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Capítulos Iniciais

aurum Domini: o ouro das missões

Primeira parte

Os namorados


"Para ser feliz, basta amar."

Castro Alves


1. A tempestade e a melodia

Já era tarde. No horizonte, o sol descambava enchendo de dourados e rosas imprevistos enormes nuvens carregadas de água. A noite prometia tormenta, mas no crepúsculo ainda vigorava um acordo de paz entre a sombra da terra e o luzeiro do céu.

Num bolicho rodeado por três ranchos simples, erguido ao lado de uma figueira de espetaculares dimensões entre o nada e o lugar nenhum, uma guitarra soava. Diante da porta escura, alguns cavalos aguardavam pastando sem pressa ou cochilando descaradamente. Um douradilho chamava a atenção, menos pelos arreios, que eram muito pobres, do que por seu porte, mais alto e forte do que o dos demais. “Não dá para deixar passar uma beleza dessas”, pensou Zeca Ruivo, um rapagão que chegava naquele momento no alto de um zaino. “Vi, gostei, hei de levar”. Apeou, firmou o chiripá na cintura e bateu os tacões bolicho à dentro como se fosse o mandachuva das redondezas.

– Buenas! – anunciou apertando os olhos para acostumar-se a pouca claridade do lugar. Ninguém lhe respondeu. Atrás do único balcão no fundo do aposento onde se espalhavam pequenas mesas quadradas guarnecidas de cadeiras velhas e desconjuntadas, cada uma de diferente altura, largura e assento, um homem tirou da prateleira uma garrafa de líquido cristalino e derramou uma dose econômica num copo, ali onde o recém-chegado costumava apear o cotovelo.

Zeca aproximou-se empurrando o chapéu para trás até ele cair sobre as costas. Encostou-se na madeira ensebada com languidez, empinou a pinga e fez um som de satisfação. Depois voltou-se apoiando os cotovelos na barra e observou os homens que povoavam o bolicho. Três jogavam truco na mesa mais próxima da porta. Conhecia todos; nenhum deles era dono do douradilho. Sentado à direita, dedilhando a guitarra, havia um sujeito que conhecera durante a guerra. À esquerda, dois homens conversavam baixinho. Zeca Ruivo fez um bico, intrigado.

– De quem é o douradilho, lá fora? – indagou com voz potente.

A princípio não obteve resposta. Os homens que conversavam baixinho interromperam-se para fitá-lo. A milonga calou-se. Porém quando o Ruivo ia abrir a boca para repetir a pergunta num tom menos educado, alguém, numa mesa ao lado da entrada, respondeu suavemente:

– O cavalo é meu. Por quê?

Zeca apertou os olhos. Diabos, tinha esquecido da mesa na esquina mais escura do bolicho! Podia perceber alguém ali, mas não podia distinguir-lhe as feições. A voz era desconhecida.

– Ala pucha! É um dos cavalos mais bonitos que já vi na vida! – adulou ele, aproximando-se.

– Obrigado – resmungou o homem, dando o assunto por encerrado. Zeca, porém, tinha outros planos. Ladino, observou:

– Me lembra um potro que me roubaram...

Seguiu-se outro silêncio, ainda mais profundo, carregado de curiosidade. O homem nas sombras apenas resvalou os pés mais para junto da cadeira.

– Era um potro douradilho, com a crina escura, igual a esse... – continuou o Ruivo parando a dois passos da mesa com as mãos na cintura. – Cá entre nós, eu diria que o douradilho é o meu potro...

Os demais clientes acompanhavam o diálogo com um ar francamente interessado. O dono da espelunca esfregava um pano imundo em um mesmo copo, continuamente, os olhos pregados nas costas de Zeca.

O desconhecido nas sombras sorriu deixando ver os dentes muito brancos.

– Seu cavalo? – indagou irônico. – Acho isso muito engraçado, tchê.

Zeca ergueu as sobrancelhas. Chamara o gajo de ladrão e ele não dissera nada? Assim ia ficar muito difícil armar um bochincho, passar a navalha no sujeito e adonar-se do douradilho, plano de simplicidade infalível composto entre a porta e o balcão da casa.

– Meu cavalo, sim. Lembro perfeitamente dele – insistiu.

– Então, foi o senhor que o domou?

Zeca nem titubeou. Orgulhava-se de sua fama de competência no trato com os cavalos:

– Foi.

Um riso sonoro feito bronze, porém curto como o retinir do ferro, cortou o ar enquanto o desconhecido levantou-se e jogou uma moeda para o balconista. Não era alto – era pelo menos uma cabeça mais baixo do que o Ruivo – nem parecia forte. Os cabelos negros e lisos caiam sobre a testa presos por uma vincha. Sobre a camisa de algodão sem botões, um poncho de lã curto, velho e furado, atirado para trás, revelava um corpo de poucas carnes. O chiripá bastante surrado, vestia-o da cintura para baixo, preso nas cadeiras com uma faixa larga e desbotada e, sobre ela, uma boleadeira amarrada um pouco frouxa. Os pés se acomodavam numa bota garrão-de-potro: parte deles estava envolta no couro extraído da coxa de um boi, ainda com algum pelo, amarrado à perna com tiras de couro. Os dedos estavam à mostra, livres.

– Pois façamos o seguinte – propôs o jovem – o senhor vai lá fora e monta o cavalo. Se conseguir manter-se na sela, é seu. Vou-me embora a pé.

– Feito. Vou mostrar para todo mundo que o bicho é meu! – concordou Zeca, pensando que jamais ganhara um cavalo tão bonito, tão facilmente.

– Um momento – resmungou o outro, pousando a mão em seu ombro. – Tem um porém.

Zeca olhou a mão morena, longa, de pele curtida e endurecida pela lida, e franziu o nariz. Encarou o sujeito.

– E qual é o porém?

A sombra o avaliou demoradamente, até por fim, decidir.

– Se o meu cavalo o derrubar, o senhor me dará a sela e os arreios do seu.

Zeca sacudiu os ombros.

– Só isso?

– Vai me pedir desculpas na frente de todo mundo, dizendo que não sou um ladrão, mas que o senhor é manheirão feito cavalo lerdo.

Era uma advertência, mas Zeca simplesmente a ignorou. Fosse outro, teria percebido que havia treta no trato.

– Feito.

O desconhecido estendeu a mão morena e bem feita, na direção da porta, como um convite. Os demais já haviam levantado e seguiam para fora.

– O senhor primeiro – disse o desconhecido.

Ruivo suspirou e saiu, estufando o peito com garbo. O outro o seguiu e só quando chegou lá fora o gaúcho pode ver o rosto do jovem, um mestiço de guarani e branco, a face bem humorada e o sorriso matreiro. Tinha os olhos da cor do campo, muito brilhantes e animados.

– Vamos ver isso – disse o moço, apoiando-se na parede de pau-a-pique do bolicho e cruzando os braços.

Zeca caminhou até o douradilho e puxou as rédeas do galho onde estavam enroladas. O cavalo, que estava pastando, levantou o focinho e olhou para frente, como quem escuta, depois olhou para o dono que permanecia longe e virou o pescoço para verificar quem metera o pé no seu estribo. Quando Zeca deu o impulso para subir na sela, o douradilho deu dois passos para o lado oposto, com as patas de trás. O Ruivo teve de saltar sobre uma só perna, como um saci-pererê, para não cair.

– Diacho – resmungou, começando a compreender. Voltou a tentar; o cavalo voltou a andar. Ficaram nesse andar estranho, como um par em um baile, até o garanhão completar uma volta inteira. Os camaradas do bolicho riam às gargalhadas. Zeca tirou o pé do estribo e secou a testa, fulo da vida.

– Achei que conhecia o cavalo, tchê! – gritou um uruguaio chamado Felipe Sosa.

– E conheço! Mas que culpa eu tenho se esse daí me estragou o bicho? – vociferou Zeca apontando o jovem desconhecido com o queixo. Começava a preocupar-se com seus arreios, que eram novos e estavam em excelente estado. Arreios daquela qualidade, naqueles tempos, não era para se desprezar.

Entretanto, os olhos do guasca luziram e o sorriso dele endureceu. Depois assoviou baixinho e o douradilho levantou a cabeça e as orelhas, atento, olhando-o fixamente.

– Pronto – disse o moço. – Pode montar. Prometo que ele não andará, como antes.

– Quer que eu segure as rédeas? – perguntou Ademar, o dono do bolicho. Nova onda de gargalhadas sacudiu o pessoal. O douradilho olhou para Zeca, como quem pergunta "é para hoje?"

O homem agarrou a sela com mais força do que era preciso. Pôs o pé com firmeza no estribo e ergueu-se. Acomodou-se sobre o bicho com um sorriso de vitória. O cavalo bufou.

– Pronto. Viram? É meu.

E encostou de leve as esporas no flanco do animal.

Foi como abrir as porteiras do inferno. O douradilho deu dois passos para trás, relinchou e empinou. O gaúcho aferrou-se como pode ao bicho, que pousou as patas da frente e escoiceou com violência. Zeca por pouco não voou por cima do pescoço cor de ouro velho, mas então o animal levantou-se de novo e bateu com o pescoço no rosto do homem, que soltou um gemido e levou uma das mãos ao nariz. A outra permaneceu agarrada na crina, mas foi inútil, porque o cavalo começou a corcovear com violência, saltando ora sobre duas patas, ora sobre as quatro, até que Zeca foi arremessado aos pés do mestiço, que assistia a cena sem mover uma pestana. O douradilho deu alguns passos nervoso, sacudindo-se como estivesse com asco, antes de baixar a cabeça outra vez e arrancar um tufo verde do chão. O jovem abaixou-se sobre Zeca, que sentava-se a duras penas.

– O senhor me deve os arreios e as desculpas – disse. – Qual é o seu cavalo?

– Estás bobo se pensas que vou te mostrar o meu zaino! – berrou Zeca, finalmente, puxando a adaga da bainha que levava às costas. Mas o gajo já o havia previsto e antes que o fio o tocasse, saltou por cima do homem e, do outro lado, desvencilhou-se do pala, enrolando-o no antebraço esquerdo.

– Ota lá! – berrou Felipe assustado. – Briga de faca, não!

– Ô Zeca, isso não é coisa de macho! – protestou alguém. – O homem está desarmado.

– Estás vendo algum homem, aqui, ô Cabeçudo? – resmungou o Ruivo, andando em torno do rapaz com um sorriso mau. – Eu só estou vendo um ladrãozito sem-vergonha que, se não der no pé agora mesmo, vai ganhar um talho bem no meio das fuças!

Avançou para o jovem, certo de que seu tamanho e força seriam suficientes para dar-lhe uma lição. O rapaz quase não se moveu: com o braço protegido desviou a faca, enquanto o corpo ágil escapulia por baixo do mesmo braço do adversário e um dos pés passava-lhe uma rasteira. Zeca deu com o nariz no chão e antes que pudesse levantar-se, o pé do homem calcava no pulso que segurava a arma.

– Solta isso – ordenou o mestiço. Toda a suavidade desaparecera de sua voz.

– Ai! – berrou o outro. O pé do moço moveu-se com firmeza sobre a mão e o calcanhar apertou com brutalidade o punho fechado.

– Solta!

Zeca obedeceu. Quase ao mesmo tempo, sentiu a soga áspera da boleadeira contra sua garganta. A soga apertou com brutalidade e obrigou-o a levantar-se, afastando a mão da adaga, para bem de apoiar-se. O jovem chutou a arma longe e, ainda apertando firmemente, ordenou junto da orelha do fulano:

– Agora, pede desculpas.

– Desculpe.

– Mais alto, homem, que os outros não ouviram.

– Desculpe! – berrou o que apanhava.

– Desculpe, o quê?

– Desculpe, o senhor não é ladrão, o cavalo não é meu e eu não tenho nada que ver com isso! – ofegou Zeca, o rosto feito uma beterraba.

– Diga "sou manheirão feito cavalo lerdo" – exigiu o moço.

– Isso não!

A soga sacudiu-se mais para cima, exigente, e o homem quase pôs-se de quatro, mas o rapaz calcou o joelho em suas nádegas, obrigando-o a apoiar-se só nas mãos.

– Tá bom! Tá bom! Sou um manheirão! Me deixa respirar!

O laço afrouxou e Zeca caiu na terra remexida. Os demais riam a mais não poder.

– Finalmente ele reconheceu! – gargalhava Cabeçudo.

O rapaz recolheu a boleadeira e caminhou tranquilamente para o cavalo do perdedor, o único zaino do grupo. Já estava abrindo os arreios para passá-los ao seu animal, quando escutou o som do aço sendo desembainhado. Voltou-se de um átimo com uma das mãos ainda na sela e encarou Ademar, que segurava uma adaga com a ponta quase furando-lhe a pele morena sobre a jugular. O dono do bolicho sorriu calmamente.

– Os arreios do meu amigo ficam. Lamento, mas, sabe como é: o homem é meu cliente, não posso deixar que tu o roubes desse jeito. Agora – retomou num tom frio – pega o teu pingo e some daqui. Não gostamos de confusão e eu não gosto de índio vago.

O jovem o encarou sério, depois com um golpe de vista enxergou os demais levando Zeca para dentro. Na porta ficou apenas o Cabeçudo, ainda rindo, a mão na garrucha que tinha à cintura.

Muy bien. Já que é assim...

Foi tudo muito rápido. De repente, o jovem jogou a cabeça para trás e com a mão solta agarrou o punho com o qual o bodegueiro segurava a adaga. O homem avançou, mas tudo o que conseguiu foi ferir o cavalo de Zeca, que relinchou assustado e escoiceou sem acertar ninguém. O jovem soltou a sela e fez o homem virar-se, torcendo-lhe o braço contra as costas, até que ele gritou e soltou a arma.

– Vai quebrar! – gemeu Ademar e viu que o Cabeçudo apontava o pau de fogo para seu peito.

– Vira isso pra lá! – berrou em seguida. Sem pensar, o jovem mestiço jogou-se com o homem para o chão e o tiro ressoou, espantando os animais. Alguns livraram-se de qualquer maneira e correram sem direção. O rapaz soltou o bolicheiro, agarrou a adaga e correu para alcançar o cavalo de Zeca. Pulou sobre a sela e ganhou a estrada, seguido de longe pelo douradilho. Tiros ressoaram no crepúsculo, mas no meio do entrevero, foi impossível acertar alguma coisa.

– Diabos! – gritava Zeca, como um possesso. – Ainda por cima, roubou o meu cavalo!

Mas não era verdade. Meia hora depois, com a tempestade enchendo o céu, o bicho reapareceu, cabisbaixo, como se envergonhado. Vinha desencilhado e alguém cortara-lhe o rabo bem curto.

Longe dali, com arreios novos e uma sela confortável, o baio douradilho corria a toda brida, debaixo das nuvens ameaçadoras, sob a cachoeira em que o céu se convertera quase de repente. Seu cavaleiro trazia um sorriso de puro prazer brincando nos lábios. Ao invés do Santa Bárbara bendita, abrandai esta tormenta, de sua boca bem feita escapulia uma cançãozinha espevitada que lá pelas tantas falava em trovão e gritaria, de peleias e adagas. Parecia não se importar com a chuva que batia-lhe no rosto com força; chamava-se Francisco Livre. Era 24 de junho e corria o ano de Nosso Senhor de 1846.

Francisco carregava na pele a mescla: era meio branco, meio indígena. Sua mãe fora uma portuguesa pálida e doente e na localidade em que o menino passara a infância a chamavam La Loca. La Loca com seus olhos azuis que de vez em quando mostrava o branco do globo ocular, feito um cão raivoso. Talvez um dia tivesse sido bonita. Talvez um dia tivesse tido o último clarão de lucidez com o filho de dois anos nos braços, enquanto seu homem se perdia na lonjura, contaminado pela loucura do cerco a São Borja, embriagado com a violência da tomada da cidade, aliciado por promessas feitas por algum novo caudilho.

O guarani que era pai da criança, jamais voltou. A solidão e a vida miserável que levou, embruteceram La Loca a tal ponto que tornou-se difícil crer que algum homem, algum dia, tivesse nutrido por ela qualquer desejo ou carinho. A criança de olhos entre o esmeralda e o âmbar que ela arrastava atrás de si, quieta e sorumbática, mal andava, tamanha a fraqueza. Algum vizinho, apiedado pelo estado do menino, roubara-o e o entregara para um padre chamado João na esperança de que se não fosse possível curar-lhe o corpo, que pelo menos morresse com a alma a salvo do Inferno. O padre o abençoou e pendurou em seu pescoço uma cruzinha de madeira num quatro de outubro, dia de São Francisco de Assis.

O menino, uma vez alimentado, recuperou-se e cresceu – era muito mais forte do que parecia. Aprendeu a amar o homem que usava saia como a um pai e em retribuição, mais do que por obrigação religiosa, João ensinou-o a escrever, ler e rezar nos três idiomas que dominava, o português, o latim e o guarani. O espanhol entrou-lhe a Francisco pelos ouvidos. Aos onze anos cavalgava como um adulto e aos treze fugiu, atendendo ao chamado da guerra que desde os inícios do Continente era ventania que visitava o pampa de tempos em tempos. Nos anos que se seguiram, o mestiço aprendeu a jogar, a beber, a lutar e, nos braços das mulheres que seguiam as tropas, tornou-se homem.

Naquela noite que começara com a briga no bolicho, Francisco contava chegar depressa à fazenda mais próxima, cujo proprietário conhecera nos dias de peleia. Servira sob suas ordens, e esperava obter uma boa acolhida, embora não guardasse ilusão: na paz tudo muda. Não a geografia, que por experiência ia encontrando sempre igual – as terras não se revolvem só porque os homens deixam nelas o seu sangue ou desenham em um papel uma nova linha. Mas na paz os homens são diferentes do que na guerra, e ele temia contar com promessas feitas em batalha. O que se jura diante do tiroteio do inimigo, já tinha aprendido, vira esquecimento quando o sol nasce sem o repicar da artilharia.

Ainda assim, o rapaz contava com o próprio temporal para ter boa acolhida. Essa esperança, que podia representar um futuro imediato auspicioso em uma boa fazenda, fez com que ignorasse a igreja que surgiu junto à estrada depois de uma curva, e a casa do pároco, que de certo não lhe negaria abrigo com aquele tempo que fazia. Em uma hora, ainda debaixo de chuva, bateu palmas na entrada do galpão da grande casa que era a sede da fazenda que buscava. A pouco mais de meio caminho entre a casa e o galpão, perto dos currais, jazia uma pequena carroça escura. Ficou olhando, pensando em qualquer coisa que não vinha ao caso, até que a tramela da porta se abriu.


***


Meia hora antes do cavaleiro apear, a carroça de toldo escuro parara diante da casa grande. Uma mulher gorda e bonachona saiu pela porta da frente e adiantou-se pela área de tijolinhos, escondendo as longas tranças sob um xale de lã escura.

– Meu Deus, que chuva! Pensei que não chegariam! – ela gritou para o cocheiro. O homem sorriu contrafeito e saltou da carlinga para o chão, respingando lama para os lados.

– Ordens do patrão, dona Leonor – disse como se isso explicasse tudo, o cansaço dos cavalos, o barro até o pescoço, as goteiras que o chapéu de couro e abas curtas formava sobre os ombros, uma de cada lado, encharcando a roupa como se não bastasse o que Deus mandava do céu. Estendeu a mão para dentro da carroça, para ajudar seu passageiro a descer. Gesto inútil. O corpo envolto por roupas de luto não se moveu; os olhos perdidos naquele pampa remoto onde lhe tinham confinado, o ignoraram.

– Por favor, querida, vamos entrar – suplicou dona Leonor a quem o frio e a umidade atacavam a bronquite. – Tem um chá quentinho e pinhão à espera na cozinha.

O ranger das saias foi como um suspiro. A moça emersa nelas arrastou-se para fora da carroça ignorando o peão, orgulho e timidez no mesmo gesto esquivo. Era uma moça pálida, de olheiras tão profundas e tronco tão fino que dona Leonor julgou-a incapaz de suportar por muito o peso do abrigo molhado, como se fosse quebrar feito algo muito frágil. A dona da casa alvoroçou-se, convencida de sua missão de boa anfitriã.

– Vamos, vamos entrando. Tire os sapatos, querida, e ponha os chinelos – chilreou ao mesmo tempo em que agradecia a Santo Antônio o fato de o filho, Bruno, não ter retornado ainda. Como poderia esperar casá-lo com alguém tão mirrado? Desse jeito, a neta do velho Josias vai levar a melhor, aquela uma, nascida fora do casamento, pensou Leonor sacudindo a cabeça, contrafeita.

A moça entrou feito uma sombra no corredor gelado que varava a grande casa de estilo português. À direita, um grande lampião iluminava o passadiço; à esquerda, um cabide simples, de onde pendiam ponchos escuros e empoeirados. Mais adiante, perto do primeiro lance de uma escada que tomava metade do corredor e ocultava parte da porta dos fundos, bem diante da porta da frente, havia um console de mau gosto, sobre o qual um alegre vaso de palmas-de-santa-rita escondia um espelho feio e velho, que pouca serventia tinha. A moça tirou o capote, com gestos automáticos, exibindo um vestido negro e liso que lhe caía frouxo pelo talhe emagrecido. Suas mãos descansaram sobre a saia e ela olhou ao redor inexpressivamente, enquanto cumprimentava a mulher com uma reverência breve. Por um momento, dona Leonor cogitou seriamente esquecer a ideia de casá-la com Bruno e mandá-la diretamente para um convento. Parecia doente.

No silêncio constrangido que se seguiu, tamborilou a água nos meandros das calhas. Dona Leonor pegou o lampião e avançou pelo corredor, sem olhar para trás, temendo, quem sabe, que a moça pálida tomasse ares de assombração. Limitou-se a prestar atenção nos passos dela, e só voltou-se quando chegou à cozinha, um salão separado da casa por um corredor secundário que se abria à direita, e desde onde exercia com sobriedade seu poder de patroa. O aposento era quente, limpo e acolhedor, o chão forrado de tijolos de barro, vermelhos e lisos de tanto escovar. A moça parada junto à porta até ganhou um certo rosado tímido nas bochechas. Seus olhos caíram sobre a vidraça molhada.

– Chove muito, por aqui? – perguntou, rouca.

– Não, Adélia, querida – respondeu dona Leonor com um sorriso contrafeito. Uma vez no centro do seu reinado, refazia-se rapidamente. Da moça não viera nenhum gesto, nenhuma palavra de agradecimento. Seria preciso ensinar-lhe boas maneiras! Permitindo-se ser paciente, a mulher completou, afetando alegria: – No verão é muito bonito.

– Bom... – sussurrou Adélia deixando a mão de ave de rapina pairar no ar, em meio a um gesto. Depois, como que desistiu. A mão caiu pesadamente de volta à saia

Sobre o fogão de barro, descansando na chapa de ferro negro, um bule esquentava. Na borda de barro uma chaleira fumegava ao lado de uma cuia de chimarrão. Adélia sentou-se num banco ao lado da janela, quieta. Recusou o chá e o pinhão. Mas o amargo veio em boa hora.

Assistiu desde o banco à chegada de um cavaleiro, ouvindo sem prestar atenção o palavreado simplório e incansável de Leonor que fluía ao redor da grande mesa acinzentada, no meio do aposento, que punha para o jantar. Respondia com "sim" e "não" às perguntas da mulher, como se as ideias estivessem muito longe.

Quando já estava quase se esgotando o repertório de histórias e ditados da dona da casa, seuAdriano chegou. Homem alto, de barbas brancas, que cavalgava feito um jovem, o dono da Fazenda dos Quatro Baios chegava de Muringa de Sant’Ana, vila com designação de cidade, onde fora para saber notícias de Bruno. Semana sim e outra também, fizesse sol ou chuva, como se via, o dono da Quatro Baios ia até Muringa em busca de notícias do filho que partira para a guerra com ele, mas ainda não voltara.

Adriano, que era o padrinho de Adélia, apertou-lhe a mão rudemente, sorrindo, com um dente de ouro à mostra. Fez-lhe várias perguntas sobre a viagem, quis saber se já comera alguma coisa. A moça respondeu às indagações num fio de voz, os olhos baixos, coisa que ele apreciou por demais, porque interpretou como mostra de humildade e não como a humilhação de que se sentia alvo Adélia ao ter de demonstrar aos desconhecidos que a acolhiam uma gratidão que estava longe de sentir. Terminado o assunto com a afilhada, Adriano sentou-se à mesa e sorriu para Leonor contando que parara por um instante no bolicho do compadre Antenor, onde tinham lhe contado uma história divertida sobre um sujeito a quem Zeca Ruivo tentara roubar o cavalo e por quem terminara despilchado. A mulher, ouviu com atenção e sacudiu a cabeça com um sorriso contrafeito. Zeca Ruivo era seu afilhado, meio aparentado com uma cunhada sua. Tinha má fama mas não era mau sujeito. "Só um pouco aruá", costumava desculpá-lo Maricota, a cunhada. Leonor achava que "aruá" era elogio, mas gostava do rapaz. Sentou-se diante do marido enquanto ouvia a história.

Um inesperado estremecimento sacudiu Adélia junto do fogão, vendo os dois ali sentados. A lembrança irrompeu na realidade e o tempo voltou.

Sentados sob o lampião, um defronte ao outro, a mesa da cozinha pelo meio, um homem e uma mulher conversavam. A mulher era a mãe dela. O homem, um desconhecido chegado de última hora. Se tivesse sabido quem era, se tivesse sabido..

Alguém bateu à porta trazendo-a de chofre de volta ao presente: aquela não era a sua casa, que ardera feito uma fogueira depois que o assassino fugira. Aturdida, a moça ofegou achando a cozinha quente e abafada demais, os velhos gritos ainda arranhando sua garganta como se fossem de agora a pouco.

Adriano foi abrir. Dona Leonor levantou-se e pôs-se coar o café, que já ia atrasado. Uma rajada de ar úmido e fresco soprou pelo aposento e do outro lado da soleira soou a voz de um dos peões:

– Patrão, tem um cariboca aqui. Diz que conhece o senhor. Se chama Francisco.

– Manda passar – ordenou Adriano. Ouviram-se passos arrastando-se feito um par de baile e então o mestiço entrou na cozinha.

– Ora, viva, se não é o Livre! – bradou surpreso e satisfeito o dono da fazenda. – Agora começo a compreender a história que ouvi lá no bolicho!

– Tenente! – cumprimentou o moço com uma inclinação de cabeça.

– Deixa-te disso, Chico, a guerra acabou.

E, voltando-se para a esposa:

– Busca a cana que este daqui merece um trago!

– E quem é? – perguntou ela curiosa, pregando os olhos no rosto do caboclo.

– Um amigo, um soldado – disse o velho voltando-se para o recém-chegado. – Entra, entra, conta-me as novidades, tchê!

– São tão poucas... – comentou Chico com um meneio de cabeça.

– Quando chegaste? Já comeste algo?

– Lá pelas seis horas, penso eu – respondeu o moço. – Me ofereceram um pedaço de charque no galpão, agradecido.

– No meio da chuva! – admirou-se dona Leonor pondo diante dos dois homens copos e uma garrafa. Adélia, que ainda não saíra do canto da janela, fitava com frieza o jovem, que agora inclinava-se levemente para a senhora do patrão. Ele correu os olhos pela grande cozinha e só então deteve-se nela, pensando que fosse um anguera[DP1] , um fantasma, desses de que andam cheias as casas do campo. Quando viu que era moça de carne e osso, Adélia erguera-se constrangida.

– Ah, esta é minha afilhada, Adélia Dias Fonseca – apressou-se Adriano.

Chico baixou um pouco a cabeça, limitando pelo susto. Adélia respondeu num gesto seco que o deixou ainda mais vexado.

– Francisco Livre, à suas ordens – falou ele. Adélia viu os olhos verdes abarcando toda sua figura, admirado e respeitoso como se estivesse diante de uma mártir. Sua boquinha apertou-se cruelmente e ela voltou-se para o fogão, dando-lhe as costas, bruscamente. Ficou a coar o café, quase imóvel, numa economia de movimentos de assustar, confundindo-se com as sombras da cozinha.

Chico, por sua vez, sentou-se e, voltando-se para Adriano relatou várias peripécias, comentando a sorte de dois ou três conhecidos comuns. Não eram notícias muito animadoras, e pelo menos uma delas terminava em sangue. Comeram um prato de carreteiro e beberam mais dois dedos de cana. Depois ficou decidido que Chico permaneceria na fazenda ajudando na lida do campo, preço e atividade acertados em poucas palavras. Terminada a conversa, beberam ainda uma xícara de café puro e, por fim, o mestiço despediu-se de todos respeitoso e animado, e saiu para a noite escura e chuvosa, deixando na cozinha um estranho vazio.

Com um gesto de preguiça, o chefe da casa dirigiu-se à escada e subiu para o quarto; meia hora depois, as duas mulheres seguiram pelo mesmo caminho, silenciosas. Dona Leonor deixou Adélia no fundo do corredor escuro, à porta de um quarto. Nele havia uma única e minúscula janela que dava para os fundos da casa. Debaixo dela havia um baú, coberto de almofadas. Uns poucos vestidos da moça, chegados no dia anterior, jaziam no armário de madeira que tinha, entre as portas, um espelho de corpo inteiro. Havia ainda uma cômoda e um tamborete. Adélia ficou parada no meio do aposento caiado de branco, olhando para a cama, a mais curta e alta cama que já vira na vida. Passados alguns instantes, trocou de roupa com movimentos mecânicos, pôs um xale sobre os ombros e parou junto da janela, fitando o pouco escuro que se podia ver.

Perguntava-se porque não conseguia chorar. Era como uma falta de piedade que a envergonhava profundamente, mas desde que vira a mãe morrendo a seus pés, o assassino avançando para ela de faca em punho, fechara seus olhos às lágrimas. Não chorara no velório, o corpo sentado firme e ereto na cadeira desconfortável, o rosto duro e impassível diante dos soluços, dos abraços de vizinhos e conhecidos. Do enterro quase não lembrava, como se fosse algo que tivesse acontecido há muito, muito tempo. Mas talvez fosse a soma disso tudo que gerasse a dor brutal em sua alma, a dor que a impedia de ter paz, que lhe afugentava o sono e, quando dormia, a mergulhava em pesadelos repetidos. Acordava com a garganta apertada e dolorida, o coração batendo descompassado, o cheiro de madeira queimada penetrando em suas narinas. Talvez por isso pensasse tão constantemente na morte.

Se ao menos pudesse fazer alguma coisa! Se não fosse mulher, se tivesse o poder e o direito que tinham os homens de armar-se, montar em um cavalo e sair em busca do assassino! Ia encontrá-lo no pardieiro em que estivesse, sem medo algum. O traria à luz. Exigiria justiça. E a Justiça seria feita, que para isso, sempre lhe dizia seu pai, haviam sustentado uma guerra por tanto tempo. Se Adélia não fosse mulher, poderia deitar a cabeça em uma pedra que fosse, que dormiria bem.

Suspirou, como o fazia todas as noites tentando resignar-se à vida que lhe coubera, sabendo que na manhã seguinte encontraria outro dia de ânsia, pavor e raiva. Mas, talvez, pelo menos naquela noite, com o corpo moído pela viagem, em um quarto estranho e impessoal, conseguisse, enfim, dormir sem sonho algum. Afastou as cobertas da cama, tirou o xale pensativamente e com um sopro, apagou o lampião.

A chuva intermitente prosseguiu por alguns dias. Fora da janela o mundo era de lama cinzenta, ainda que a cozinha de dona Leonor fosse sempre quente e limpa. O aposento era habitado principalmente pelas duas criadas negras, antigas mucamas, que todas as manhãs emergiam do minúsculo quarto que dividiam nos fundos da cozinha e passavam o dia inteiro varrendo e esfregando o chão. Rosana e Madalena eram apressadas, boas cozinheiras e grandes faladeiras. Contrastavam: a primeira de formas arredondadas e a segunda magra como um fiapo.

À princípio, Adélia não compartilhava da companhia delas. Tomou por hábito vagar pelos grandes aposentos quadrados e melancólicos como se não existisse, ou enrijecer-se de frio na área da frente da casa. Não era difícil encontrá-la a fitar incansavelmente um dos muitos vasos que enfeitavam as mesas cuidadosamente polidas. Nada a animava e sentia que a vida se esvaía como água sobre pedra.

"Esta também é uma maneira de morrer," pensava às vezes. Mas não reagia, como se o pensamento nada mais fosse do que um brinquedo de palavras.

Houve uma manhã, entretanto, em que viu-se sozinha diante de um piano que havia em uma das salas da frente. As outras mulheres estavam fora e tudo estava estranhamente quieto. Adélia sentou-se no banco, acariciou o teclado que mais parecia um sorriso. Apertou uma tecla, que tiniu a corda em alto e bom som. Com um sobressalto, a moça tirou a mão do teclado e pisou na surdina, permanecendo imóvel. Depois, ainda com o pé no pedal, seus dedos correram sobre as teclas e o instrumento soou numa melodia sofrida como a dor que lhe ia pela alma. Era um pouco surpreendente que ainda recordasse alguma da música que sua mãe a fizera aprender nas tardes quentes de verão, mas prosseguiu com aquilo até que as mãos se recolheram ao regaço e voltou à sua imobilidade, perdida em lembranças.

À suas costas, perto da janela, uma sombra acompanhava a cena com um ar intrigado. Já correra boa parte do pampa e nunca vira ser mais tristonho do que aquele que fazia o piano chorar. Por quê? Em todos os lugares por onde já andara, as moças tinham as faces afogueadas, os olhos cheios de promessas proibidas e desejos que não confessavam nem a si mesmas. Mas aquela... os olhos pareciam dois lumes apagados, as faces, duas rosas murchas. O verdume do olhar do caboclo luziu curioso, mas nenhuma resposta acudiu às suas perguntas. Também imóvel, mas de uma imobilidade de natureza diferente, Chico esperou que os passos da moça tivessem se afastado do salão para, só então, seguir seu caminho.

Então, finalmente, em uma madrugada serena, o sol apontou e as nuvens rolaram para longe. Límpido, o céu azul estendeu-se sobre o campo, anunciando frio e assegurando bom tempo.

Quando viu a manhã clara estender-se sobre as coxilhas, Chico exultou. Andava cabisbaixo e mal-humorado nos últimos dias, tudo por não poder sair à livre andança pela fazenda de Adriano e nem a companhia do velho Quirino tinha ajudado a melhorar seu humor. Quirino era o sogro de Adriano, o temido pai de Leonor, que um dia tivera o prazer de ver tremer sob seu olhar o dono da Quatro Baios. Impunha respeito por seus cabelos brancos, a vasta experiência e a cicatriz medonha do rosto, herança de uma refrega que lhe custara metade da maçã esquerda. Faltavam-lhe dois dedos na mão direita, o que não o impedia de dedilhar a guitarra e saber tudo quanto era canção de sem-vergonhice e se havia no mundo uma única coisa que realmente o prostrava, era o reumatismo que atacava de vez em quando. Não gostava da casa grande e preferia a companhia da peonada, com quem convivia no galpão, no bolicho de Antenor e no rancho próprio, ao sabor dos humores de sua mulher, uma indígena chamada Sapucaia. Se andava ela de bem com o marido, fazia o prato predileto dele, servia-lhe o mate com zelo de filha, deitava-se com ele com ares de amante – coisa que o velho contava, mas de que a peonada duvidava. Mas se por acaso cismava a Sapucaia que seu homem tivesse andado com alguma china do bolicho, punha-o para fora de casa com o que tivesse à mão: vassoura da palha, chaleira de ferro, gamela, banquinho de três pés, prato de madeira. Só não tocava no violão e na cuia, que tudo tinha limites e até ela sabia disso.

No início dessas manias Quirino chegara a revidar e dera-lhe uma surra de deixá-la deitada. Mal pudera andar, a mulher se fora com os três filhos pequenos para junto de sua gente e de lá só voltou quando o velho a foi buscar. Nova surra e nova fuga – desta vez para a igreja, de onde só saiu com a promessa do marido feita ao padre de que nunca mais encostaria a mão nela se não fosse para fazer-lhe carinho. Agora Quirino se acostumara: se a esposa se enfurecia, vinha ele passar uma temporada na fazenda do genro que promessa feita a padre era coisa de se respeitar por todos os tempos. Laus' sus-Chris.

Pois era esse o caso naqueles dias. Mal Chico pôs os pés dentro do galpão ao chegar, o velho deitou-lhe o olho e o tomou por bom sujeito. Em breve fizeram-se amigos, trocando causos, cantigas maliciosas e receitas de remédios campeiros. Desafiado para uma trova, Chico, mau pajador que era, sem cabeça para rimas, cantou e perdeu. Rendeu-se: somou-se aos peões que adoravam Quirino, riu ao saber que as criadas tinham-lhe medo, compreendeu que Adriano o respeitava como a um pai e suspeitou que se dona Leonor pudesse varrer o velho e sua esposa da face da Terra, não hesitaria em fazê-lo.

Além da zanga de Sapucaia, havia outra razão para que Quirino se mantivesse próximo à casa grande: a jovem Adélia. Desde que a notícia de sua chegada se espalhara pela criadagem da fazenda, o gaúcho rondava a cozinha com um palheiro apagado nos lábios, tentando descobrir o que se escondia por trás da chegada inesperada da afilhada de seu genro. Mas foi no bolicho das chinas, a poucos quilômetros da igreja comandada com mão de ferro por aquele arremedo de revolucionário uruguaio, o padre Ramiro – o mesmo que o mantivera durante horas em um banquinho cocho ouvindo um sermão sobre a felicidade no casamento – que Quirino conseguiu notícias confiáveis. Dizia-se lá que a tal Adélia, moça de boa família, ficara órfã por causa de uma refrega entre seu pai e um guasca numa questão de dinheiro. Dizia-se que era bonita. E, o que era pior, dizia-se que sua vinda era invenção de dona Leonor, que pedira ao marido para ser bondoso e trazer a afilhada órfã para viver em uma casa decente, coisa que não passava do justo cumprimento de sua tarefa como padrinho.

Ora, Quirino conhecia sua primogênita bem o bastante para saber que piedade não era uma das coisas que moviam a vida de Leonor. Não havia nenhuma boa razão para que ela se interessasse pela sorte de uma desconhecida, a menos que a desconhecida em questão fosse um bom partido. E um bom partido para Leonor era um bom nome, uma ascendência impecável. Pouco lhe importava o resto.

A orfandade súbita de Adélia vinha a calhar para os planos da mulher – mas opunha-se formalmente aos que Quirino tecera ao longo dos anos. Ora, Quirino tinha um camarada, Josias, cujas terras lindavam com as suas e as de Adriano. Ao longo dos anos, as cercas entre as propriedades dos dois homens haviam mudado de lugar inúmeras vezes, conquistando terras aqui e acolá, contendas que se resolviam na paz, com churrascos e trovas. Se Josias havia herdado uma pequena fortuna por parte da mulher, o que lhe permitia viver em uma bela casa, Quirino havia sabido conservar as terras herdadas do pai e aumentá-las um tanto. Josias amargava uma viuvez cheia de saudade. Quirino, cultivava mulheres como outros mantém um jardim – apenas Sapucaia, nos últimos anos, é que tinha sabido mantê-lo atrelado a seus braços numa exclusividade que o velho não tinha conhecido até então. A amizade dos dois homens passara pelas rivalidades da juventude e sobrevivera a todas.

Das disputas da mocidade para os acordos da madureza. Quirino sonhara em ver sua primogênita casada com Tadeu, o filho único do velho Josias, porém a morte levara o jovem antes que os dois homens pudessem concretizar seu sonho. Felizmente, para os planos dos velhos, Tadeu tivera uma filha natural antes de morrer e o avô se apressara em reconhecê-la. Paula, uma moça faceira e de boa figura crescera com os parentes da cidade antes de vir morar na fazenda do avô. De seu lado Leonor casara-se com o então jovem vizinho Adriano, e com ele gerara um filho, Bruno.

Os dois velhos faziam planos para o futuro, planos que resumiam-se em casar os dois netos e reunir as três propriedades numa só. Tudo ia muito bem. Adriano fora consultado logo depois de voltar da guerra, enquanto ainda recuperava-se de um ferimento, e concordara com o projeto. Mas então... então o compadre de Adriano morrera lá no distante Vale do Sinos, e Leonor, numa demonstração inédita de piedade, exigira que a menina, filha única, sozinha no mundo, viesse morar na fazenda.

A tarefa que Quirino se impusera era a de conhecer e observar a moça para que ele e Josias pudessem traçar um plano de ataque. No início não ficara preocupado. Paula era uma moça de formas generosas, os cabelos de cor indefinível e os olhos brilhantes. Quando sorria aquecia o próprio sol, dizia-se Quirino, conhecedor que era do gênero feminino. A magreza da recém chegada, seu ar tristonho e humilde não seriam páreo para a graça da outra. Começou a duvidar que o neto fosse se interessar por aquela coisa mirrada e cabisbaixa, que rondava silenciosamente os aposentos da casa grande, por mais que Leonor o quisesse. Já ia dando o caso por solucionado, acreditando que tudo se resumiria a falar muito claro com a neta do vizinho, quando, certa manhã de geada cruzara com Adélia, que carregava um balde grande demais para seus braços finos. Ela mal levantara os olhos e ele estaqueara, intrigado. Voltou-se. A moça avançou para a bomba manual de água e pôs o balde debaixo do cano. Pôs as mãos na cintura e olhou muito séria para a manivela e a grossa camada de gelo que impedia a sua utilização.

Quirino apoiou-se na parede do galpão e pôs-se a enrolar um palheiro, calmamente. A moça voltou para a cozinha a passos largos e dali retornou com uma chaleira fumegante. Derramou um pouco de água quente sobre o ferro coberto de gelo e aguardou. Repetiu o movimento. Como na terceira vez o gelo ainda teimasse em apegar-se ao metal, chutou o cano com toda força. Depois, derramou o que restava da água quente na bomba e agarrou a manivela. Quirino apertou os olhos. Sabia por experiência própria que o objeto era recalcitrante no inverno. Havia dias que até mesmo os homens tinham de fazer força para movê-la, e ficou curioso para ver se a moça conseguiria algo. Acendeu o cigarro.

A princípio, Adélia não conseguiu nada. Mas depois calcou toda a força que tinha e a raiva que a acompanhava desde vários dias e tanto pressionou que o objeto, por fim, cedeu. Com poucas subidas e decidas a água jorrou no balde até à borda. Tão decidida quanto antes, a moça pegou a alça com uma mão e a chaleira com a outra e deu alguns passos aos trancos.

Súbito, como que saído do nada, um dos peões, um gajo chamado Manuel, veio dos fundos do galpão e fez um gesto para ajudá-la. A moça afastou-o com um aceno impaciente.

– Pode deixar, o mais difícil eu já fiz – ela disse com a voz rouca. Caminhou até onde estava o velho, pelo caminho menos embarrado, e passou por ele quase sem levantar os olhos.

– Buenas, dona Adélia – cumprimentou o homem levando os dedos à aba do chapéu.

– Bom dia – ela disse num ofego e levantou-lhe os olhos, azuis feito águas-marinhas. A boca, generosa, apertava-se, rósea. As faces sempre pálidas, estava coloridas pelo esforço, contrastando com a testa alva e os cabelos negros, presos em tranças. Quando ela sumiu na porta da cozinha o gaúcho, impressionado pela força do olhar azul, perguntou-se que flor desabrocharia quando aquele corpo mirrado estivesse acostumado com o trabalho na fazenda e quando o sol do campo tivesse devolvido-lhe as cores originais.

– Tenho que ver o compadre – resmungou para si, sugando o palheiro, irritado.

Então, quando o sol finalmente surgiu, Quirino pôs-se a selar o cavalo. Estava pensando no que diria a Josias quando Chico apareceu no galpão, disposto, assoviando uma melodia qualquer.

– Vai sair? – perguntou Quirino ao vê-lo dobrar um suador extra.

– Me disseram para ir ver uma porteira que as vacas romperam na invernada ao leste depois do capão. Vosmecê sabe onde fica?

– Invernada leste, depois do capão? É perto da minha casa. Posso acompanhá-lo, dom cacique? – provocou o velho.

Chico lançou-lhe um olhar e sorriu.

– Ô, seu Quirino, o senhor sabe que eu não gosto que me chame assim...

– Bueno, desculpe. Só pensava em ter uma companhia, já que estou indo para aqueles lados.

Riu, satisfeito, e Chico, abanando a cabeça, concordou. Saíram meia hora depois. Fazia frio. O mais jovem ia alegre, pensando que agora sua sela, ainda úmida, ia poder secar sob o sol e que ele poderia andar pelo campo sem incomodar-se com o poncho pesado de água. Com a boleadeira à cinta, a adaga roubada presa às costas e o laço na sela, trotava no douradilho ao lado do velho que mastigava um palheiro apagado e perguntava-se o que deveria fazer para livrar-se da morena.

Na estrada diante da sede da fazenda, o moço refreou o cavalo, como quem vê assombração. Quirino percebeu o movimento e fitou Chico por baixo do chapéu. Deu com uma mirada indefinível. Seguiu-lhe o rastro, acabou na moça magra e triste que ameaçava seus planos, parada na varanda, fitando o horizonte. O velho mastigou algo entredentes, levou a mão ao chapéu.

– Bom dia, menina dona Adélia – disse num sorriso que fazia as crianças fugirem de medo.

– Bom dia – respondeu ela de um jeito ainda mais soturno do que seu silêncio.

Os cavalos seguiram pela estrada e Chico ainda virou a cabeça uma última vez espiando a jovem que continuava com os olhos fixos na linha das coxilhas distantes.

– Sabe quem é ela? – perguntou o velho interessado por demais na resposta.

– É a afilhada do patrão – resmungou Francisco. Quirino repuxou a boca.

– Parece adoentada.

– É magrinha. Parece que vai quebrar – soprou o moço. O velho, que não tirava a vista dele, estreitou os olhos e quase sorriu. Caramba, disse para seus adentros, mas como não pensei nisso antes? E como não o vira até então? Quantos e quantos dias percebera Chico rondando a casa, inclusive naquela tarde em que tinham ouvido o piano? Coisa do demo aquela visagem... a música abafada do instrumento e o guasca parado na varanda, o pala pingando, o olhar fixo no aposento, feito passarinho diante da cobra. Quirino chegara a ter um arrepio.

– Mas tem gente no galpão que está falando em outra coisa – continuou o moço num ofego, como se obrigado a falar.

– Que coisa?

– Ah, sei lá. Coisa de alma penada, bruxa...

O velho sorriu, divertido.

– Vai ver, o que ela precisa é de um grinfo para se alegrar.

O moço voltou-se para ele, o rosto quente de vergonha.

Seu Quirino! – admirou-se, zangado. O velho cuspiu de lado.

– Tô para ver prenda que não se alegre com a atenção de paisano. Mas aqui, nessas lonjuras, como é que a moça vai ouvir uma prosa? – o velho lançou sua isca.

Chico voltou a encarar a estrada sem ousar olhar para o lado.


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