Contos Iniciais
Contrapontos e Outros Contos
Contrapontos
Abadia de Melk, Áustria (20 de julho, 2014).
O ônibus reduz a velocidade e detém-se no acostamento. Paula, nossa guia, acorda os passageiros mais sonolentos com seu acento lusitano: Lá está a Abadia de Melk, senhores, concluída no séc. XI para os monges beneditinos. Óóóó, fazemos em coro ao avistar a soberba edificação que se equilibra no topo da montanha. Nada feito, o roteiro não prevê parada ali, e o ônibus já retoma o ritmo excursionista. Mas eu não, eu fico, tenho um compromisso inadiável. Cruzo a campina, chego ao sopé da montanha. As escarpas seriam intransponíveis, não fossem os degraus surgidos por magia. Alcanço a cozinha fumacenta da abadia, esgueiro-me entre carnes, ervas e caldeirões fumegantes. Resisto à tentação dos manuscritos e iluminuras da espetacular biblioteca, chego à penumbra do piso superior. Na última cela, encontro quem busco, preciso muito trocar uma ideia com ele. Hábito de lã grosseira, capuz volumoso revelando apenas parte do cavanhaque branco, William de Baskerville analisa um pergaminho à luz de velas. Ergue-se para me acolher. Me aproximo e vejo um rosto compassivo, olhos absurdamente azuis, sorriso algo zombeteiro nos lábios carnudos. Esqueço o que fui fazer ali, encantada com o porte digno, o rosto belo. Um Sean Connery medieval, eu diria.
***
Auschwitz, Polônia (julho, 2014).
Seguindo o fluxo, entro no grande salão onde os recém-chegados eram outrora desnudados ao descerem do trem. Me contam que, exaustos pela precária viagem, aceitavam de bom grado o “banho” que lhes traria alívio — eterno. Mas não é isso o que busco. Busco o corredor. Distancio-me do grupo. Preciso percorrer esta via crucis em silêncio e solidão. Chego, enfim. Inspiro profundamente e penetro nesta parte da História com o pé esquerdo. Dos dois lados, grandes vitrines, caixas de vidro. Desmemoriei a ordem de exposição, preciso de todos os neurônios para reter os pertences de cada caixa, amontoados às centenas, aos milhares. À minha direita, mil óculos de aro metálico redondo, aquela gente de sangue ruim gostava muito de ler e escrever, eram mesmo um perigo. Em frente, centenas de cabeleiras loiras, ruivas, castanhas, grisalhas, trançadas ainda, laços faceiros intatos. Adivinho nelas carícias de mães, namorados, filhos. Adiante, uma montanha de calçados infantis, entre eles um número insuportável de sapatinhos de bebê, escandalosamente limpos, na certa colocados com mãos de amor e de esperança — por mães que tiveram a ousadia de povoar a Terra, desde os tempos bíblicos, com tanta gente de sangue impuro.
Disparo corredor afora, alcanço a saída justo a tempo de vomitar tripas e coração. Neste momento, torna-se questão de vida ou morte voltar a Melk. Quem sabe o mestre compassivo pode me ajudar a encontrar respostas para a irrespondível questão: por que, Deus, por quê?
Procuro o ônibus da excursão no estacionamento. Inútil: não há ônibus, não haverá respostas. Apenas e para sempre uma dor excruciante na alma, nas carnes, nos ossos desta filha, neta, mãe, avó que sou. Uma mulher envergonhada, desgraçadamente ariana.
A Casa Amarela
Minha casa é pintada por fora de amarelo-manteiga e tem persianas em verde-forte. Por dentro é pintada de branco e o chão é de azulejos vermelhos. E por cima, o céu de um luminoso azul. Lá dentro, posso com efeito viver e respirar e pensar e pintar.*
Vincent Van Gogh - Arles, 1888
Arles. 9h30 marca o relógio da gare. Salto do trem e, em segundos, ganho a rua, um só objetivo em mente, chegar ao número 1 da Avenue de Stalingrad. Sei que aquela que busco não está mais ali. Não importa, permanece viva em minhas memórias de mentirinha. Sei também que se duplicou: são duas, as casas amarelas – a de Vincent e a minha.
Meia hora depois, deixo as margens do Ródano e cruzo a pracinha sombreada. Sento na grama, encostada a um tronco centenário, testemunha dos tempos d’Ela. Observo com reverência a esquina em frente. Ignorando a prosaica cafeteria que hoje ocupa o espaço sagrado, visualizo o pequeno sobrado de paredes amarelo-manteiga, janelas e porta verdes, replicado à exaustão nos quatro cantos do mundo. Cruzo a imaginária porta de um tom verde escuro, subo as escadas com cuidado para não desfazer a magia, chego ao atelier e vislumbro um homem magro, envelhecido, diante de uma tela onde vai surgindo uma casa. Mais adiante saberei que se tratava da última das três versões da Casa Amarela. Não percebe a minha presença, absorto que está, e eu observo, a tinta ainda fresca, uma tela magnífica, onde miríades de estrelas povoam o azul escuro da noite. Outro cavalete expõe o primeiro de seus Girassóis, feito para o mais-que-amigo Paul Gauguin, com quem planeja dividir os dias e criar uma escola de artes neste lugar ideal para viver e respirar e pensar e pintar.
Vincent Van Gogh e eu temos em comum quase nada: além da distância no tempo e no espaço, somos opostos em nacionalidade, gênero, idade, profissão, condição mental e história de vida. Vincent viveu escassos e atormentados 37 anos, e só precisou dez deles para criar 900 telas e 1.100 desenhos de valor inestimável. Eu já passei dos 75 de uma vida anônima, e minhas obras primas somam apenas três: Antônio, Eduardo e Mariana – também de indizível valor, mas sem preço de mercado, felizmente. Cada qual com seus talentos, Vincent e eu.
Ainda que tão diferentes, tenho pelo homem-pintor extraordinário afeto. Talvez porque – em nível mais espiritualizado – tenhamos nos cruzado em outra vida; talvez – mais concretamente – porque, como ele, eu tenha também habitado uma casa amarela. Cercada de cachorros, coelhos, patos, peixes, galinhas, galos e pintinhos, foi nela que inaugurei minha vida. Ali aprendi a amar o bom e o belo – fato que me traria no tempo certo, hoje, a Arles, para partilhar com Vincent os tons terrosos, os azuis profundos, as noites estreladas, as águas do Ródano e os girassóis da Provença.
Mas o que sei é que meu amor por Van Gogh tem a ver com a profunda compaixão que sinto por um homem que viveu no limite das mais doloridas condições mentais e físicas a que um ser pode ser submetido, fazendo delas o motor para uma obra genial e, por isso mesmo, tão humana.
Nesse contexto, a casa amarela de Arles metaforiza a esperança de realização dos desejos que pulsam em todos nós. Van Gogh viveu e morreu tragicamente –
o que não o impediu de deixar um generoso legado de amor pelas cores e pela natureza. Ou seja, pela Vida.