
Contos Iniciais
Beijo de Goiaba
Beijo de goiaba
Parte I
Foi numa tarde de sol quente e vermelho, de pasto amarelado e dias de ventania, que Mia sentiu o primeiro frio na barriga. Começou a tricotar naquele calor, mesmo que as cortinas ardessem e balançassem com o bafo. Ela gostava do enlace dos pontos, de seus dedos misturarem-se com a lã, com o cheiro. Mais uma carreira, mais uma, outra, e a gola do blusão foi crescendo.
Um dos pontos pegou no cabelo ensolarado de Mia, enroscou-se na trança e cresceu... Sim, o cabelo da jovem foi aumentando, passou pelas laranjeiras do pomar, pela parreira carregada de uvas graúdas, pelo rebanho de ovelhas, a tal ponto de chegar ao galpão onde estava Nino. Entrelaçou-se no pescoço do moço assustado, fez a volta na cintura, apertou tão forte as costelas que o pobre peão ficou quase sem respirar. E o impossível aconteceu. Mia e Nino beijaram-se bem devagar e profundamente, através daquele entrevero de cabelo e lã. Foi um suspiro só. Eles borbulharam como doce de goiaba fervendo no tacho. Vermelhos como maçã do amor, suspensos como suspiros de merengue recém-saídos do forno.
Nino ficou tão assustado que lançou mão da tesoura de tosquia, que estava em cima do banquinho de madeira, e, tremendo por não entender, záz... Cortou aquela trança gigante.
Os dois soltaram o ar juntos. Os olhos se abriram, e a nitidez das imagens voltou. Nino encheu os pulmões e o coração de amor. Mia experimentou pela primeira vez o peito ser maior do que ela, seu coração transbordando pela boca.
O verão foi quente e úmido naquele ano.
Céu pedrento, chuva ou vento
Para Ernesto e Gabriel, meus sobrinhos.
— Doutor! Doutor! Corra!
Nino veio tão rápido que nem parecia ele. As pernas pulavam na frente do corpo e a respiração era mais curta que coice de porco.
— Que foi, homem? — indagou o doutor Braz.
— Ouvi agora no rádio, vem uma tormenta e as ovelhas ainda estão lá no açude tomando água. Se cair raio, já era!
O médico olhou com toda atenção para o céu, como se visse uma barriga aberta, pronta para ser operada, e falou, calmo:
— É. Céu pedrento, chuva ou vento!
E continuou lendo o livro de Cirurgia.
Mal baixou a cabeça e ajeitou os óculos, ouviu um estrondo tão forte que o ensurdeceu por alguns segundos. Olhou de novo pela janela, largou o livro no chão e abriu tanto a boca que caiu o cigarro de palha. Esticou o pescoço e viu uma imagem que jamais esquecerá.
Centenas de ovelhas voavam em círculos no meio de um ciclone violento. A fazenda, que há pouco era verde e florida, transformava-se em novelos de lã gigantes. Era algo nunca visto no sul do Brasil. Voavam, voavam, voavam e eram sugadas como se estivessem na boca de um aspirador.
Nuvens negras e pesadas engoliram todo o rebanho, que sumiu num piscar de olhos. Tudo rápido e rasteiro. Luzia, a mulher do médico, que era professora de piano e dava aula nas escolinhas da região, largou a partitura e veio correndo fechar as janelas e portas da casa. Foi quando viu a última ovelhinha sendo lambida pelo vento e entrando naquela garganta dos infernos. Um quadro assustador.
Depois do acontecido, a família emudeceu por três dias. Os irmãos Piet e Bartolomeu, que estavam na cidade negociando a lã na cooperativa, não presenciaram o evento, mas ouviram no rádio. A notícia se espalhou mais rápido que a luz. Foi o assunto por muito tempo na fazenda e muito longe dali. E esse fenômeno fez o médico lembrar-se de como não somos nada diante da grandiosidade da natureza. E da sua fúria.
Nunca mais criaram ovelhas. Mia nunca mais tricotou com a lã que sobrava da esquila. Os esquiladores nunca mais voltaram. E, até hoje, no céu daquela querência, há um buraco. As tempestades chegam e passam sem deixar cair uma gota. A seca tomou conta, tomou conta de tudo.
Quando a tormenta chega, chuva e vento são certeiros, como notícia ruim.
Os corações da família viraram pedra.