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Contos Iniciais

A Vida Disfarçada de Contos – 2ª edição

SAMBA DA MEIA HORA

— Não vale ficar ciscando no baralho, irmão. Meteu a mão no bolo, tem que comprar! — protestou Valença.

O jogo de pife corria solto no boteco da dona Elvira praticamente todas as tardes no Morro de Villares. Sempre a dinheiro. Enquanto bebericava sua cervejinha, Bebeto Valença esperava confiante a chegada de um valete pra bater aquela rodada. De qualquer naipe. A parceria se reunia ali não só pela jogatina, mas também para atualizar a conversa. 

O ritual seguia um protocolo: comprar no baralho, revistar a mesa com os olhos sem levantar a cabeça; se a carta servisse, era encaixada no jogo que estava na mão, se não, era descarregada no bolo. Assim a roda ia girando, um a um tendo a oportunidade de armar seu bote.

— Bati! — surpreendeu Montanha, que até então estava quieto, sem dar qualquer indício de que estava pifado. — Podem pagar o pai aqui! — ordenou animado, chamando a grana com um abre e fecha da mão direita espalmada pra cima.

Enquanto recebiam as cartas para a próxima rodada, avistaram ao longe a chegada de Carlinhos Madrugada, que vinha num balanço sem pressa, assobiando em direção à mesa. 

“O que que essa figura tá fazendo aqui a essa hora?”, se perguntou Valença, repartindo o olhar entre o baralho e a rua.

Não fazia muito que Bebeto Valença havia assumido como presidente da Acadêmicos do Império Novo, nomeado sem eleição pelo grupo que, por anos, havia comandado a escola. A ideia era trazer sangue novo para recuperar os bons tempos e dar fim às rivalidades políticas internas. Bebeto era um confesso aprendiz, recém-chegado ao mundo do samba. Mesmo morando há pouco em Villares, havia rapidamente conquistado a comunidade com seu jeito simples. Dizia-se que era um homem de grandes soluções. Gente de confiança. Isso o fez presidente. Dedicava seu tempo entre a administração de sua mecânica e o comando da escola de samba com a qual ainda buscava se familiarizar. Sua oficina era completa. Motor, elétrica, chapeação e pintura. Mesmo sem meter a mão na graxa, tinha fama de entender de tudo um pouco e não cobrar preços salgados. Fazia sucesso entre os bacanas da Zona Sul que o procuravam para restauração de carros antigos.

Depois de interromper sua caminhada para falar com amigos, Carlinhos Madrugada chegou à mesa de jogo. Sempre bem trajado, vestia uma moderna camisa estampada, calça e sapatos brancos. No rosto, um destacado óculos de sol do qual não se separava nem mesmo nos dias nublados. No peito, uma requintada corrente de ouro com a medalha de Nossa Senhora. Um relógio brilhante que fazia par com um vistoso anel de bispo completava o quadro. Era vaidoso o Madrugada. E não era pra menos. Era o puxador de samba da escola e cantor profissional na noite carioca.

— Fala, Valença! Tudo numa boa? Quando terminar aí, vou querer bater um papo contigo, meu velho. Vou dar um alô pra dona Elvira e comer um pastelzinho. Depois volto aqui.

Carlinhos Madrugada havia se criado no Morro de Villares. Ali aprendeu tudo que sabia de samba. E não era pouco. Depois de começar na bateria ainda menino, foi logo possuído pelo sonho de cantar pela escola. Não faltava a ensaios nem às feijoadas dominicais. Antes mesmo de engrossar a voz, já era visto pra cima e pra baixo nas vielas do morro, carregando seu rádio gravador. No estéreo de bom tamanho não tocava funk, música americana, essas coisas. Ali era só samba. Era sempre o primeiro a decorar o enredo das principais escolas. Mangueira, Portela, Salgueiro. Sabia todos. Assim, o menino Madrugada ficou na espreita. Municiado de todo o repertório imaginável, montou campana em todos os festejos até o dia que lhe jogaram o microfone do barracão nas mãos: “Vai aquecendo a bateria até a chegada do velho Clemêncio”, experiente puxador a quem sucederia mais cedo do que imaginava.

Soltou seu gogó de frangote, ainda sem a afinação que anos depois o consagraria. Na hora todos souberam que aquele balanço, aquele canto ritmado e aquele sorriso seriam o futuro da Acadêmicos do Império Novo. Três ou quatro carnavais depois, ele já era o número um na cantoria da escola.

— Bebeto, tu sabe que te considero. Não porque tu é o novo manda-chuva por aqui, mas porque tu é do bem. Trabalhador. Não gosto de me meter na política da escola, mas ano que vem já tem eleição — prosseguiu Madrugada em meio a tragadas que intercalava com a descarga das cinzas do cigarro no pequeno pires na mesa à sua frente.

— Tô ligado, Madrugada — intercedeu Valença. — Já sei até que aquele otário do Álvaro Miguel anda arrotando pra todo mundo por aí que quer ser presidente. Deixa ele.

Montanha acompanhava a conversa sem dar um pio. Fazia sim com a cabeça pra tudo que o presidente falava.

Valença, antecipando as reclamações que poderiam vir, se justificava ao Madrugada prometendo que já esse ano faria um desfile forte, coisa bonita. Pra encantar a Sapucaí. Anunciou que supervisionaria pessoalmente a compra de material para as fantasias, tudo coisa de primeira. Disse estar de olho numa costureira que andava insatisfeita em Padre Miguel, descoberta pelos veteranos da escola.

— Tudo isso é justo, mas não é suficiente, Bebeto — interrompeu Madrugada, para em seguida baixar os óculos do rosto e decretar com fala pausada. — Precisamos de um samba. Samba! É isso que vai fazer a roda girar. Um samba de qualidade, pra quebrar tudo! E vou te dar o caminho mastigado, Valença. O caminho das pedras...

Relembrou então o samba que havia embalado o carnaval de 1993 e levado a Acadêmicos do Império Novo ao título. 

“A Verdadeira História do Amor e da Morte” tornou-se um clássico na voz de Clemêncio. Um tesouro de letra e melodia que passou a ser entoado pelas quadras no Brasil inteiro e cantada em todos os festejos de carnaval.

— Tu era um pirralho e nem sonhava em vir pra esse morro, quanto mais ser presidente, Bebeto. Mas aquilo fez toda diferença, meu velho. A ala dos compositores hoje é fraca, parceiro. Ficam só tomando cachaça, se revezando na composição de coisa comum, repetida. Faz horas que tô no bico neles. Cada ano um assina o enredo. Um pior que outro. A escola precisa achar outro caminho. E eu, Valença — 

prosseguiu Carlinhos Madrugada —, eu tenho um nome a zelar. Na noite e na música. Quero gravar um disco! Daí tem que sair um samba-enredo que preste.

— E quem escreveu aquele samba de 93? — quis saber Valença depois de tomar mais um gole de cerveja.

— Cirano – respondeu Madrugada de bate-pronto.

— E onde anda esse cara? Ainda é vivo? – perguntou 

o presidente.

Silêncio.

Montanha era o submisso braço-direito de Bebeto Valença, a quem prestava fidelidade canina sem pedir nada em troca, assim como havia servido às diretorias anteriores. Se mantinha na panelinha muito mais pela ausência de alguém melhor do que por méritos próprios.

— Tô falando contigo, Montanha! Responde, ô infeliz! 

O baixinho atrapalhado era um camarada de pouca iniciativa, que só se mexia se a presidência desse o comando. Tinha calafrios quando passava por sua cabeça a perspectiva de perder as mordomias e o prestígio de fazer parte da turma da diretoria. Vivia daquelas migalhas. Um trago, uma boca-livre, uma festa.

Lembrou da tarde vazia em que chegou para morar no Morro de Villares sem conhecer ninguém, tendo alugado um modesto barraco de peça única onde passou a viver. Lembrou do tempo que não tinha dinheiro pra tomar cerveja no barracão, quando descobriu que, se ajudasse a subir os instrumentos pro palco, poderia comer e beber da graça. Montanha despertou de sua hipnose para responder ao chefe.

— Lembro desse cara, o tal Cirano. Uma figura meio estranha. Tá vivo, mas não mora mais aqui no morro. Pelo que soube, vive em Madureira.

— Então o que tu tá esperando? Procura esse homem por lá, diz que quero falar com ele — sentenciou Bebeto enquanto mirava Madrugada em olhar que pedia aprovação.

A autoria do samba mais famoso da Acadêmicos do Império Novo havia conferido prestígio a Cirano. Fazia anos que não aparecia no pedaço. Nas raras vezes que voltou a Villares, foi recebido como autoridade, especialmente entre os mais velhos. Posava de intelectual, sempre carregando um livro ou jornal. Perguntado se faria um novo samba para o carnaval, afirmava que tinha muitas ideias alinhavadas, mas que no momento estava se dedicando a escrever poesias. Dizia que tinha convites de gente importante para gravar suas músicas inéditas. Tudo mentira.

A verdade é que Cirano tinha uma vida medíocre. Vivia de uma aposentadoria por invalidez que havia conseguido sob condições muito suspeitas. Falava-se que teria amputado de propósito o dedo indicador que lhe faltava na mão esquerda no tempo que trabalhava como servente de pedreiro na construção civil. Acordava sempre tarde. Não negava convite pra comparecer em rodas de samba onde não raramente era anunciado como o grande compositor Cirano, autor de “A Verdadeira História do Amor e da Morte”. Até discurso de agradecimento chegava a dar algumas vezes.

Lugar de gente pobre e trabalhadora, Madureira não é um bairro pequeno. Muito antes disso. É grande. Munido apenas de algumas notícias de que Cirano estaria morando por lá, Montanha rumou à sua procura escoltado por mais dois comparsas. Vencido pela preguiça de fazer uma investigação mais aprofundada, confiava na intuição de que não seria difícil achar Cirano. Foi assim que, perguntando pra um, falando com outro — especialmente nos botecos mais conhecidos —, recebeu a informação que buscava.

— Ele mora na Serrinha, vem pouco aqui pra baixo. Vai lá e pergunta pelo nome dele que tu encontra fácil — confirmou um taxista que jogava palito à sombra de uma árvore enquanto esperava sua vez na fila pelo próximo passageiro.

O endereço que conseguiu levou Montanha e seus camaradas a uma ruela simples. Na última casa, de paredes descascadas e encravada num terreno em que o mato já tomava conta, morava Cirano.

Atendendo a palmas e chamados da comitiva, o compositor surgiu surpreso na frente de casa. Montanha então explicou as razões da sua visita e comunicou o pedido de Bebeto Valença.

— A diretoria conta muito contigo. Tamo precisando que tu faça um samba de qualidade pra nossa escola. Tu é o melhor! Lá dentro já tem uma pressão de gente dizendo que, se não vier um enredo e um desfile de respeito, o Bebeto vai perder a presidência...

— E mais a mais tem o Carlinhos Madrugada, que tu deve lembrar. Era um guri no teu tempo, mas agora tá cantando uma enormidade e merece coisa boa. Merece um sambão daqueles antigos. Tu já fez uma vez, vai fazer de novo! — O tom dos capangas liderados por Montanha soava como uma espécie de ameaça velada que vinha travestida de convite.

Cirano fugiu do compromisso como o diabo foge da cruz. Não queria de jeito nenhum aceitar a missão. Saltou pra um lado, correu pro outro. Ensaboado, argumentou, mentiu, tentou de tudo. Foi quando Montanha engrossou, finalizando a conversa com um ultimato, dizendo que voltariam em quinze dias no mesmo horário para recolher a encomenda e ai dele que não viesse com coisa boa. Montanha deixou o número de seu telefone para qualquer emergência.

Na comunidade de Villares logo se espalhou o boato de que Bebeto Valença havia chegado a um acordo com o famoso Cirano, que faria um samba épico para o carnaval daquele ano. A esperança pairava no ar.

Enquanto isso, o desafeto do presidente, Álvaro Miguel, botava lenha na fogueira dizendo que só vendo pra crer. Ligou até para Carlinhos Madrugada pra fazer pressão.

— Fala, Carlinhos! Cara, fica tranquilo que, se a escola não for bem esse ano, eu te asseguro que, quando eu for presidente, tudo vai melhorar. Vou te arrumar um samba de qualidade, meu chapa. Não essa porcariada que eles têm dado pra ti cantar.

Álvaro Miguel, que tinha a confessa ambição de ser presidente da escola, havia sido amigo de primeira hora quando Bebeto Valença chegou ao morro. Amigão. Se tornaram parceiros de farras e trago.

Tudo vinha bem até que uma desavença explodiu. E por um motivo previsível: mulher. Disputaram à foice o coração de Solange, a magnífica porta-bandeira da escola que — depois vieram a saber — traía ambos ao mesmo tempo e acabou não ficando com nenhum. Constrangida com a revelação, Solange anunciou que não desfilaria mais pela escola.

Nas noites que se seguiram à missão de Montanha em Madureira, Carlinhos Madrugada decidiu que cantaria um repertório só com sambas consagrados no bar em que se apresentava no Leblon. Em sua cabeça passava a certeza de que, se Cirano acertasse o enredo, seria meio caminho andado para sua consagração.

“Carlinhos Madrugada canta os clássicos: Cartola, Jamelão, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e outros – ingressos limitados”, mandou divulgar.

Foi um sucesso. A casa lotou todas as noites.

Até que, no intervalo de um dos shows, apareceu por lá Valdirene, segunda ex-mulher de Madrugada. Procurou o dono do bar, a quem apresentou um ofício onde um juiz determinava que Madrugada pagasse imediatamente a pensão dos filhos, sob pena de cadeia. Ruidosa e sem papas na língua, Valdirene queria levar na hora o cachê daquela noite.

— Esse patife anda todo engomadinho e perfumado, mas não paga nem a comida das crianças! Quem vê até pensa! Sem vergonha!

Só saiu do bar depois de acertar com Madrugada que levaria a metade do cachê e a promessa de que, na outra semana, poderia voltar pra buscar uma nova carga.

Enquanto isso, apavorado com a pressão por fazer um novo samba que fosse épico e temendo pela destruição de toda a reputação que sustentava sua vida, Cirano começou a perder as noites de sono. Sufocado em suas alternativas, foi a uma loja de livros usados no centro da cidade. Lá chegando, pediu ao atendente que lhe trouxesse tudo que tivesse sobre sambas-enredo antigos. Não era muita coisa, mas comprou o que tinha — algo como três ou quatro revistas, folhetins e cadernos — e voltou pra casa. Assustado com a velocidade que os dias passavam, Cirano pegou um velho bloco de notas e escreveu o que lhe veio à cabeça sem muita ordem nem definição. Copiou trechos inteiros de sambas antigos, invertendo frases e mudando uma palavra que outra. Tamborilava na mesa da cozinha mal iluminada em angustiada busca por alguma melodia, alguma inspiração divina, algo que minimamente pudesse ser visto como um samba-enredo. Escreveu uma página. As engrenagens da sua cabeça rodavam uma estratégia de sobrevivência: “Apresento um samba lá na escola. Se não gostarem, não é culpa minha. É escolha deles”.

Ligou pro Montanha um dia antes do prazo marcado dizendo que tinha concluído o samba.

— Combinado, Cirano. Sabia que podia confiar em ti, irmão. Tenho certeza que tu fez uma maravilha. Vamos fazer o seguinte: sexta-feira, às seis da tarde, é o prazo para entrega dos sambas. O teu vai ser escolhido, já tá tudo certo. Então passa antes ali no boteco da Elvira que vamos estar no nosso carteado de sempre. Tu nos apresenta o bagulho e resolvemos essa parada.

Aflito, Cirano concordou com a combinação. Dedicou ainda os últimos momentos para dar mais uma ajeitada no samba que iria apresentar e foi pra cama mais cedo. Sonhou com demônios.

No dia seguinte, na hora ajustada, chegou a Villares. Dentro de uma castigada pasta de couro, carregava um amontoado de papéis mal ordenados e um livrinho para compor o perfil de intelectual. “Seja o que Deus quiser...” foi a última coisa que passou em sua cabeça amedrontada antes de sentar no bar da dona Elvira.

Era um tabuleiro ampliado, formado pela junção de três mesas menores, sobre as quais se estendia uma toalha branca que era incomum em dias de jogatina. Era fácil perceber que o ambiente iria receber um encontro especial. Terminada a última rodada de pife, recolhidas as apostas, Montanha pediu pra Elvira dar uma ajeitada na mesa. Copos e cinzeiros foram recolhidos. Os convidados que ainda estavam de pé foram sentando, um a um.

Bebeto Valença ocupava a cabeceira. Ao lado dele, Carlinhos Madrugada em trajes de apresentação. Mais adiante, Montanha, que não escondia o orgulho de ter, segundo sua crença, cumprido com perfeição as ordens do presidente. Ao grupo se somavam três integrantes da ala dos compositores, além de um magrelo que segurava um cavaquinho com delicadeza contra o peito e um moreno que vigiava o pandeiro que descansava à sua frente.

— Então tu é o famoso Cirano? Muito prazer! Bem que me avisaram que não seria fácil tirar esse gato da toca! — provocou Valença bem-humorado para fazer a mesa cair em gargalhada.

Depois de breves comentários protocolares, aproveitando o primeiro vazio que se apresentou na conversa, o presiden-

te ordenou:

— Tudo contigo. Hora do show!

Cirano então tirou a papelada da pasta e a depositou cuidadosamente sobre a mesa. Tentou aplicar a lorota de que aquilo havia sido resultado de uma pesquisa de anos, com muita leitura e reflexão. Que agradecia a oportunidade e confiava no sucesso do enredo para a Acadêmicos do Império Novo. Antes de terminar, ainda lembrou de puxar o saco de Bebeto Valença dizendo que havia tomado conhecimento que ele tinha futuro, que seria um grande presidente e blá blá blá. E apresentou sua criação.

Parte lendo, parte cantarolando com sua voz anasalada, fazia breves paradas sucedidas de sinais para que o cavaquinho o acompanhasse e o pandeiro encontrasse o tempo de entrada entre os versos.

Não deve ter durado mais do que dois minutos o percurso para terminar o roteiro da sua obra.

Fez-se o silêncio.

Nada. Nenhum pio na mesa além do ruído das pessoas se ajeitando nas cadeiras de metal. Ao fundo se podia ouvir o latido despreocupado dos cachorros que andavam pela rua revirando lixo. Até que veio a sentença:

— Que merda é essa, Cirano? Tu tá de palhaçada, compadre?

Bebeto Valença sintetizou com duas frases o sentimento de toda a mesa. Em meio a um aglomerado de vozes que agora se sentiam autorizadas a protestar simultaneamente sem que se pudesse distinguir a autoria, o samba foi destruído sem piedade. Após desqualificar Cirano dos pés à cabeça, Valença gritou clamando por silêncio, dando uma bordoada na mesa para engatar seu discurso.

— Como tu faz um samba bonito daqueles e agora me vem com essa imundícia, Cirano? Como? — vociferou, abrindo os braços em sinal de intimação.

Sem respostas e parecendo conformado com sua impotência, Cirano baixou a cabeça e começou a guardar a papelada em meio ao burburinho dos sambistas.

Um ônibus quase vazio dobrou a esquina chacoalhando seu esqueleto no pavimento irregular. Um menino cruzou a calçada pedalando apressado uma bicicleta grande pro seu tamanho. Latidos.

Foi então que, acuado e tremendo como um cão sarnento, prestes a ter um colapso nervoso, Cirano reuniu os últimos vestígios de sua dignidade e, num impulso, decidiu confessar.

— Aquele samba não era meu. Eu roubei, comprei, copiei, nem sei bem direito. Mas não fui eu que fiz. Foi o Toninho.

Diante de uma plateia incrédula, Cirano desembuchou. Contou o segredo que estava entalado na sua garganta havia mais de vinte anos. Com riqueza de detalhes, revelou a farsa que havia montado com o aval do legítimo autor de “A Verdadeira História do Amor e da Morte”.

Toninho era um carpinteiro desinteressado com quem Cirano havia trabalhado na reforma da mansão de Madame Zuleica, uma viúva rica que morava em Botafogo. Sobre ela pairavam histórias de que gostava de rapaz novo. Também havia comentários de que ela teria matado o marido por envenenamento ao servir-lhe diariamente doses generosas de vidro moído misturado com a comida. Rezava a lenda que ela era uma cozinheira genial, capaz de produzir pratos irresistíveis. Tal sistemática teria destruído o aparelho digestivo da vítima de quem Zuleica era a única herdeira. O boato é que ela teria um caso com um jovem policial do IML a quem havia subornado para que nada fosse levado ao laudo de autópsia. Marido morto, Madame Zuleica teria passado a praticar seu esporte favorito, agora com liberdade: namorar.

— E o que tem a ver o tal Toninho? — a mesa perguntou.

Cirano contou então que Toninho era um Zé Ninguém que gostava de passar bem. Mas não era muito chegado ao trabalho pesado. Um detalhe central: Toninho era bonito. Com seus vinte e poucos anos na época, chegava pra trabalhar na obra como se fosse para um baile. Era um alemão de corpo esguio e pele bronzeada, dentes parelhos e cabeleira lisa que usava em estilo franjado.

Ocorre que, além de descansado para o trabalho, Toninho era viciado em jogar dominó na obra, o que fazia sempre a dinheiro. Jogava nos intervalos e até ficava depois do serviço para dar mais uma jogadinha. Era um perde e ganha dos infernos. Nem sempre a conta era paga, sendo empurrada pra outro dia, pra outra semana. Nesse ponto da história, Cirano se gabou de ser bom no dominó. E explicou que Toninho havia acumulado uma dívida de jogo com ele.

Mais ou menos por essa época, Madame Zuleica, que volta e meia passava na obra para dar algumas instruções, botou os olhos em Toninho. Gamou na hora. Sem cerimônia, convidou o belo carpinteiro para passear no Leblon, comer em restaurantes da moda, coisa e tal. Toninho começou a faltar ao serviço, tendo sido em seguida nomeado pela Madame como encarregado de fiscalizar a reforma em Botafogo. Não precisou de muito tempo para se converter em braço direito para todos os assuntos da patroa, que tinha lá seus trinta anos a mais do que o loiro de cabelos lisos.

— Porra! A história está sensacional, mas e o samba? — perguntou Carlinhos Madrugada, que acompanhava hipnotizado a narrativa de Cirano.

— É! E o samba? — reforçou Montanha. — E o samba?

— Calma. Agora que vem o melhor.

O impostor contou que, dentre as conversas que tinha com Toninho na hora do almoço, ficou sabendo que ele gostava de samba. E que gostava de compor.

— Eu escrevo meus sambinhas mais é pra tentar me dar bem com a mulherada. E tu sabe que cola? — relatou ter dito o jovem carpinteiro.

O fato é que, com Toninho namorando a viúva, depois de muito cobrar a dívida do dominó, Cirano sentiu que estava prestes a ver seu crédito virar pó. E aí teve a ideia. Quando soube que a Acadêmicos do Império Novo pagaria uma generosa premiação pelos direitos autorais do samba que fosse escolhido para o desfile da escola, não teve dúvidas e propôs o negócio a Toninho.

— Seguinte, meu velho. Vamos fazer um trato. Tu me escreve um destes teus sambas e eu apresento lá na escola como se fosse meu. Se ganhar, tá perdoada a dívida e não se fala mais nisso. Mas me apresenta coisa que preste, um samba maneiro — clamou Cirano.

Toninho topou na hora e, na semana seguinte, cumpriu sua parte do acordo, entregando letra e música de “A Verdadeira História do Amor e da Morte”. O resto da aventura todos sabemos no que deu. O samba se tornou um clássico, Cirano ficou famoso e navegou o resto da vida no embalo daquela farsa.

— E a viúva? E o Toninho? — perguntou Bebeto Valença, agora encantado com a incrível história que acabara de ouvir.

— Nunca mais vi. Lembro apenas que, depois da reforma, a Madame Zuleica vendeu a mansão e desapareceu do mapa com o Toninho. Parece que se casaram e foram morar nos esteites, onde dizem, a coroa morreu e deixou tudo pra ele. Mas essa parte da história eu não confirmo, só ouvi dizer.

Quando terminou de confessar os meandros da farsa, Cirano notou que a mesa havia ficado em silêncio, consumida pelo incrível roteiro que ele acabava de revelar. Foi quando Valença mostrou-se genial, atestando numa tacada só todas as virtudes que o haviam levado a se tornar presidente da escola.

— Rapaziada, esse é o enredo. Essa é a aventura que vamos contar! Tem paixão, jogo, dinheiro, ganância, amor e morte! Tem tudo! — gritou eufórico. — Vamos fazer essa brincadeira, divertir as pessoas sem firulas com uma crônica do cotidiano, do nosso tempo, dos nossos dias! Verdadeira! Eu quero todo mundo lá na sala da ala dos compositores agora! Chamem todos. Esse ano não tem disputa! Essa história que o Cirano acabou de contar nos últimos trinta minutos é o que vamos levar pra avenida, “A Verdade Sobre a Verdadeira História do Amor e da Morte” — comandou a mesa sob efusivos aplausos. — E tem que ser agora, pra não perder o fio da meada! Vocês têm meia hora! Meia hora! — sentenciou Bebeto Valença para delírio de todos.

Cirano e os compositores se trancafiaram a escrever, o que fizeram de forma frenética. Até o lixo que Cirano havia apresentado emprestou algumas palavras. O cavaco encaixando os acordes, o pandeiro marcando o compasso, Carlinhos Madrugada ajustando o tom. Os versos foram surgindo, se completando. O samba ficou lindo. Tudo em meia hora.


Levou meu samba... (levou meu samba!)

Lá deixei meu coração (meu coração!)

A verdade escondida,

Dominó, jogo da vida

Toda morte é ilusão (ilusão!)

Levou meu samba...


A comunidade de Villares se envolveu como há muito não se via em volta de um enredo. O samba tinha tudo: letra, melodia, refrão. A costureira trazida de Padre Miguel fez um trabalho primoroso, e as fantasias ficaram sensacionais.

Diante do clima de alegria que se espalhou no morro, 

os veteranos da escola promoveram a reconciliação entre Bebeto Valença e Álvaro Miguel, que, juntos, clamaram à Solange para que ela voltasse a desfilar. A porta-bandeira não resistiu aos apelos e fez o desfile mais fabuloso de sua vida ao lado do mestre-sala, arrebatando uma inquestionável nota dez.

Comissão de frente e ala das baianas impecáveis. Embalada pelo ritmo de uma bateria que enlouquecia a arquibancada da Sapucaí, a voz de Carlinhos Madrugada ecoou pelo Rio de Janeiro e pelo mundo afora. Enfim ele era um astro. Poucos vibraram como Valdirene, enquanto, emocionada, confessava às amigas que no fundo ainda era loucamente apaixonada pelo ex-marido.

Felicidade. É o que dizem que sempre acontece, quando o samba vem do fundo do coração. Acadêmicos do Império Novo campeã, não tinha como ser diferente.

AS QUATRO ESTAÇÕES

Primavera


Se havia uma mulher que poderia namorar um cara mais velho sem que, por isso, fosse alvo de comentários inoportunos, essa era Jéssica. Jamais se teve notícias de que sua passagem ao lado de Gonçalo tivesse sido submetida a quaisquer julgamentos ou olhares condenatórios. A personalidade resoluta que a todos impactava era coisa que vinha já de menina, não se sabe bem desde quando.

Na família contavam-se inúmeras histórias. Numa delas, estavam todos na praia. Mães enterradas em óculos escuros esticadas nas esteiras e pais reclamando do governo enquanto bebiam cerveja protegidos pelo guarda-sol. Ao lado, Jéssica erguia um caprichado castelinho de areia, devidamente assessorada pelos primos, que iam lhe entregando apetrechos como baldinhos e pazinhas. A cena lembrava uma cirurgia, onde o médico operava o paciente enquanto a equipe de apoio ia alcançando instrumentos, calibrando a iluminação. O trabalho só foi interrompido pela buzina que anunciava a chegada de um carrinho da Kibon, logo cercado pela criançada. Eram cinco, quase todos da mesma idade. Quando o sorveteiro, castigado pela incidência do sol de quase meio-dia, abriu a tampa do baú e a fumaça do gelo seco se dissipou, a realidade foi revelada. Só havia quatro picolés. No ato, sem que ninguém lhe perguntasse, Jéssica, que então contava sete anos, proclamou sem pestanejar:

— Se não tem picolé pra todos, não tem pra ninguém! 

Chegado o tempo do vestibular, ela contrariou solenemente os apelos e chantagens da mãe para que desse seguimento à carreira do pai na advocacia. Jéssica avisou que cursaria Arquitetura. A mãe, com quem tinha uma relação pautada pela frieza, até tentou repreendê-la. O resmungo entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Enquanto isso, o pai, Luís Paulo, não deu a mínima pelota para a aparente desobediência. Mais ainda: renovou seu orgulho pela firmeza da personalidade.

— É isso, minha amada. Segue o teu coração que tu vai longe!

E foi mesmo. Não muito depois da formatura, seu nome virou sinônimo de projetos arrojados e de bom gosto em Porto Alegre.

O fato é que Jéssica pouco conhecia qualquer coisa que não fosse o triunfo em sua vida. O que ela mirava, o que ela queria, ia lá e — pimba! — conseguia. Mais cedo que a maioria, ela fez questão de começar a trabalhar, o que lhe permitiu ganhar experiência e grana para gastos extras nem sempre acessíveis a quem está em começo de carreira. Sem recusar o apoio financeiro da família, assim que pôde, alugou um apartamento e foi morar sozinha no Bom Fim. Adorava programas culturais, teatro e cinema europeu. Foi numa dessas que conheceu Gonçalo.

As amigas de Jéssica gostavam de circular em pontos badalados de Porto Alegre, como bares e cafés do Moinhos de Vento. Eram lugares que ela também frequentava com desenvoltura, mas sem perder a oportunidade de arrastar a turma para o ambiente mais cosmopolita da Cidade Baixa.

— Vocês não podem ser tão pati! Sigam meus passos e eu lhes mostrarei o mundo! — falava com bom humor.

Num final de tarde de primavera, foram ao Shopping Nova Olaria assistir a um filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar.

Depois da sessão, elas se acomodaram num bar ao lado do chafariz que fica no pátio do shopping. Não muito depois, Gonçalo chegou. Ao sentar-se numa mesa próxima, esticou os olhos lhes dirigindo um cordial boa noite. Foi solenemente esnobado. Mas manteve o radar ligado enquanto bebericava uma taça de vinho branco.

Ao ouvir as amigas se perguntando onde teria sido gravada a marcante cena do encontro nas escadarias de pedras, ágil como uma águia, Gonçalo meteu o bico.

— Talvez seja em Montjuic, um dos mais incríveis lugares da arquitetura de Barcelona.

Pronto. Numa frase ele fisgou a atenção de Jéssica.

Algum tempo depois, ela haveria de confessar que teve dúvidas se o que a havia feito dar atenção para a conversa teria sido o gancho da arquitetura ou a personalidade dele ao beber vinho num lugar onde todo mundo pede chope. É que Jéssica era louca por vinho branco, um dos tantos ensinamentos da avó.

O cinquentão comandava uma agência de publicidade recheada de gente jovem e criativa, o que o tornava uma figura com traquejo em lidar com gerações mais novas. Além de ser um camarada leve e culto, ele estava sempre atualizado com os papos, modas e lugares do momento. Gonçalo tinha uma aparência comum. Namorador confesso, ele se sentia abençoado pela calvície tê-lo atingido numa época em que raspar a cabeça era sinal de personalidade. Usava uma barbinha rala pontuada por alguns fios brancos milimetricamente distribuídos no rosto, o que deixava claro que a idade vinha chegando, ainda que sem aparentar muita pressa. Gonçalo era um tipo notadamente charmoso, que se comunicava bem e não tinha o menor problema em fazer piada do casamento desastrado contraído por impulso, do qual havia se livrado há muitos anos.

— Esse não casa mais... — era comum ouvir os amigos dizerem, alguns sem disfarçar uma ponta de inveja.

Foi esse conjunto de coisas que assaltou o coraçãozinho aparentemente amadurecido da vitoriosa Jéssica, que — à época do início do romance — era trinta anos mais jovem. Tudo muito rápido, talvez até apressado a olhares mais conservadores.

E foi bonito de ver toda aquela alegria. Era impossível não notar a explosiva combinação do casal. A irrequieta jovialidade de Gonçalo completava a maturidade de Jéssica na plenitude do seu frescor primaveril. Era como o arroz e o feijão. Não era incomum ele querer ficar até mais tarde perambulando pela rua enquanto ela preferia a calmaria de casa. Na maioria das vezes, ele preferia o Parcão e ela, a Redenção; ele, o salmão, e ela, o filé com queijo. Ele era mais da direita, ela preferia a esquerda, mas não consumiam tempo nenhum com isso. Ele era das palavras e ela dos cálculos, mas um não deixava de dar pitaco nas ideias do outro. Enfim, essa misturada disforme era o que fazia a engrenagem andar. Viajaram de ônibus a Floripa, fazendo palavras cruzadas, quando poderiam ter ido de avião; saltaram de asa delta em Nova Petrópolis sem antes ter agendado com o instrutor; comeram pipoca na Padre Chagas caminhando de chinelos de dedo, ao lado de casais que passeavam de mãos dadas desfilando seus trajes bacanas; tomaram champanhe no Marinha do Brasil, quando ali a regra era o chimarrão ou a água mineral sem gás. Durante algum tempo, essa ausência de protocolos e cronogramas funcionou como um relógio.

Até que Jéssica foi traída pelo excesso de segurança e inaugurou uma era de implicâncias desnecessárias, fundada no pensamento instrumental e arquitetônico de que o amor deveria ser como todas as coisas em sua vida: precisava de uma ordem.

No começo, Gonçalo achava graça e não retrucava, na certeza de que era coisa da idade e não da personalidade. Até que um dia se pegaram num debate bobo sobre quem era melhor: Lennon ou McCartney. A conversa descambou para uma lógica em que o importante deixou de ser a ideia em si, mas sim quem ia preponderar no assunto. Ele se assustou. A bolinha de neve não foi contida e o que era pontual virou regra. Cutucadas gratuitas, ranços repetidos. A ficha caiu. Era personalidade.

Como ninguém é obrigado a ser apaixonado para sempre, foi numa manhã de terça-feira que Gonçalo procurou Jéssica pra dizer que não queria mais continuar a história. Tranquilo e leve como a brisa da primavera, ele reafirmou que ela era inteligente, linda e repleta de virtudes. Entre um gole e outro de café, comentou que talvez ela merecesse um camarada melhor, mais impetuoso e menos relaxado, mais quadradinho e não tão dado ao improviso.

— Um cara mais jovem! — ele falou sorrindo. Enfim, ele terminou.

Jéssica foi apresentada ao até então desconhecido sentimento de perda. Aprendeu que não poderia ter tudo que queria. E Gonçalo havia sido, como nada antes em sua vida, tudo que ela mais queria. A paulada foi forte e soterrou Jéssica numa pesarosa depressão.

Julgando-se invencível em seus anseios, foi nessa época que ela descobriu não ter tantas amigas leais quanto imaginava. Em meio a essas ausências, decidiu tentar enfrentar a tempestade sozinha. Não conseguiu. Foi quando resolveu dar uma passada na casa da mãe sem avisar.

— Que linda surpresa, meu bem — comentou Estela ao abrir a porta do apartamento finamente decorado em que vivia na companhia de dois gatos, um melhor cuidado do que o outro. Recebeu a filha com três beijinhos protocolares, sem abraço.

Estela tinha pouco mais de quarenta anos. Tanto naquele dia quanto em qualquer outro, estava arrumada como quem chegava para uma festa ou evento social, mesmo que fosse ficar em casa. Era mais bonita que a filha e mantinha a silhueta em forma à base de exercícios na academia, onde cumpria com determinação as ordens de seu personal trainer. A beleza havia sido uma espécie de carma na vida de Estela, cuja principal ocupação diária era se corroer em dúvidas sobre as razões do fracasso de seu casamento com o pai de Jéssica. Tinha clareza que sua lindeza havia sido a armadilha fatal através da qual tinha conquistado Luis Paulo, figura opaca de uma tradicional família de Porto Alegre. Mas também desconfiava que havia sido a fonte do seu infortúnio, pois temia ter servido de molde a uma personalidade viciada no paparico e no recebimento de homenagens vazias e futilidades terrenas. Só que essa autocrítica — se é que se pode dizer assim — era algo que ela admitia apenas no seu íntimo e não compartilhava com ninguém. Para o mundo externo, professava que o marido havia sido um canalha que a havia abandonado em favor da primeira paixão efêmera que surgiu. E mais: não restringia seu rancor apenas ao ex-marido. Em seus protestos, apregoava contra o gênero masculino como um todo, que, ao privilegiar o alicerce das relações mais na beleza do que no caráter, seria responsável pelo fracasso do seu e de outros tantos casamentos frustrados.

Depois de folhear apressada o caderno de variedades da Zero Hora para mostrar à Jéssica o encarte com um artigo de uma amiga comentando o declínio dos cafés coloniais em Gramado, ela serviu um chazinho. Em seguida, se acomodaram nas confortáveis poltronas descarregando as xicrinhas na mesa de centro da sala, elegantemente ornamentada por um colorido tapete oriental e quadros emoldurados na parede. Tudo de muito bom gosto. Jéssica odiava aquelas formalidades.

A mãe, ainda que há muito conformada com sua incapacidade de estabelecer uma proximidade com a filha, não teve dificuldade para notar que algo estava errado.

— O que tu tem, guria? Parece que viu um fantasma.

Jéssica relutou, disse que não era nada, que era impressão dela, tentou desviar o assunto perguntando o que teria pro almoço. Mas não teve jeito. Não muito depois da troca da terceira ou quarta frase protocolar ante aquela semidesconhecida, Jéssica sentiu a estreia de um duplo vazio em seu peito e desabou a chorar. Derramou lágrimas por Gonçalo, mas também pela ausência que latejava no ambiente daquela cena patética. Sentiu-se solitária. Por um instante, teve certeza de que sempre havia sido sozinha. Temeu que o destino não tivesse nada a lhe oferecer além de solidão. Penitenciou-se por nunca ter sofrido por paixões adolescentes cujo fracasso agora lhe teriam servido de carapaça para fazer a travessia para a qual ela se julgava impotente. Ela estava terrivelmente assustada.

— Ele me deixou, mãe, ele me deixou...

— Ele quem? Meu deus do céu. Fala!

Nesse exato instante, foi renovada a tristeza recíproca decorrente do afastamento em que estavam metidas. Jéssica se deu conta de que sequer havia mencionado à mãe que, nos últimos meses, estava vivendo aquele grande amor. Estela, orgulhosa, engoliu a seco o fato de ter sido ignorada da existência daquele envolvimento da filha e tentou disfarçar. No fundo, sabia que sua insignificância afetiva havia sido erguida ao longo da vida. Culpava-se. Culpava o ex-marido. Culpava os homens. Culpava o mundo. Como queria ter forças para ajudar Jéssica naquela desolação que nem ela nem ninguém havia antes testemunhado. À sua frente estava enfim a criança a quem ela se arrependia de não ter dado mais atenção. A jovem arquiteta, segura e bem-sucedida, já não existia mais.

Numa tempestade de lembranças e recomposições de memória, Estela condenou-se por não ter enxergado o óbvio. Que seu desinteresse em conhecer melhor os primeiros namorados de Jéssica haviam sido atos de egoísmo que tinham moldado na filha um caráter desprovido da capacidade de compartilhar as dúvidas e inquietações próprias da adolescência. Recordou a inveja que teve do ex-marido por ele ter vislumbrado desde cedo que a menina que erguia aqueles incríveis castelinhos de areia não poderia ter outra profissão que não fosse a arquitetura.

Reuniu suas forças e, muito sem jeito, abraçou a filha com quem chorou junto. Um choro retido por anos, por uma vida. Chorou por Jéssica, chorou por Luis Paulo, chorou por si própria. Ela nem lembrava mais da última vez que havia chorado sem se preocupar com o estrago na maquiagem.

Estela então jogou o único jogo que sabia jogar. Botar a culpa nos outros e fugir de responsabilidades como o diabo foge da cruz.

— Deve ter sido outra mulher, Jéssica. Só pode. Eles são todos assim — afirmou com vacilante desdenho.

A filha devolveu de bate-pronto.

— Duvido, mãe. Fui eu mesma que não soube lidar com a coisa toda. Eu não conhecia tanto amor e felicidade.

Aquela confissão doeu nos ossos de Estela. Nitidamente, não era o atestado do fracasso da filha como mulher. Era a flagrante afirmação da sua falha como mãe. Como a amiga que sabia nunca ter sido.

Empenhou-se em consolar Jéssica, exaltar suas virtudes e explicar a doutrina em favor da qual jamais havia dedicado tempo: fazer a filha compreender que não se tem tudo na vida.

Naquela que foi a mais sincera conversa entre as duas até então, Estela aos poucos foi conseguindo acalmar Jéssica, que mesmo já contendo o choro, seguia em busca de respostas para entender aquele confuso paradoxo sentimental: amor, ódio, raiva, solidão, tristeza.

Foi esse estado vulnerável que abriu a rachadura por onde o germe da dúvida penetrou, e ela passou a cogitar a hipótese de que a mãe poderia não estar de todo errada. Pela primeira vez, se perguntou se não haveria sentido nas proclamações de Estela contra o mundo masculino, reclames estes que havia escutado ao longo de toda a vida. Assim, desguarnecida de melhores ferramentas para entender tudo aquilo, pensou que talvez Gonçalo tivesse mesmo sido um canalha por abandoná-la.

A poeira foi se assentando. Cozinharam juntas, beberam, mudaram a conversa para falar de amenidades. No meio da tarde, Jéssica foi embora, aparentemente menos abalada do que havia chegado.


Verão


Quando Estela fechou a porta, foi tomada por um sentimento de alívio. Liberta por ter enfim estabelecido uma conexão afetiva com a filha. Feliz por não ter dúvida alguma de que era seu dever colocar em curso o seu plano. Um plano de vingança.

Nos dias seguintes, Estela passou a frequentar a academia não mais duas, mas cinco vezes por semana. Redobrou seus cuidados com alimentação. Foi às lojas que mais gostava e fez um rancho de roupas novas. Agendou sessões de drenagem linfática, clareamento dentário, bronzeamento e limpeza de pele. Ela, que já era bonita, ficou magnífica. Não era fácil sua passagem deixar de despertar olhares.

O plano de Estela era simples. Conquistar o coração de Gonçalo e fazê-lo se apaixonar por ela de forma irrevogável e avassaladora. No momento seguinte, uma vez consumado este primeiro ato, ela iria descartá-lo sem qualquer justificativa, infligindo assim a ele uma vingança total e incontestável ante o sofrimento da filha, a quem dedicaria seu triunfo. A punição serviria também como sua revanche contra o gênero masculino.

Naquele verão, que se revelaria mais chuvoso do que o normal, não foi difícil para a belíssima Estela identificar a rotina da sua pretensa vítima. Como previsto, ela não precisou de muito tempo para entrar no radar de Gonçalo. Aconteceu diante de uma vitrine de uma loja de artigos esportivos no Shopping Praia de Belas, onde, depois de um mapeamento, ela descobriu que ele almoçava todos os dias, sempre depois da uma hora. Geralmente no Varietá Bistrô. Ela já tinha lhe esticado os olhos num outro dia na escada rolante, de modo que não chegavam a ser, ao menos de vista, totalmente estranhos. Obstinada em não perder tempo, Estela se aproximou, sincronizando o instante e a distância, e puxou conversa.

— Essa loja já vendeu coisas de mais qualidade. Mas como minha academia é aqui por perto, acabo sempre dando uma olhada nesta mesmo. Uma pena que não ofereçam mais opções... — comentou arrastando seu melhor olhar.

— Sem dúvidas — retrucou Gonçalo com simpatia, não sem antes olhar rapidamente para os lados a fim de certificar-se que a conversa era mesmo com ele. E continuou

— Sabia que no andar de baixo abriu uma outra loja? Tem coisas bem bonitas...

Obviamente que Estela sabia, afinal, havia radiografado todo o shopping e estava pronta para evitar qualquer surpresa. Como havia planejado, tinha a mentira na ponta da língua.

— Não acredito! Como eu passeio mais no andar aqui de cima, acabei não vendo.

Ele então mordeu a isca.

— Olha, eu vou sair pra aquele lado e posso te acompanhar até lá — disse conferindo a hora em seu relógio.

Ligeira como um coelho em campo aberto, ela pensou, por uma fração de segundos, como tinha sido fácil armar seu golpe. Naquele instante, anteviu um futuro em que sua vingança seria completa, para em seguida responder ostentando um sorriso falso:

— Quanta gentileza! A propósito, meu nome é Giovana, e o seu?

Engataram ali mesmo uma conversa óbvia dirigida pela simpatia premeditada de Estela, que mergulhava de corpo e alma na interpretação da personagem que havia criado. Seu foco na vingança era tamanho que, para não correr riscos em adiar a aproximação, ela convidou Gonçalo para um café. Uma atitude arrojada e inimaginável fora do contexto daquela tramoia. Ele não teve como recusar.

Vencendo medos e inquietações, Estela interpretou Giovana, a mulher segura e despreocupada que ela nunca havia sido. Paradoxalmente, foi essa farsa que chamou a atenção de Gonçalo. O secreto jogo de cartas marcadas então movimentou-se. Trocaram mensagens e começaram a sair. A coisa tomou corpo. E perdeu o controle.

Era uma quarta-feira, pouco mais de um mês após o início da armação, quando Estela concluiu que não podia mais esconder da filha a loucura que havia feito. No seu íntimo, jurava haver dignidade no propósito de vingar o sofrimento de Jéssica. Afogada numa angústia que lhe sufocava o peito, Estela mandou uma mensagem em tom preocupado para a filha, que não demorou muito para aparecer na casa da mãe em atenção ao estranho chamado. Queria saber do que se tratava.

— Filha. Eu fiz uma grande merda — e continuou, com a pressa de quem não quer perder tempo com rodeios. — Eu fiz tudo pensando em ti, somente em ti. Juro que não imaginava o inferno em que eu acabaria me metendo.

Estela contou então seu plano mirabolante de infligir sofrimento a Gonçalo como forma de reparar a dor que ele havia levado ao coração de Jéssica. Diante do olhar incrédulo e sem reação da filha, Estela penitenciou-se, admitindo ter sido impulsiva e infantil. Insegura e tateando em busca de justificativas que não tinha, ela fez uma salada melancólica que misturava coisas do passado com a balbúrdia daqueles dias. Nada com muito sentido.

Ao concluir sua confissão pormenorizada, ela disse que tinha vergonha do que havia feito. Mas que havia chamado a filha para conversar, não só para se desculpar. Também queria pedir ajuda.

— O inferno, Jéssica, é que a mãe acabou se apaixonando por esse homem — e caiu num choro convulsivo que parecia não ter fim. Eram lágrimas sinceras, em meio às quais, não sem muita dificuldade, ela contou o capítulo final da tragédia em que havia se envolvido.

— Sexta de manhã, o canalha me ligou e disse que estava tudo acabado. Que tínhamos ido muito depressa, que ele não estava seguro para iniciar um relacionamento e blá blá blá... 

E isso não é tudo — continuou. — Ontem uma amiga me ligou dizendo que achava que tinha visto ele passeando com outra na Vinte e Quatro de Outubro. Ela tem quase certeza que era ele. Eu sei que era ele. Só pode ter sido ele! Tava me enganando, o patife. E talvez a ti também!

Chocada com o que acabava de ouvir, Jéssica levantou-se e caminhou até janela. Com paciência, fechou os vidros e cortinas com o claro propósito de que ninguém visse ou ouvisse o que estava acontecendo. A mãe acompanhava com os olhos cada movimento, ansiosa para que a filha lhe castigasse de uma vez e acabasse com aquela agonia.

Jéssica então falou. Diferente do que se poderia esperar, 

o fez de forma pausada, escolhendo milimetricamente as palavras, para trazer à conversa uma maturidade que a mãe jamais teve. E que talvez nunca viesse a ter.

— Mãe, eu não sei onde estava com a cabeça quando vim te procurar. Era certo que coisa boa não iria sair disso tudo. Te confesso que tive um mau pressentimento com aquele teu interesse todo em me consolar. Mas pensei que enfim tu poderia estar amadurecendo, afinal de contas, tu não é mais criança.

Quando tudo apontava para um explosivo ataque histérico e indignado de Jéssica, o que veio foi um sermão contundente mas sereno, através do qual a filha resgatou todo o passado mal resolvido entre elas. De certo modo, a reação de Jéssica não deixou de ser uma restituição pessoal ao seu estado primitivo. Por um instante, agarrou-se ao sentimento de que não podia mesmo contar com ninguém na vida. Que tudo dependeria dela. Sempre.

Mas a mãe não se deu por vencida e contragolpeou. Sustentou sua firme convicção que ambas haviam sido tapeadas por Gonçalo, que para ela sintetizava o que de pior poderia haver num homem: egoísta, aproveitador e mau-caráter.

Em meio a um confuso debate interno, Jéssica passou a ser tomada por uma incompreensível sensação. Mais do que raiva, ela passou a ter pena da mãe. Se compadecia de si própria e da situação toda em que haviam se envolvido. Lembrou de como tinha sido surpreendida pela recusa de Gonçalo em continuar o namoro, e como no seu íntimo ainda não havia se conformado com o episódio. Por um instante, solidarizou-se com a dor da mãe, a quem reconhecia ser uma mulher fraca e sem maturidade para enfrentar tudo aquilo. De certa forma, se condenava por ter arrastado Gonçalo ao mundo caótico da mãe e agravar a ruína da qual ela não havia conseguido se desentranhar desde a separação do pai.

Jéssica lutava para não admitir que ainda gostava de Gonçalo, um sentimento contraditório que não desconhecia a influência condenatória da mãe acerca do seu caráter. Alguns silêncios depois, a mãe foi sufocando os soluços que há pouco a impediam de completar qualquer frase, e começou a se acalmar.

Experimentaram então uma inesperada cumplicidade cuja razão Jéssica atribuiu ao fato de ter, como talvez em nenhum outro momento da vida, reconhecido sinceridade na atitude da mãe. Se abraçaram, choraram juntas, excomungaram o destino, riram do próprio infortúnio. Foi quando Estela levantou-se e se postou diante do espelho da sala para enxugar os vestígios das últimas lágrimas. Sem olhar nos olhos da filha, falou, buscando se recompor:

— Já sei. Vamos pedir ajuda. Atacar com munição pesada. Vamos ligar pra ela.

Estela voltou-se para Jéssica e descreveu o seu novo plano, que — segundo ela — seria o único caminho capaz de lhes restituir a dignidade e pôr fim ao martírio em que haviam se metido.

Depois de ouvir quieta, Jéssica chegou a parar por um momento antes de admitir que sim, que estava convencida que deveriam fazer aquilo, por mais que pudesse parecer uma loucura. Concluiu que, afinal de contas, tudo aquilo não era nada mais do que isso: uma loucura. Foi quando lamentou-se por sua vida aparentemente perfeita ter sido tão carente de loucuras.

— Deixa que eu ligo. Ela vai gostar.

Jéssica pegou o celular, rapidamente percorreu a agenda e ligou. O telefone chamou duas, três, quatro vezes, até ser atendido do outro lado da linha.



Outono


— Alô! Vó?

Barulho, conversalhada.

— Onde tu tá?

— Oi, Jéssica, meu amor! Que maravilha receber tua ligação! Eu estou no Rio! Sente o som:


Eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininho

Mas eu vim de lá, pequenininho

Alguém me avisou

Pra pisar neste chão devagarinho

Alguém me avisou

Pra pisar neste chão devagarinho, eu vim de lá


— Escutou?

Ao fundo se ouvia a animada roda de samba onde cavaco e tamborim arrastavam a voz uníssona da cantoria. Norminha então completou:

— Estou no pagode, coisa mais linda, meu bem. Tu tem que vir com a vó! Já te disse mil vezes, guria!

Constrangida por ter importunado a vó em meio àquela diversão, Jéssica perguntou quando ela voltaria a Porto Alegre.

— Volto semana que vem, querida! Aconteceu alguma coisa, minha lindeza? Não me deixa preocupada...

Jéssica então desconversou e disse que falariam quando ela estivesse de volta, que não era nada urgente. Que queriam pedir um favor, coisa simples. Mandou beijos, disse para ela se cuidar e desligou.

A vó Norminha era uma mulher de 63 anos. Inteira. De corpo, mente e coração. Viúva há quinze anos de um casamento muito feliz, ela trabalhava como vendedora numa requintada loja de tecidos na Bela Vista, onde aparecia quando queria. Sabia absolutamente tudo de decoração, bom gosto, roupas e tendências. Contava-se nos dedos quem sentava à sua frente numa negociação e não comprava. Tinha incontáveis amigas, de todas as idades. Elas disputavam a tapa a oportunidade de estar com ela para uma conversa, em bate-papos onde a alegria e as boas gargalhadas eram as únicas certezas. Entre seus bons amigos estavam os dois ou três namorados que teve após cumprir um tempo de luto pela viuvez prematura. Era magnética. Jamais se ouviu notícias de inimigos ou desafetos por qualquer razão que fosse.

A filha e a neta pesavam algumas toneladas. Norminha era leve como a pluma colorida que flutua pelo mundo sem destino nem pressa de chegar. Pra ela tudo estava bom. Otimismo e graça não eram parte de sua vida. Eram a sua vida.

No dia seguinte ao desembarque do Rio, Norminha, curiosa que só ela, ligou para a neta e marcou de saírem as três.

— Vamos jantar à noite porque saracotear à tarde é coisa de velha. E, mais a mais, não posso perder o horário que marquei no Miltinho para dar uma geral no meu cabelo. É caro, mas vale cada centavo! Ele é o melhor! E tem outra: não me venham com esses restaurantes de shopping! Que coisinha mais sem graça. Façam-me o favor... Vamos no Prinz, que estou com desejo daquele sanduíche aberto de lombo de porco!

Sem maquiagem, Jéssica usava blusa social branca, jeans e uma sapatilha baixa. Estela estava de salto alto e trajava um elegante blazer amarelado que combinava com a tiara que adornava sua cabeça. Norminha vinha num vestido floral com estampa miúda, cabeleira loira impecável e batom pêssego. Tinha uma boca que nem de longe denunciava seus sessenta e poucos. Era um começo de outono, a temperatura era amena e as folhas ainda não haviam começado a cair das árvores.

Estela reclamou do trânsito e da instabilidade do tempo. Jéssica relatou com empolgação contida um novo projeto que havia concluído. Norminha, por sua vez, contou entusiasmada suas aventuras no Rio, que disse mais uma vez ter virado do lado do avesso. Reafirmou que a zona sul carioca era o melhor lugar do mundo e que, se tivesse juízo, deveria se mudar pra lá por um tempo. Seis meses, um ano.

— Ou por toda a vida! Por que não? — perguntou sorrindo. E continuou sem cerimônia enquanto passava os olhos no cardápio. — Esse mês já faz dez anos que coloquei meu silicone. O tempo voa! Concordam que foi um trabalho perfeito do Doutor Armando, né? Nem grande nem pequeno. Na medida. Uma maravilha! — e seguiu. — Mas e vocês? 

O que andam aprontando?

Pediram sanduíches, filezinhos à milanesa e chope.

Coube à Jéssica contar a enrascada em que haviam se envolvido. Anônimas em meio ao burburinho do restaurante, o vai e vem de pratos e bandejas e o tilintar de talheres, desqualificaram Gonçalo dos pés à cabeça, se vitimizando pelo ocorrido. Disseram estar com o coração em frangalhos por causa de um homem frio e insensível que, segundo elas, era responsável por toda a dor. Depois de mostrar uma fotografia dele que carregava na bolsa, a neta contou à avó que, no início, não havia pensado em perdoar a mãe pela desastrada intromissão. Mas que agora, vendo tudo com mais clareza, havia entendido o gesto de Estela como um ato de amor. Clamaram por conselhos. Clamaram por vingança. Queriam que Norminha promovesse a desforra. Dizendo-se desconhecedoras da existência de força humana capaz de resistir aos poderes de Norminha, neta e filha formaram coro nos apelos. Queriam que ela infligisse a Gonçalo a lição de que o amor era assunto sério, que não se brinca com coisas do coração. Só o sofrimento teria o caráter pedagógico que pretendiam com sua revanche. Chegaram a dizer que, no fundo, ele um dia iria agradecer a lição.

Norminha ouviu tudo com atenção e, antes de falar qualquer coisa, pediu dois inigualáveis pudins, sabendo que a filha não comeria pela contagem de calorias a que se impunha, mas que a neta não lhe abandonaria naquela hora. Sobremesas ordenadas, ela agradeceu ao garçom, a quem esperou que se distanciasse alguns metros, e falou:

— Vocês só podem estar malucas, né? Onde é que já se viu me chamarem pra uma bobagem dessas? Façam-me um favor.

Norminha elencou uma série de razões para reafirmar ser uma idiotice o que estavam propondo. Não deu muito mais trela para o assunto e desviou a conversa. Pediu café expresso pra todas e a conta, que, quando chegou, foi repassada à neta sem que o valor sequer fosse conferido.

— Paga a conta, meu amor. Sei que tu tá podendo e é uma alegria patrocinar uma noite com a vó.

Antes de saírem, Norminha pediu pra ver a foto mais numa vez.

— Careca, ainda por cima! No fundo fico até curiosa pra conhecer o tipo, não por ele, mas porque gostaria de entender melhor essa cabecinha sem juízo de vocês duas. Mas deixa pra lá.

Norminha assim conseguiu pulverizar a relevância do assunto que sumiu da pauta familiar. Foram tempos de renovada convivência, maior até que antes. Jéssica retomou o foco nos projetos de arquitetura, Estela manteve o ritmo de treinos na academia e Norminha... Bom, Norminha era Norminha.

Dois meses depois do ocorrido, foi a vez de Norminha chamar a neta e a filha para uma conversa inesperada.

— Quero falar uma coisa com vocês — disse num tom propositalmente enigmático. — Vocês duas sabem que, entre todos os meus defeitos, um dos piores, se não o pior, é a curiosidade, né? Sabem que, no fim, vocês fizeram tanto alarde sobre o tal Gonçalo que eu não resisti e fui dar uma espiada na peça. Mexi meus pauzinhos e consegui me aproximar dele. Sem que ele desconfiasse que eu estava em missão de entender essa bagunça de vocês, consegui que ficássemos amigos. Conversamos.

Jéssica e Estela ouviram incrédulas o inesperado relatório da avó acerca daquele que havia sido o pivô das paixões que as levaram ao desastrado plano de vingança.

— Tive o desprazer de conhecer melhor aquela coisa pela qual vocês duas conseguiram a façanha de se apaixonar. Depois me digam o que vocês andam bebendo, pois quero passar longe. — A dicção perfeita conduzia a fala doce e contundente que hipnotizava mãe e filha. — Trata-se de um homem de pouquíssimas virtudes, queridas. Uma pessoa vazia, sem graça, que pouco gosta de trabalhar. Soube, inclusive, que está endividado. Que ostenta mais do que tem, na verdade. Jéssica, meu amor, muito me admira uma arquiteta fantástica como és, linda, jovem e boa cabeça, ter caído nessa arapuca. Deve haver um exército de homens de caráter, da tua idade e com cabelo, que dariam a vida por uma mulher como tu.

Enquanto reforçava as qualidades da neta ante o deserto de virtudes que dizia ter identificado em Gonçalo, Norminha bebia sem pressa uma borbulhante taça de espumante tinindo de gelada. Ao seu lado, a filha Estela prestava atenção em tudo sem dar um pio. Admirava a mãe mais do que qualquer coisa, não conseguindo disfarçar o orgulho por, talvez como nunca, serem agora um trio de verdadeiras amigas adultas. À filha, Norminha não poupou aconselhamentos.

— E tu, Estelinha, de que adianta ser linda como uma artista de cinema, se emperiquitar como uma condessa, se é pra ser insegura desse jeito? Toma teu rumo! Deixa de ser pesada. Veste uma calça jeans e vai caminhar no parque sem hora pra sair nem pra voltar. Esse tal Gonçalo nunca teve nada a ver contigo, mulher.

O efeito da espumante ia dissipando o tom ácido de Norminha, que, com seu jeito cativante e seu astral positivo, ia brincando de dizer verdades sobre o atrapalhado romance mal sucedido em que filha e neta haviam se metido. Em meio a brindes e risadas, saíram convencidas de que havia mesmo sido imbecil a ideia das tentativas de vingança. Que haviam criado um mundo imaginário em que Gonçalo tinha sido idealizado como uma criatura com maiores virtudes do que possuía no mundo real.

E a vida mais uma vez seguiu. De vento em popa.



Inverno


Passaram-se quase duas décadas. A vida de Jéssica e Estela avançou assim como caminha a humanidade: com erros e acertos, conquistas e tropeços. Deixou-se de falar do assunto. 

O tempo tratou de dissipar a lembrança do episódio que cada vez menos figurava em suas memórias. Não era incomum elas se perguntarem se de fato aquilo tudo havia acontecido.

Quando a secretária do médico cardiologista pediu que elas o aguardassem na salinha reservada ao lado do centro cirúrgico, Estela e Jéssica se abraçaram em silêncio. Tiveram uma espécie de antevisão simultânea do que seria noticiado. A tristeza pela morte de Norminha aos oitenta e um anos de uma vida repleta e saudável, interrompida por um inesperado e fulminante ataque cardíaco, contrastava com o sentimento geral de resignação ante a impotência humana frente aos limites do corpo e do tempo. Não foram poucas as pessoas que pensaram ter sido melhor assim, de uma hora pra outra, sem dor ou sofrimento.

— Não consigo imaginar a Norminha envelhecendo numa cama, morrendo aos poucos sem poder zanzar por aí, como tanto gostava... — dizia Luis Paulo, que, mesmo após o divórcio, havia mantido a camaradagem com a ex-sogra.

— Ela odiaria ter que depender das pessoas ou dar trabalho para família. Essa não seria ela — suspiravam as amigas reunidas num bolinho, uma mais elegante do que a outra.

— Neste último fim de semana, ela estava toda contente, postando em redes sociais o corte de cabelo que havia feito. Morreu loira e não teve santo no mundo que a convencesse a exibir um fiozinho branco sequer... — lamentou Miltinho, um dos mais abatidos.

Foi um velório muito concorrido, onde as pessoas se revezavam nas rodinhas para ver quem contava a história mais pitoresca, entre as tantas passagens daquela vida marcada pela leveza e pela felicidade.

No canto da sala em que Norminha era velada, um homem destoava em seu sofrimento solitário. Pouco falava com os demais presentes. Diante da cena, Jéssica pediu licença ao marido e à filha, que estavam ao seu lado. Disse à mãe que deveriam ir juntas conversar com ele. Se deram as mãos e se dirigiram para agradecer a presença do homem de porte médio, barbas brancas, óculos e careca, que chorava copiosamente e inconsolável.

Aparentando mais velho do que podiam imaginar, toparam incrédulas com Gonçalo, a quem não viam há quase vinte anos. Elas o reconheceram de imediato, apesar dos vincos no rosto não terem deixado dúvidas de que o tempo havia passado.

— Gonçalo? É tu? Que surpresa te ver por aqui... — disse Estela.

Enxugando as lágrimas e assoando o nariz, ele imediatamente se recompôs para tentar entender a visão que se materializava à sua frente.

— Giovana... Jéssica... Que coincidência encontrá-las aqui, nesse momento tão triste. Desculpem, eu... eu estou muito abalado... — mais choro. — Eu não sabia que vocês conheciam a Norminha. Nem tampouco que vocês duas eram amigas. Mas, como todos dizem, Porto Alegre é mesmo muito pequena… — completou contendo o pranto.

Perplexas com sua presença e especialmente intrigadas em entender o motivo daquela comoção toda, elas se entreolharam erguendo as sobrancelhas em sinal de incompreensão. Foi Jéssica quem falou primeiro:

— Desculpe, Gonçalo, mas nós não tínhamos noção que você fosse próximo dela.

Ele então recostou-se na parede, secou os olhos com as costas das mãos e, depois de um breve suspiro, respondeu:

— Próximo? — olhou pro teto e depois de uma breve pausa continuou. — Norminha foi a mulher que mais amei na vida. Ela foi tudo pra mim. Foi paixão, foi amizade, foi leveza. Os momentos mais felizes da minha existência foram ao lado dela — e prosseguiu em tom pesaroso. — E os mais tristes também. Tivemos uma história linda. Não deve ter sido muito depois da época que conheci vocês duas, já não lembro bem. Meus setenta anos estão cobrando um preço... O que aconteceu é que nos apaixonamos. Nos divertíamos muito, viajamos algumas vezes pro Rio, que ela tanto adorava. Só que ela nunca quis assumir o relacionamento comigo. Norminha me via quando queria, me sufocava de amor e depois desaparecia deixando um lastro de incertezas. Isso me castigou o coração. Eu nunca entendi. Já não acho que eu vá conseguir entender um dia. Eu sofri muito por ela. Até alguns anos atrás eu tinha ilusão de que ela pudesse voltar e ficar comigo. Mas não teve jeito. Sofri demais. Sofri por amor. Então desisti.

Incrédulas com o relato que testemunhavam, elas não sabiam como reagir diante do homem estraçalhado que tinham à sua frente. Mediante olhares de cumplicidade e sem precisar trocar qualquer palavra, concordaram que não deveriam contar-lhe

a verdade.

— Ela era divina — disse Jéssica.

— Era puro coração — comentou Estela.

E se anteciparam, uma de cada vez, para dar um abraço frio e constrangido no envelhecido Gonçalo. Antes que ele perguntasse qualquer coisa, pediram licença e se retiraram, alegando uma desculpa esfarrapada qualquer.

Enquanto se afastavam, foram tomadas por uma sensação de que a vingança talvez tivesse sido maior do que jamais poderiam ter desejado.

Estela tentava esconder a perturbação diante do fato de que Gonçalo sequer tenha sabido seu verdadeiro nome, acreditando por todos aqueles anos que ela se chamava Giovana. Isso a fez reviver a incômoda sensação de insignificância que havia experimentado no passado.

Jéssica não achou nobre a inquietação momentânea da qual foi acometida, talvez inveja, por ter ouvido o homem por quem tinha sido apaixonada confessar que havia amado sua avó.

A pergunta que povoaria suas mentes pelo resto da vida era se Norminha teria verdadeiramente gostado daquele homem ou se tudo teria sido uma farsa para levar a efeito a vingança pela qual elas haviam clamado. Estavam decididas que, em honra à memória de Norminha, jamais deveriam perseguir aquela resposta.

Logo em seguida, Gonçalo voltou e as alcançou, já melhor recomposto.

— Eu não vou ficar para o sepultamento. Vou preferir guardar comigo a imagem da mulher mais fantástica que conheci, como nesta fotografia que tiramos.

Na foto colorida que sacou do bolso, ele e Norminha sorriam sentados de mãos dadas numa tarde luminosa de inverno. Sobre a mesa de um café no Leblon, duas taças de vinho branco.

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