senhor é?”
O homem riu.
“Se ainda não sabe, preciso conversar com quem lhe contratou, pois sua igreja está num terreno
meu.”
André apenas devolveu o sorriso, sem saber o que dizer.
“Marcial” – A voz saiu tão forte quanto o aperto de mãos – , mas as pessoas também me conhecem por Doutor.”
“O senhor é médico?” – perguntou.
Marcial congelou o olhar, avaliando se a pergunta era sincera ou provocação.
“Digamos que seja um sinal de respeito a quem provém o bem-estar dos seus.”
O Doutor, em seu terno branco, limpíssimo, destoava em tudo dos que lhe acompanhavam. Tinha todos os dentes, cheirava a perfume importado e as palavras saiam completas.
“Seja sempre bem-vindo à igreja, Marcial.”
— Eu não vou perguntar de novo – gritou o menino. – Porrada, tiro ou vai fazer o que o Doutor pediu?
— Deixa ele em paz! – Foi a primeira vez que Ana disse alguma coisa.
O homem mais velho chegou a levantar a mão para agredi-la, mas recuou.
— Quietinha aí, dona. O Doutor pediu pra não tocar na senhora por enquanto, mas não facilita.
— Deixa ela em paz... por favor.
— A gente vai deixar, pastor. A gente vai deixar. É só fazer o que foi pedido. Que mal pode ter em obedecer a um pedido do homem lá?
André balançou a cabeça. Queria argumentar, achar as palavras que pudessem explicar o absurdo que lhe fora solicitado, mas duvidava que conseguisse acessar os ouvidos surdos daqueles dois.
— É uma igreja!
— Que pertence ao Doutor, porra! Tu só tá usando o espaço pra fazer o teu trabalho.
Não deixava de ser verdade. Mas a casa de Deus não deveria servir de depósito para o mal.
— Tô perdendo a paciência! – disse o mais jovem, levando a mão às costas e trazendo um revólver para a cena.
— André... – A voz de Ana saiu carregada de apreensão.
— Deixa eu falar com o Marcial.
— O Doutor já falou contigo tudo o que tinha pra falar, agora é fazer ou pagar a conta por não obedecer.
— Chega dessa merda, Getúlio, não vai faltar pastor pra botar no lugar desse daí – disse o garoto.
— O moleque tá certo, pastor. O que tu ganha dizendo não pro Doutor?
Eles não conseguiriam entender nem que André explicasse um milhão de vezes. Foram criados dentro de um sistema corrompido desde sempre. Provavelmente, sempre com um “doutor” para das as cartas e controlar a comunidade através de pequenos benefícios e medo constante. Regra da selva: manda quem pode mais, obedece quem quer ficar vivo.
Deveria André obedecer?
— E se eu quiser ir embora, abrir mão de tudo e sair daqui com minha esposa e meu filho?
Os dois homens se olharam por um instante.
— Claro que não vai contar nada pra ninguém... – disse Getúlio.
André assentiu antes mesmo dele concluir.
— Pastor – a voz soou calma, como se a explicação fosse dada a uma criança –, parece que tu não tá entendendo com quem tá jogando. O Doutor quer algo de ti e tu vai fazer, senão vai pagar o preço e ele vai botar outro cara no teu lugar que vai obedecer. Tua esposa é novinha, ajustada, teu moleque é pequeno, tem a vida toda pela frente. Pode ser que tua teimosia seja esquecida e o futuro te traga coisas boas.
— Muita conversinha, Getúlio.
— Cala a boca, garoto. Não esquece de quem tá à frente aqui.
— Por quanto tempo eu preciso guardar aquilo lá na igreja?
— Não sei dizer. Às vezes o Doutor segura uma semana, às vezes um mês. Depende.
André buscou os olhos da esposa. Estava indo contra tudo que acreditava, mas era sua família que estava em risco aqui. Deus havia de perdoá-lo.
— Vou fazer o que o Doutor pediu. – As palavras saíram miúdas, com sofrimento.
Getúlio bateu palmas.
— Guarda a arma, garoto, a gente terminou aqui. Bora avisar o Doutor que tá tudo certo.
O mais jovem ainda aproximou-se de André para um último recado.
— Não vacila, pastor. Se vacilar, vou cuidar de ti e da tua esposa. De jeitos diferentes.
Saíram os dois.
André abraçou a esposa e ambos curvaram-se sobre os joelhos em um pranto.
— Eu vou dar um jeito, Ana, eu vou tirar a gente dessa.
— Vamos embora daqui. A gente espera a noite e foge. Não temos muito dinheiro, mas é o suficiente para ir pra longe.
— Eu concordo, mas vamos fazer a coisa da forma certa. Vamos pra casa, a gente pega o Isaque na passada e você arruma tudo enquanto eu faço o culto da noite. Melhor manter as aparências pra ninguém desconfiar. Depois disso a gente foge.
Saíram do lugar onde estavam, um galpão anexo a um ferro-velho. O sol forte, em contraste com o escuro de antes, cobrou um tempo para se certificarem do caminho certo a tomar. Ana ajudou André a se recompor. Secou o sangue que ainda sujava seu rosto utilizando o lenço do cabelo e beijou seus lábios, num sinal de confiança de que haviam decidido pelo correto.
Andaram em silêncio até a creche comunitária onde haviam deixado o filho pela manhã, agradecidos pelos ponteiros do relógio estarem próximos da hora de levá-lo para casa.
Tocaram a campainha e pouco tempo depois uma jovem de avental abriu a porta.
— Oi, pastor. Oi, Ana. O que houve?
— Viemos pegar o Isaque um pouco mais cedo, tudo bem? Quero fazer uma surpresa pra ele – disse Ana.
A jovem ergueu as sobrancelhas num sinal de espanto.
— Acho que vocês estão atrasados. O Doutor passou aqui e disse a mesma coisa, que ia fazer uma surpresa pra vocês.
Capítulo 1
“Amar a Deus sobre todas as coisas”
Marisa Magnus Smith
Joana, a funcionária da creche, demonstrou preocupação com o silêncio do casal.
— Parece que o pastor ficou meio chateado... Eu não fiz mal em entregar o Isaque pro Doutor, né? – Esperou um segundo e complementou – Era o Doutor... Além do mais o menino ficou contente... – justificou.
Isaque era o que se pode chamar de “criança dada”: nunca reagia mal a uma aproximação, seja adulto, criança, cachorro. Tinha uma ligação especial com os mais velhos, sua avó Marlene que o diga. Essa disposição para socializar sempre gerava um efeito previsível: todos se encantavam com o menino – exceto um ou outro coleguinha enciumado.
Olhos cor de jabuticaba como os do pai, cabelos claros como os da mãe, Isaque não se destacava por uma beleza tipo capa de revista e, sim, pelo sorriso de muitos dentes. Não que tenha muitos, na verdade, apenas os esperados para seus cinco anos.
Mais do que o pai e a mãe, sua pessoa preferida era a Vovó Marlene. Muito próxima da família desde que os jovens formaram casal, há sete anos, ia diariamente ao encontro da filha e do genro para ajudar na lida da casa e do bebê. Quando enviuvou, aceitou o convite para trocar de casa e ficar com os três.
Religiosa de carteirinha, só se conformou com a abrupta decisão de André de trocar de cidade quando o genro argumentou que na nova comunidade poderia traduzir em obras o que ele considerava o mais importante Mandamento do Pai Celestial: Amarás o Senhor de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força. Quanto mais fiéis conquistasse, mais pessoas seriam influenciadas por esse preceito. Diante dessa razão, Marlene escondeu sua contrariedade, e Ana, que não queria por nada deixar sua cidade, seus amigos e seu trabalho, acabou se conformando.
O casal esperou de pé na porta da creche enquanto Joana se afastou para chamar a professora. André apertou com força a mão da mulher e sussurrou:
— Disfarça, amor, sorri, vamos fingir que tá tudo bem.
— Mas, André, nosso menino pode tá correndo perigo.
— Talvez, mas não acho que aquele bandido vai aprontar algo agora. Enquanto eu não fizer o que ele mandou, Isaque tá seguro. Melhor não fazer escândalo, o Doutor vai ficar sabendo e pode achar que é provocação. Vamos jogar o jogo dele. Aguenta, confia em mim.
Mas por dentro André era outro. Estaria seu Deus cobrando o preço pela culpa que tentava em vão apagar?
— Parece que teve uma confusão aqui, pastor. A Joana me contou o que houve. – A professora se adiantou um tanto constrangida. – Me desculpe, a gente não costuma entregar uma criança sem bilhete dos pais.
Joana também tratou de se defender:
— Eu não saberia nem como dizer não pro Doutor. Vocês entendem, né?
André assentiu com um movimento de cabeça, decidindo cortar de vez a conversa. A demora pra chegar em casa só aumentava a aflição, e ele não sabia quanto tempo mais Ana aguentaria segurar o nervosismo.
— Tudo bem, gente, não se torturem sem razão. Claro que o Isaque está em boas mãos, logo estaremos com ele em casa e tudo será esquecido – disse, forçando um sorriso.
Nunca as poucas quadras que separavam a escola da casa de André e Ana pareceram tão longas.
Quando enfim chegaram, foram recebidos pelo olhar desconfiado de Marlene.
— Cadê o Isaque, gente? Não pegaram ele na escola? André, o que aconteceu contigo? Teu olho tá roxo ou é impressão minha?
André pôs o braço sobre o ombro da sogra para conduzi-la para dentro.
— Que que tá acontecendo, meu filho?
Mas o pastor não teve tempo de responder. Um carro chegou depressa, trazendo junto os gritos de uma criança.
— Papai, mamãe, olha o que eu ganhei! Olha meu dinossauro, é o Dino!
André apressou-se até o carro e tomou o filho no colo pela janela aberta. Só depois de repassar Isaque à esposa que buscou o motorista com o olhar.
— Sossega. O menino tá bem, pastor. O Doutor levou ele na pracinha, deu picolé de chocolate e brinquedo. A notícia de que tu ia colaborar correu rápido. Ele queria demonstrar que tá agradecido.
— Não ameaça meu filho!
O motorista baixou os óculos escuros, encarou André por alguns segundos, depois dirigiu-se à Ana, que estava agarrada ao filho.
— Tá entregue, dona, desculpe eu não entrar pra um cafezinho, mas, como vou ficar por perto, quem sabe outra hora?
Vó Marlene, que acompanhava toda a cena, não entendeu nada, mas ficou com a sensação de que boa coisa não era.
— Vocês estão bem? Tá tudo muito esquisito, me diz o que tá acontecendo.
— Não é nada, sogra, eu tropecei e caí estatelado, o queixo sangrou um pouco, ainda bem que consegui proteger a boca – André desconversou, não dando margem para que Marlene perguntasse sobre o motorista. – Já pensou se eu quebro um dente? Mas meu Deus é fiel, nunca me desampara. Só que estou bem cansado, vou tomar um banho e preparar minha fala pro culto da noite. Vem comigo, Ana?
Ana passou o filho à avó.
— Claro. Mãe, fecha as janelas e tranca as portas. Já tá ficando noite. Tu cuida do Isaque?
— Pode deixar, dou banho e janta enquanto vocês se ajeitam – respondeu Marlene, respeitando o desejo do casal em não comentar o assunto.
Pouco tempo depois, Ana já estava a portas fechadas com André, os dois unidos em um abraço silencioso e um choro cúmplice sob a água morna que caía.
— Vamos orar, Ana, temos muito a agradecer e muito pra pedir.
Juntaram as mãos molhadas e rezaram juntos um Pai-Nosso. Depois, cada um orou em silêncio, Ana pedindo desesperadamente proteção para sua família, André invocando a Divina Trindade, implorando perdão por seus pecados ao severo Deus Pai do Antigo Testamento.
— Minha cabeça tá fervendo, Ana, imagino que a tua também, mas tenho fé e esperança de que o Senhor não vai nos desamparar. Vamos conversar depois do culto, daí refletimos juntos sobre tudo que aconteceu hoje e sobre o que vamos fazer. Só sei uma coisa: nós vamos proteger nosso filho. Amanhã ele não vai pra escola, vamos dizer que está doente e esperar o próximo movimento do Doutor. Tenho certeza de que ele vai me abordar no templo hoje à noite.
Ana só fez que sim com a cabeça, nos olhos o horror de ver o filho com um estranho.
Enquanto o pastor procurava reunir ideias para sua pregação, os últimos tempos passaram diante de seus olhos como imagens em caleidoscópio: a vida na pequena Vila Nova, sua atuação como pastor de poucos fiéis, as mazelas daquelas almas pouco iluminadas; seu pecado, a imensa culpa, a chantagem, a decisão de pedir aos superiores uma transferência para onde quer que fosse. Não importava, desde que longe, bem longe, da pacata mas traiçoeira cidade.
Pedido atendido, André aceitou a transferência de olhos fechados, sem procurar saber nada do lugar onde iria atuar. Qualquer coisa seria melhor do que o purgatório em que estava vivendo.
No entanto, parecia que Deus não pensava da mesma forma.
Enquanto tentava dar ordem aos pensamentos, André encontrou o que iria dizer aos seus fiés.
No culto, na primeira fila, como era de se esperar, de terno branco e sorriso no rosto, o Doutor marcava presença, aguardando a pregação que viria.