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Contos Iniciais

Bordados do Tempo

Tempo de aconchego

Por alguma razão que não sei explicar, os meses vividos aqui serão apagados de minha memória.

Meu tempo neste pequeno mundo será breve. Assim, aproveito cada minuto precioso. Fito, admirado, meus braços e pernas movendo-se, lentamente, na água doce e quente. Cresço e me fortaleço, dia após dia. Ouço vozes misturadas ao som do vento. De vez em quando, ela fala comigo. Um sussurro suave. Depois sinto sua mão alisando meus joelhos. Então durmo. Muitas horas depois, desperto mais forte e com fome. Sinto cócegas. Então, meu corpo todo balança e treme em um movimento sincronizado de subidas e descidas. Nesta hora, minhas mãos minúsculas cobrem os ouvidos na tentativa de diminuir o ruído metálico e estridente que invade meu mundo. Felizmente, esses terríveis momentos são passageiros. A calmaria retorna gradativamente. Recuperado da náusea e livre do barulho atordoante, relaxo e durmo. Quando acordo, acomodado em meu minúsculo espaço, permaneço horas imóvel, até voltar a sentir o mesmo balanço sincronizado e despertar, novamente, assustado. Assim, em doce rotina, entre tranquilo e perplexo, vivo meus dias.

Hoje, contudo, um som terrífico interrompeu o nauseante passeio. Um petardo metálico e pontiagudo atravessou meu pequeno mundo. O universo inteiro começou a comprimir-se. Rastros vermelhos e finos desceram pela abóboda sobre a minha cabeça. Escorreram pelos meus ombros, enquanto todo o meu corpo tremia. Senti as batidas irregulares de meu coração. Não consegui mais mover braços e pernas. Pude sentir, mesmo sem ver, a poça de sangue contornando o corpo dela e escorrendo pela ruela íngreme. Pude sentir o som de seu coração apagando-se lentamente. Não deveria esquecer jamais essa cena que só pude imaginar. Mas, agora, com os olhos bem abertos para a luz branca da sala de cirurgia, esqueço essa imagem terrível. Esqueço quem eu sou. Esqueço de onde vim. Pendurado pelos pés, movimento todo o meu corpo. Estendo com força os braços. Sinto meus pulmões se inflando. Uma sensação de queda livre. O medo e a insegurança de flutuar no espaço. Estou livre das paredes macias que me abrigaram, mas, também, me aprisionaram. Sei que, hoje, posso voar. Uma curiosidade imediata, pelo novo e desconhecido, toma conta de mim. Não me lembrarei desse momento, mas, agora, diante de tantas emoções desconexas, só consigo chorar. Chorar muito forte. Chorar por mim. Chorar por minha mãe morta. Desejar sua mão macia no meu joelho. Desejar seu abraço impossível. Chorar pelo fim, abrupto e intempestivo, do meu tempo de aconchego.

Tempo de recomeçar

Carla e Catarina trabalhavam com as portas fechadas.

O negócio exigia seriedade e profissionalismo. Até a inauguração, ninguém poderia conhecer o estoque ou a decoração do ambiente. Tudo fora pensado nos mínimos detalhes. Horas de esforço e trabalho conjunto. Nos últimos dias, dedicaram suas tardes à organização da papelada, à confecção de recibos e contratos. Agora, com a documentação pronta, faltava muito pouco para a abertura em grande estilo. O dinheiro, em notas organizadas por tamanho, já estava devidamente colocado no caixa. As roupas, separadas por cores, eram colocadas em ordem.

Enquanto Carla pendurava os vestidos, Catarina dobrava as blusas e pendurava os casacos, por ordem de tamanho. As bijuterias seriam organizadas mais tarde, seguindo uma lógica própria de estilo. As peças coloridas enfeitariam as vestimentas mais discretas. As peças mais discretas, essas seriam deixadas de lado. No canto da loja. As duas não gostavam de nada muito discreto. Queriam um lugar com cores vibrantes. Rosas, amarelos, vermelhos, violetas. Um lugar parecido com um pirulito colorido, com grande pacote de balas de gelatina ou uma festa de aniversário, repleta de balões. A loja seria um recanto de paz e harmonia. De encontro com o lado festivo e alegre da vida. Ali, as clientes, além de boas compras, teriam boas experiências. Sairiam com os bolsos vazios, mas a alma leve, levíssima.

Tudo estava preparado. Carla e Catarina sentaram-se abraçadas. Olhavam com orgulho o interior da loja. As roupas, muito bem dispostas nos cabides. Pequenos vasos, com flores amarelas, foram colocados, estrategicamente, pelos cantos. Uma mesinha lateral, bem decorada, funcionaria como caixa. E um cantinho com biscoitos e chocolate quente iria garantir alguns minutos de pausa para as compradoras indecisas.

O ambiente transpirava paz e harmonia. Harmonia na decoração. Harmonia na combinação das peças e na disposição dos poucos móveis. Era um lugar para circular. Desfilar. Flutuar bela e faceira. Trocar tristezas por roupas bonitas. Vestir, com belos casacos, todas as mágoas e sair dali como uma nova mulher. Renovada e poderosa. Com certeza, as clientes iriam gostar. E voltariam muitas vezes.

A hora tão esperada chegara. Carla e Catarina precisariam combinar um último detalhe. A divisão das tarefas, após a abertura. Uma deveria atender o público, enquanto, a outra, ficaria no caixa e cuidaria das notas e recibos.

- Eu fico no caixa e na gerência.

- Por que, Cacá?

- Ora Cata, porque eu sou a dona da loja!

- Como a dona? A dona sou eu. Você vai atender as clientes. E eu vou oferecer o chocolate e vou ser a gerente do lugar.

- Claro que não! Eu sou a mais velha. Eu tenho que ser a dona e gerente!

- Mas eu trabalhei muito mais, sua boba.

- Vou te mostrar quem é a boba! Sua pirralha!

Neste momento a porta se abriu. A mãe entrou e separou as sócias, que se engalfinhavam pelos cabelos, aos berros. Tentou uma reconciliação e um pedido mútuo de desculpas. Depois de angustiantes segundos, sem sucesso, diante da briga que avançava para beliscões e pontapés, ela recolheu o estoque de casacos, vestidos e bijuterias.

- Tudo volta já para o meu guarda-roupa! Loja fechada!

Quando a mãe saiu, levando todo o estoque, Carla e Catarina sentaram-se no chão do quarto de brinquedos. Esqueceram a briga e olharam, desanimadas, para o negócio desfeito.

- Não fica triste, Cata. Não precisa chorar, maninha. Amanhã a gente abre um supermercado!

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