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Capítulos Iniciais

Cidade Cinza

1. O telefonema

Gilberto Fonseca

Enquanto dirigia o carro sob a forte neblina da madrugada, repassei o que havia acontecido.

O telefone tocou logo depois das duas. Normalmente deixo ele desligado, mas depois da quantidade de cerveja que tomei, o telefone era a menor das minhas preocupações. Os toques foram ficando mais altos à medida que eu trocava uma confusão de imagens pela sensação desconfortável de acordar sobre o braço e ainda vestido. Pisquei os olhos e tateei sobre o criado-mudo, derrubando tudo que tinha ali em cima. O celular foi a última coisa que encontrei. Atendi num rosnado.

– Quem é?

Silêncio.

Repeti:

– Quem é?

– Marco? – Voz de mulher.

– Sou eu. Quem tá falando?

– É a Laura.

Minha história com a Laura é tão enrolada que é até difícil de explicar. Por enquanto basta dizer que é algo de que me envergonho muito.

– Oi – não sabia o que falar. Tudo bem?

– Mataram ele, Marco. – Ela estava chorando.

“Ele” era o Alex. Meu melhor amigo no passado e pivô de toda merda com a Laura. Eles tinham casado e, depois do rolo, foram morar numa cidade do interior, 300 quilômetros da capital.

– E você, tá bem?

– Tô segura agora.

– Como aconteceu, Laura?

Ela respirou fundo do outro lado da linha.

– Foi uma cilada, armaram pra cima dele.

No passado tinham armado pra cima de mim também. Gente da delegacia. Fizeram de tudo pra que eu perdesse o distintivo e saísse da corporação sem honra alguma.

– Gente daí? – quis saber.

– Não tenho certeza, Marco. Tem como você vir pra cá?

– Claro. Onde te encontro?

– Te mando a localização por mensagem. Pode vir agora?

– Posso. E o guri? – Eles tinham um filho de poucos anos, dois eu acho.

– Tá comigo.

– Ok. Antes de amanhecer eu chego.

– Obrigada – ela disse, desligando.

Minutos depois recebi o mapa por mensagem.

Tomei um banho gelado, joguei meia dúzia de roupas numa mala e juntei os trocados que me restavam pra gasolina.

Estava no meio do caminho quando a neblina apertou.

Não ia ser fácil reencontrar Laura. Havia ainda cicatrizes profundas em nós dois. Ela devia tá muito desesperada pra ter me ligado. Mas ajudá-la era o mínimo que eu podia fazer. Tinha essa dívida com Alex, pelas merdas do passado.

Faltavam menos de duas horas pra chegar lá.

Uns minutos pro o café não fariam diferença.

2.Um café e um cigarro

Gilberto Fonseca

Um atendente gordo e com cara de poucos amigos me serviu o café. Não quis papo, eu também não insisti. Troquei a xícara por um copo descartável e fui beber no estacionamento, acompanhado de um cigarro.

Fazia frio. Ajustei a gola do casaco e busquei uma área protegida.

Alex estava morto.

Parecia mentira ou, no máximo, um sonho ruim.

O cara foi o primeiro amigo que fiz na academia de polícia, o único que não dava bola pro meu mau humor e ainda se divertia com isso. Era impossível contar a quantidade de vezes que um carregou o outro depois das bebedeiras de fim de semana, também era impossível de calcular as vezes que um cobriu o outro numa briga de bar ou numa abordagem policial. Se havia um cara em quem eu confiava era Alex. Sei que ele também sentia o mesmo. Talvez por isso a porrada por causa da Laura tenha sido tão forte.

Laura entrou em nossas vidas como um furacão. Transferida de outra cidade, começou a fazer parte de nossa equipe pouco depois que nos formamos e fincamos terreno em uma delegacia de homicídios da capital. Ainda lembro do delegado chamando o pessoal pra anunciar que o novo recruta era uma mulher. E bonita. Os ânimos exaltados com a perspectiva de uma alma feminina no nosso ambiente de trabalho foram silenciados com um dedo em riste: “Que ninguém diga uma gracinha pra ela. É filha de um grande amigo meu e minha protegida. Certo?”. Óbvio que isso só serviu pra deixar o pessoal ainda mais excitado e louco pra conhecer a garota.

Laura começou a trabalhar numa segunda. Entrou na delegacia de cabelo preso e óculos escuros. A cara de poucos amigos não escondia o nervosismo que as mãos trêmulas revelavam.

Apresentações feitas, ela foi designada para trabalhar com Alex, no meu lugar. Eu faria dupla com o Gonçalves. Que merda, justo o Gonçalves! Um cara que era alvo da corregedoria vez por outra por abuso de autoridade. O delegado justificou dizendo que confiava em mim pra colocar o cara no rumo certo.

Azar de uns, sorte de outros.

Alex não perdeu tempo e, menos de um mês depois, já engatou o namoro com Laura. A real é que os dois combinavam como dois protagonistas de uma comédia romântica americana.

Meu amigo não me excluiu por culpa do namoro. Pelo contrário, puxou Laura pra dentro da nossa rotina. E ela se adaptou rápido à nossa maneira de ver (e viver) a coisa toda.

Até eu cruzar uma linha que não podia.

Até eu fazer a maior de todas as cagadas.

Terminei o cigarro e o café. Balancei a cabeça pra que a nostalgia e a culpa dessem um tempo. Ainda tinha um caminho pela frente antes de reencontrar Laura e fazer alguma coisa pela memória do Alex.

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