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Decálogo

capítulos iniciais

Prólogo

“Pois eis que põem ciladas à minha alma”

(Salmo 59, versículo 3)

Gilberto Fonseca

     Um tapa na cara e um soco no nariz.

     Fora a surpresa e a tontura, André foi tomado pela vergonha de ter recebido os golpes diante da esposa.

     “Ah, se arrependimento matasse” – pensou.

     Se sobrevivesse, juraria por tudo que é mais sagrado que daria ouvidos à intuição de sua mulher.

     “Quem sabe ficamos por aqui, junto dos nossos?” – disse ela, antes.

     “É uma grande oportunidade” – argumentou.

     E era.

     Sair de uma pequena comunidade e se tornar responsável por centenas, talvez milhares de pessoas, era um passo gigante para alguém que estava há tão pouco tempo atuando como pastor.

     De onde vinha, um ano havia sido tempo suficiente para apontar todo e qualquer pecado dos membros de sua congregação. Sabia das mentiras, das traições, de quem lutava contra o vício. Já sentia o gosto amargo da estagnação por enfrentar a resistência natural da ingenuidade e da falta de perspectivas de seu rebanho.

     Soava prepotente, sabia.

     Sonhava com algo mais.

     Uma metrópole traria desafios, exigiria reinvenção, mas também abriria portas para que suas palavras chegassem a um número maior de ouvidos e, se Deus permitisse, de almas também.

     E, caso a sorte ou a intervenção divina assim quisessem, cumpriria sua missão como religioso.

     Além de sepultar de vez um segredo.

     — É pra matar ou só dar porrada? – perguntou um moleque de pouco mais de quinze anos. O bigode fino sobre os lábios e a expressão endurecida até podiam enganar os desatentos, mas André sabia que o menino não tinha mais do que isso.

     — Deixa ele responder de novo – disse o outro, este, sim, mais velho.

     Limpou uma tira de sangue que escorria e secou as lágrimas que o impediam de ver o rosto da esposa.

     — Fala aí, pastor. Porrada, tiro ou vai fazer o que o Doutor lá pediu?

     O “Doutor” era, indiscutivelmente, a pessoa mais importante da comunidade e estava diretamente relacionado à situação.

     Desde o primeiro encontro, sabia que o relacionamento dos dois seria, no mínimo, conflituoso. O “Doutor”, na falta de uma expressão melhor, era o dono de tudo que envolvia o morro, inclusive das pessoas que ali habitavam. Apareceu no primeiro culto e sentou-se no banco da frente, rapidamente desocupado para que ele fizesse uso do lugar privilegiado. Escutou com atenção tudo que André havia preparado para a pregação daquele dia. Sorriu nas horas certas e silenciou em oração como todos os demais, mas transpirava uma energia que não fazia parte daquele espaço. Ao final, depois que todos já haviam recebido os cumprimentos de despedida, dirigiu-se a André para um boas-vindas.

     “Então o senhor é o novo pastor” – disse. “Boa pregação”.

     “Obrigado. O senhor é?”

     O homem riu.

     “Se ainda não sabe, preciso conversar com quem lhe contratou, pois sua igreja está num terreno

meu.”

     André apenas devolveu o sorriso, sem saber o que dizer.

     “Marcial” – A voz saiu tão forte quanto o aperto de mãos – , mas as pessoas também me conhecem por Doutor.”

     “O senhor é médico?” – perguntou.

     Marcial congelou o olhar, avaliando se a pergunta era sincera ou provocação.

     “Digamos que seja um sinal de respeito a quem provém o bem-estar dos seus.”

     O Doutor, em seu terno branco, limpíssimo, destoava em tudo dos que lhe acompanhavam. Tinha todos os dentes, cheirava a perfume importado e as palavras saiam completas.

     “Seja sempre bem-vindo à igreja, Marcial.”

     — Eu não vou perguntar de novo – gritou o menino. – Porrada, tiro ou vai fazer o que o Doutor pediu?

     — Deixa ele em paz! – Foi a primeira vez que Ana disse alguma coisa.

     O homem mais velho chegou a levantar a mão para agredi-la, mas recuou.

     — Quietinha aí, dona. O Doutor pediu pra não tocar na senhora por enquanto, mas não facilita.

     — Deixa ela em paz... por favor.

     — A gente vai deixar, pastor. A gente vai deixar. É só fazer o que foi pedido. Que mal pode ter em obedecer a um pedido do homem lá?

     André balançou a cabeça. Queria argumentar, achar as palavras que pudessem explicar o absurdo que lhe fora solicitado, mas duvidava que conseguisse acessar os ouvidos surdos daqueles dois.

     — É uma igreja!

     — Que pertence ao Doutor, porra! Tu só tá usando o espaço pra fazer o teu trabalho.

     Não deixava de ser verdade. Mas a casa de Deus não deveria servir de depósito para o mal.

     — Tô perdendo a paciência! – disse o mais jovem, levando a mão às costas e trazendo um revólver para a cena.

     — André... – A voz de Ana saiu carregada de apreensão.

     — Deixa eu falar com o Marcial.

     — O Doutor já falou contigo tudo o que tinha pra falar, agora é fazer ou pagar a conta por não obedecer.

     — Chega dessa merda, Getúlio, não vai faltar pastor pra botar no lugar desse daí – disse o garoto.

     — O moleque tá certo, pastor. O que tu ganha dizendo não pro Doutor?

     Eles não conseguiriam entender nem que André explicasse um milhão de vezes. Foram criados dentro de um sistema corrompido desde sempre. Provavelmente, sempre com um “doutor” para das as cartas e controlar a comunidade através de pequenos benefícios e medo constante. Regra da selva: manda quem pode mais, obedece quem quer ficar vivo.

     Deveria André obedecer?

     — E se eu quiser ir embora, abrir mão de tudo e sair daqui com minha esposa e meu filho?

     Os dois homens se olharam por um instante.

     — Claro que não vai contar nada pra ninguém... – disse Getúlio.

     André assentiu antes mesmo dele concluir.

     — Pastor – a voz soou calma, como se a explicação fosse dada a uma criança –, parece que tu não tá entendendo com quem tá jogando. O Doutor quer algo de ti e tu vai fazer, senão vai pagar o preço e ele vai botar outro cara no teu lugar que vai obedecer. Tua esposa é novinha, ajustada, teu moleque é pequeno, tem a vida toda pela frente. Pode ser que tua teimosia seja esquecida e o futuro te traga coisas boas.

     — Muita conversinha, Getúlio.

     — Cala a boca, garoto. Não esquece de quem tá à frente aqui.

     — Por quanto tempo eu preciso guardar aquilo lá na igreja?

     — Não sei dizer. Às vezes o Doutor segura uma semana, às vezes um mês. Depende.

     André buscou os olhos da esposa. Estava indo contra tudo que acreditava, mas era sua família que estava em risco aqui. Deus havia de perdoá-lo.

     — Vou fazer o que o Doutor pediu. – As palavras saíram miúdas, com sofrimento.

     Getúlio bateu palmas.

     — Guarda a arma, garoto, a gente terminou aqui. Bora avisar o Doutor que tá tudo certo.

     O mais jovem ainda aproximou-se de André para um último recado.

     — Não vacila, pastor. Se vacilar, vou cuidar de ti e da tua esposa. De jeitos diferentes.

     Saíram os dois.

     André abraçou a esposa e ambos curvaram-se sobre os joelhos em um pranto.

     — Eu vou dar um jeito, Ana, eu vou tirar a gente dessa.

     — Vamos embora daqui. A gente espera a noite e foge. Não temos muito dinheiro, mas é o suficiente para ir pra longe.

     — Eu concordo, mas vamos fazer a coisa da forma certa. Vamos pra casa, a gente pega o Isaque na passada e você arruma tudo enquanto eu faço o culto da noite. Melhor manter as aparências pra ninguém desconfiar. Depois disso a gente foge.

     Saíram do lugar onde estavam, um galpão anexo a um ferro-velho. O sol forte, em contraste com o escuro de antes, cobrou um tempo para se certificarem do caminho certo a tomar. Ana ajudou André a se recompor. Secou o sangue que ainda sujava seu rosto utilizando o lenço do cabelo e beijou seus lábios, num sinal de confiança de que haviam decidido pelo correto.

     Andaram em silêncio até a creche comunitária onde haviam deixado o filho pela manhã, agradecidos pelos ponteiros do relógio estarem próximos da hora de levá-lo para casa.

     Tocaram a campainha e pouco tempo depois uma jovem de avental abriu a porta.

     — Oi, pastor. Oi, Ana. O que houve?

     — Viemos pegar o Isaque um pouco mais cedo, tudo bem? Quero fazer uma surpresa pra ele – disse Ana.

     A jovem ergueu as sobrancelhas num sinal de espanto.

     — Acho que vocês estão atrasados. O Doutor passou aqui e disse a mesma coisa, que ia fazer uma surpresa pra vocês.

 

 

Capítulo 1

“Amar a Deus sobre todas as coisas”

Marisa Magnus Smith

     Joana, a funcionária da creche, demonstrou preocupação com o silêncio do casal.

     — Parece que o pastor ficou meio chateado... Eu não fiz mal em entregar o Isaque pro Doutor, né? –  Esperou um segundo e complementou – Era o Doutor... Além do mais o menino ficou contente... – justificou.

     Isaque era o que se pode chamar de “criança dada”: nunca reagia mal a uma aproximação, seja adulto, criança, cachorro. Tinha uma ligação especial com os mais velhos, sua avó Marlene que o diga. Essa disposição para socializar sempre gerava um efeito previsível: todos se encantavam com o menino – exceto um ou outro coleguinha enciumado.

     Olhos cor de jabuticaba como os do pai, cabelos claros como os da mãe, Isaque não se destacava por uma beleza tipo capa de revista e, sim, pelo sorriso de muitos dentes. Não que tenha muitos, na verdade, apenas os esperados para seus cinco anos.

     Mais do que o pai e a mãe, sua pessoa preferida era a Vovó Marlene. Muito próxima da família desde que os jovens formaram casal, há sete anos, ia diariamente ao encontro da filha e do genro para ajudar na lida da casa e do bebê. Quando enviuvou, aceitou o convite para trocar de casa e ficar com os três.

     Religiosa de carteirinha, só se conformou com a abrupta decisão de André de trocar de cidade quando o genro argumentou que na nova comunidade poderia traduzir em obras o que ele considerava o mais importante Mandamento do Pai Celestial: Amarás o Senhor de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força. Quanto mais fiéis conquistasse, mais pessoas seriam influenciadas por esse preceito. Diante dessa razão, Marlene escondeu sua contrariedade, e Ana, que não queria por nada deixar sua cidade, seus amigos e seu trabalho, acabou se conformando.

     O casal esperou de pé na porta da creche enquanto Joana se afastou para chamar a professora. André apertou com força a mão da mulher e sussurrou:

     — Disfarça, amor, sorri, vamos fingir que tá tudo bem.

     — Mas, André, nosso menino pode tá correndo perigo.

     — Talvez, mas não acho que aquele bandido vai aprontar algo agora. Enquanto eu não fizer o que ele mandou, Isaque tá seguro. Melhor não fazer escândalo, o Doutor vai ficar sabendo e pode achar que é provocação. Vamos jogar o jogo dele. Aguenta, confia em mim.

     Mas por dentro André era outro. Estaria seu Deus cobrando o preço pela culpa que tentava em vão apagar?

     — Parece que teve uma confusão aqui, pastor. A Joana me contou o que houve. – A professora se adiantou um tanto constrangida. – Me desculpe, a gente não costuma entregar uma criança sem bilhete dos pais.

     Joana também tratou de se defender:

     — Eu não saberia nem como dizer não pro Doutor. Vocês entendem, né?

     André assentiu com um movimento de cabeça, decidindo cortar de vez a conversa. A demora pra chegar em casa só aumentava a aflição, e ele não sabia quanto tempo mais Ana aguentaria segurar o nervosismo.

     — Tudo bem, gente, não se torturem sem razão. Claro que o Isaque está em boas mãos, logo estaremos com ele em casa e tudo será esquecido – disse, forçando um sorriso.

     Nunca as poucas quadras que separavam a escola da casa de André e Ana pareceram tão longas.

     Quando enfim chegaram, foram recebidos pelo olhar desconfiado de Marlene.

     — Cadê o Isaque, gente? Não pegaram ele na escola? André, o que aconteceu contigo? Teu olho tá roxo ou é impressão minha?

     André pôs o braço sobre o ombro da sogra para conduzi-la para dentro.

     — Que que tá acontecendo, meu filho?

     Mas o pastor não teve tempo de responder. Um carro chegou depressa, trazendo junto os gritos de uma criança.

     — Papai, mamãe, olha o que eu ganhei! Olha meu dinossauro, é o Dino!

     André apressou-se até o carro e tomou o filho no colo pela janela aberta. Só depois de repassar Isaque à esposa que buscou o motorista com o olhar.

     — Sossega. O menino tá bem, pastor. O Doutor levou ele na pracinha, deu picolé de chocolate e brinquedo. A notícia de que tu ia colaborar correu rápido. Ele queria demonstrar que tá agradecido.

     — Não ameaça meu filho!

     O motorista baixou os óculos escuros, encarou André por alguns segundos, depois dirigiu-se à Ana, que estava agarrada ao filho.

     — Tá entregue, dona, desculpe eu não entrar pra um cafezinho, mas, como vou ficar por perto, quem sabe outra hora?

     Vó Marlene, que acompanhava toda a cena, não entendeu nada, mas ficou com a sensação de que boa coisa não era.

     — Vocês estão bem? Tá tudo muito esquisito, me diz o que tá acontecendo.

     — Não é nada, sogra, eu tropecei e caí estatelado, o queixo sangrou um pouco, ainda bem que consegui proteger a boca – André desconversou, não dando margem para que Marlene perguntasse sobre o motorista. – Já pensou se eu quebro um dente? Mas meu Deus é fiel, nunca me desampara. Só que estou bem cansado, vou tomar um banho e preparar minha fala pro culto da noite. Vem comigo, Ana?

     Ana passou o filho à avó.

     — Claro. Mãe, fecha as janelas e tranca as portas. Já tá ficando noite. Tu cuida do Isaque?

     — Pode deixar, dou banho e janta enquanto vocês se ajeitam – respondeu Marlene, respeitando o desejo do casal em não comentar o assunto.

     Pouco tempo depois, Ana já estava a portas fechadas com André, os dois unidos em um abraço silencioso e um choro cúmplice sob a água morna que caía.

     — Vamos orar, Ana, temos muito a agradecer e muito pra pedir.

Juntaram as mãos molhadas e rezaram juntos um Pai-Nosso. Depois, cada um orou em silêncio, Ana pedindo desesperadamente proteção para sua família, André invocando a Divina Trindade, implorando perdão por seus pecados ao severo Deus Pai do Antigo Testamento.

     — Minha cabeça tá fervendo, Ana, imagino que a tua também, mas tenho fé e esperança de que o Senhor não vai nos desamparar. Vamos conversar depois do culto, daí refletimos juntos sobre tudo que aconteceu hoje e sobre o que vamos fazer. Só sei uma coisa: nós vamos proteger nosso filho. Amanhã ele não vai pra escola, vamos dizer que está doente e esperar o próximo movimento do Doutor. Tenho certeza de que ele vai me abordar no templo hoje à noite.

     Ana só fez que sim com a cabeça, nos olhos o horror de ver o filho com um estranho.

     Enquanto o pastor procurava reunir ideias para sua pregação, os últimos tempos passaram diante de seus olhos como imagens em caleidoscópio: a vida na pequena Vila Nova, sua atuação como pastor de poucos fiéis, as mazelas daquelas almas pouco iluminadas; seu pecado, a imensa culpa, a chantagem, a decisão de pedir aos superiores uma transferência para onde quer que fosse. Não importava, desde que longe, bem longe, da pacata mas traiçoeira cidade.

     Pedido atendido, André aceitou a transferência de olhos fechados, sem procurar saber nada do lugar onde iria atuar. Qualquer coisa seria melhor do que o purgatório em que estava vivendo.

     No entanto, parecia que Deus não pensava da mesma forma.

     Enquanto tentava dar ordem aos pensamentos, André encontrou o que iria dizer aos seus fiés.

     No culto, na primeira fila, como era de se esperar, de terno branco e sorriso no rosto, o Doutor marcava presença, aguardando a pregação que viria.

 

Capítulo 2

“Não levantarás falso testemunho”

Adriana Maschmann

     — Paz de nosso Senhor a todos. Como sempre, é uma honra estar entre vocês esta noite para trazer à luz da fé a verdade divina.

     Em uma pausa dramática, com os olhos fechados e as mãos erguidas, seu rebanho, esta noite presente em grande número, fez ecoar em uníssono um retumbante amém.

     A celebração estava iniciada.

     Por trás da aparente serenidade, as gotículas em sua testa denunciavam o seu desconforto. Sob o terno barato, a camisa suada. O colarinho frouxo ostentava uma gravata flácida.

     Bem ali, no primeiro banco da primeira fila, o Doutor o encarava com olhos de Juízo Final.

     Um arrepio gelado correu na pele de André.

     Manter a calma era essencial.

     Era o centro daquele pequeno universo, antes gostava disso e sabia muito bem como manter a atenção sobre si enquanto falava.

     “Foco, André!”

     De forma teatral, ciente do efeito dos seus movimentos tantas vezes ensaiados, retomou a pregação.      Haveria tempo de sobra para dedicar seus pensamentos às reais intenções do Doutor.

     — A testemunha falsa não permanecerá sem o devido castigo, e aquela pessoa que ventila mentiras não escapará impune. Provérbios, capítulo dezenove, versículo cinco. Irmãos, irmãs, o que causa mal não é o que entra pela boca, mas o que sai dela. Revisem as suas palavras. Estou aqui para trazer uma instrução que os leve a uma vida melhor, a uma vida cristã — disse, recobrando a força na voz. Não iria fraquejar, pelo menos não ali, não agora. — Dizer a verdade é vocação do povo santo convocado a ser testemunha do Todo Poderoso. Ela nos liberta e nos santifica.

     — Aleluia — disseram alguns fiéis.

     Diante do púlpito, o pastor conduzia sua plateia de novo como um maestro experiente a reger complicadas sinfonias. Dominava a oratória. Era habilidoso no falar, cuidadoso nas escolhas e muito, muito persuasivo. Sabia bem que estava no lugar certo e nem cogitava abrir mão do futuro que o esperava logo ali adiante. Faria sucesso, iria parar no rádio, na televisão, seria uma celebridade. Não aceitaria menos que isso. E não sentia vergonha em desejá-lo.

     Diante daqueles almas em busca de salvação e do abraço divino, André fingia orar, mas seus pensamentos iam da lembrança dolorida do encontro com os capangas do Doutor até a visão do pequeno Isaque chegando em casa num carro preto conduzido por um estranho.

     “Covardes! Ninguém mexe com a família”.

     Respirou fundo, estava tudo bem agora. Olhou para a mulher e para o filho. Aquilo, sim, era real.    Ana havia feito dele um homem melhor. Fé. Era disso que precisava cada vez mais.

     Uma voz suave e melodiosa o devolveu à realidade. Sonaya, filha da Irmã Cleonice, entoava um hino de louvor e era acompanhada com sussurros tímidos dos demais fiéis. Seu aspecto translúcido lhe dava a aparência de um anjo.

     Diferente da tensão existente entre André e o Doutor, o templo exalava paz. Uma atmosfera celestial pairava no ar quando o som de um tiro calou todas as vozes. Primeiro, o silêncio que antecede o grito; depois, a gritaria que revela o pânico. Espremidos uns pelos outros, ninguém ousava sair.

     Com uma rápida inspeção, André procurou sua família. Estavam ali, tentando fugir pela porta da secretaria, trancada durante o culto. Isaque chorava e Ana tremia. Nos olhos arregalados, um universo inteiro de perguntas.

     — André, o que foi isso? — perguntou a esposa, com a voz trêmula. — Tem algo a ver com a gente?

     Enquanto falava, o menino se enroscava em suas pernas tentando se esconder.

     — Não sei, mas agora não é o momento para falar sobre isso. Pega esta chave e entra aí com o Isaque – disse, apontando a porta. – Vou tentar descobrir alguma coisa. Não saiam daí.

     Enquanto o marido se afastava, Ana gritou entre um soluço e outro:

     — E a minha mãe? Cadê a minha mãe?

     Ao ouvir o apelo, André apenas sacudiu a cabeça sem se voltar. Não havia tempo a perder. Precisava controlar a situação e tranquilizar os fiéis antes que houvesse algum problema maior. 

     Ana enxugou as lágrimas e se recompôs. Entrando na secretaria, fechou a porta e esperou. Deus agiria em favor do bem.

     Em meio à confusão, André andava de um lado a outro. Tentou encontrar a sogra. Nem sinal dela.

     “Onde havia se metido?”

     Todas as atenções estavam voltadas para o que teria acontecido do lado de fora. Enquanto alguns espiavam ainda de dentro da igreja, outros se espremiam em frente à entrada para testemunhar o ocorrido; outros, ainda, sacavam armas que não deveriam ser bem-vindas na casa de Deus.

     — Irmãs e irmãos, vamos tentar manter a calma. Graças à bondade do Pai, estamos todos aqui — disse o pastor enquanto ganhava a rua.

     Assim que pôs os pés na calçada, a visão de um amontoado imóvel de roupas atraiu seu olhar. Houve quem cobrisse o rosto com as mãos; houve quem chegasse mais perto. André foi um deles. 

     Mais interessados na cena do que em qualquer outra coisa, ninguém intercedeu ao Pai Todo Poderoso.

     Em frente à escadaria, junto ao meio-fio, o corpo de um jovem tingia de vermelho a calçada. André, com agilidade, aproximou-se e imediatamente reconheceu a vítima: o garoto que tinha lhe desferido tapas, socos e ameaças no galpão anexo ao ferro-velho. Sem perder tempo, procurou algum sinal de vida. Nada. Tarde demais até mesmo para um emissário dos céus.

     — Que Deus tenha pena de sua alma — falou enquanto tentava imaginar o motivo pelo qual aquele rapaz havia perdido a vida logo ali, em frente à sua igreja.

     — Pastor, precisamos fazer alguma coisa! — disse o irmão  Josias, guitarrista da banda de louvor.

     O pastor assentiu. Precisava fazer algo. Polícia? Não sabia se as autoridades subiriam o morro para tratar de um jovem morto. Não ali, no reduto do Doutor.

     Tirou o casaco e cobriu o corpo, poupando os mais sensíveis da cena.

     Procurou o Doutor, sumido desde o momento do tiro.

     Carros e motos começaram a chegar, todos sem emitir luz piscante ou som de sirenes. Um grupo de homens recolheu o corpo e jogou-o na traseira de uma caminhonete. Ao partirem, o povo que ainda estava por ali começou a dispersar. André julgou melhor também sair dali com sua família. Ana o esperava em silêncio, com o pequeno Isaque no colo.

     — O que aconteceu? Me diz a verdade. O tiro acertou alguém? Cadê a minha mãe? Foi coisa do Doutor? A gente corre perigo? Me fala!

     Tentando acalmar a mulher, falou baixo e bem devagar. Pretendia com isso demonstrar uma tranquilidade que não sentia, mas nem tudo poderia ser dito. Controlando a própria voz, contou o ocorrido escolhendo as palavras e omitindo boa parte dos detalhes, inclusive o fato de que o morto era o garoto que os sequestrara. Já havia preocupação suficiente para ambos. A prioridade agora era colocar Isaque na cama e procurar a sogra.

     Assim que chegaram em frente a casa, a porta se abriu e Marlene saiu ao encontro dos três. Vinha com a mão no peito, gritando aleluias e agradecendo aos céus por estarem todos bem. Ao olhar em volta para se certificar de que havia ordem, André notou o mesmo carro que trouxera Isaque no fim da tarde.

     Ao cruzar a porta de entrada, avistou o motorista em pé, sob a luz do velho lustre de plástico, fazendo guarda ao Doutor, que fumava tranquilo diante de uma xícara de café.

     — Vem, meu filho e minha filha — disse Marlene, puxando-os para o centro da sala. — Deixa eu contar pra vocês a bênção desta noite. Este anjo do Senhor me amparou e me trouxe até em casa.           Glória ao Pai por existir pessoa tão boa nesse mundo.

     Com a naturalidade de quem está habituado a mentir, Marcial dirigiu o seu sorriso mais encantador à Ana e logo estendeu a mão para André.

     — Belo sermão, pastor. Pena ter sido interrompido daquela forma. Não se preocupe, cuidarei disso mais tarde. Um contratempo costumeiro, nada que não tenha acontecido antes. – Pigarreou antes de continuar. – A verdade é sempre um grande tema. Palavras iluminadas pela graça divina.

     O sangue fervia no punho fechado de André, mas esmurrar o Doutor ali no meio da sala estava fora de questão. Num tom seco, disparou:

     — Deus fala através dos escolhidos por Ele. Pelo poder da palavra, nos ensina o valor de praticar a virtude e a nos afastar da hipocrisia e da simulação.

     Ana, de volta à sala depois de colocar o filho no quarto, abraçou-se à mãe, sentindo o peso do ambiente. Encantada com a presença do novo amigo, Marlene ignorava a iminência de um furacão no meio da sua casa.

     Altivo, Marcial deu sua última tragada, apagou o cigarro e caminhou em direção à porta.

     — Pois, bem, pastor. Agora que todos estão na segurança do lar, vou cuidar dos meus e garantir que a noite seja de sono tranquilo. — Parou por um instante, ajustou o chapéu sobre a cabeça e fitou    André nos olhos. — Sobre o sermão, apenas um adendo: nem sempre o perigo se esconde só atrás da mentira. Às vezes, dependendo do caso, a própria verdade pode ser usada como instrumento de destruição. Já pensou nisso, pastor, na verdade?

     E saiu acenando para Marlene, enquanto o motorista abria a porta traseira do carro para acomodar o Doutor e depois partir.

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