CRUBER
capítulos iniciais
Histórias passageiras
Ano de 2020. O mundo é surpreendido por um vírus que se alastra rapidamente. Os governantes, pegos de surpresa, não sabem direito o que fazer. Conter a contaminação torna-se urgente e para isso medidas de afastamento social são implantadas em quase todos os países do mundo.
Brasil, Porto Alegre. Criba vivia muito bem com suas atividades de Produção de TV, Fotografia e Crítica Cinematográfica, até que tudo parou de funcionar.
Após três meses em casa, ajudando meus guris com o estudo online, reaprendi a multiplicar com frações, regras de Língua Portuguesa esquecidas há muito tempo e diversos outros saberes do ensino fundamental.
O Netflix tinha esgotado, a leitura cansava, estava prestes a ter um esgotamento mental.
Então a Lisi me desafiou a voltar a dirigir com a Uber.
Relutei a princípio, mas coloquei meus documentos em ordem e, no último sábado de julho, parti para minha primeira tarde como motorista de aplicativo.
Corrijo. Já sou motorista cadastrado desde 2017, mas na época fazia poucas horas diárias e vivíamos uma verdadeira guerra da fiscalização de trânsito e dos taxistas contra os aplicativos. Naquele ano dirigi poucos dias e recuei.
Voltemos a 2020. Antes de sair para minha primeira viagem, minha amada Lisi me explicou da maneira mais lúdica e sensível do mundo que nem todo mundo gosta de conversar como eu, e que talvez as pessoas prefiram uma viagem de aplicativo imersas em seus pensamentos.
E a mensagem mais importante: menos é mais!
Recado dado e entendido, saio de casa em busca da primeira viagem.
Nem dois minutos depois, toca o sinal de alguém solicitando uma viagem, aceito e vou buscar o passageiro.
Entram no carro um pai e seu filho adolescente, cumprimento os dois e alguns metros depois paramos em uma sinaleira.
Chega um senhor em minha janela e pede um trocadinho, digo que não tenho e temos um diálogo rápido, no final o simpático pedinte me deseja sorte.
E de trás do carro ouço uma exclamação:
- Ah, sorte, te garanto que trabalhar ele não quer.
Esquecendo tudo o que a Lisi falou, exclamo:
- Isso eu não posso dizer, não conheço a história de vida deste senhor.
E meu passageiro continua:
- Ihhh, filho, demos o azar de pegar um motorista metido a bonzinho.
Provando que não assimilei nada da orientação de minha amada, insisto:
- A questão não é ser metido a bonzinho, é ter empatia pela dificuldade do outro.
O resto da viagem seguiu em absoluto silêncio sem nem um cumprimento final. E na minha primeira viagem ganhei minha primeira uma estrela.
De lá para cá foram quase cinco mil viagens, conhecendo uma Porto Alegre gigantesca e variada, com histórias fascinantes das experiências dos passageiros que passo a relatar aqui nestas páginas.
O ar que respiramos
Um dos maiores transtornos para passageiros de aplicativo é ser atendido em um supermercado. São dezenas de reclamações que já ouvi de pessoas que, após o motorista perceber que o início da corrida é em local de compras, encerra a corrida e deixa o passageiro na mão.
Bem, nesse dia, minha corrida iniciava em um grande hipermercado e lá fui eu atender.
Vejo minha cliente, uma senhora já de certa idade, desço e ajudo com as compras. Aquela senhora de cabelos brancos e rosto cansado entra vagarosamente no carro, espero ela se ajeitar e início a corrida. Falamos as mesmas amenidades sobre o tempo e o trânsito até que ele começa a contar sua história.
Seu nome é Maria Aparecida, mora a vida toda na zona sul de Porto Alegre e, em grande parte de sua vida, cuida de seu filho com paralisia cerebral. João tem 37 anos e necessita de cuidados intensos e constantes, de modo que Maria Aparecida precisa de auxílio diário de cuidadores.
Logo veio o tema mais falado nas idas e vindas de um motorista de aplicativo: até quando vamos usar máscara? E a vacina? Será que chega ainda neste ano? Mas para Maria Aparecida o temor de que João seja contaminado com o vírus é grande; grande a ponto de ela mandar fazer uma pia na entrada de sua casa para que seus auxiliares possam fazer uma higienização completa antes de entrar. Ela me fala dos custos da obra e também me conta que seus auxiliares de longa data fizeram uma vaquinha e ajudaram a custear o projeto.
A viagem prossegue com Maria Aparecida me falando do dia a dia e das pequenas alegrias cotidianas em relação a seu único filho.
Maria Aparecida está sozinha nesta caminhada desde os três anos de vida de João. O pai decidiu que aquilo não era vida para ele foi embora para nunca mais voltar.
Chegamos, desembarcamos as compras e Maria Aparecida me agradece por minha atenção e interesse em sua vida durante a curta viagem que fizemos. Digo que tenho uma profunda admiração por pessoas que se dedicam como ela ao zeloso cuidado de uma vida inteira para com seus filhos.
Maria Aparecida olha pra mim com olhos profundos de um amor inexplicável e, sorrindo, me fala:
— Meu filho? O meu filho é o meu ar.
Ansiedade e amizade
Cheguei para uma corrida naquela tarde ensolarada de sábado e encontrei três jovens com dois violões a tiracolo e uma alegre conversa que acontecia na calçada.
Entraram no carro dois caras bem falantes e um mais quieto, que se sentou atrás de mim.
Logo no começo da viagem, o rapaz mais quieto me pede um favor: se eu poderia ir o mais rápido possível porque ele sofre de muita ansiedade e, como não saía de casa há dois anos, tinha medo de entrar em pânico.
Falei para ele que ia fazer o possível e comecei a corrida. Informei que levaríamos dezesseis minutos, mas que ia tentar chegar um pouco mais rápido.
Logo em seguida, em uma bonita estrada de uma só pista aqui de Porto Alegre, a Oscar Pereira, ficamos atrás de um caminhão de lixo, devagarinho, sem nenhuma chance de ultrapassar. Os outros dois amigos conversavam comigo e com seu ansioso colega cheios de entusiasmo, me contando que estavam indo ao encontro de um outro amigo, que estava acamado, para fazerem uma serenata na janela e alegrá-lo um pouco nesta época tão difícil.
Não demorou muito e meu passageiro começou a ficar inquieto e a respirar com dificuldade, e eis que, a partir daí algo inesquecível para mim aconteceu.
Os outros dois começaram a falar com ele, lembrando o quanto ele era corajoso e valente por sair de casa, o quanto era importante este passo depois de dois anos encerrado em um quarto escuro, o quanto eles e outros amigos que estariam na serenata o amavam e estavam alegres por reencontrá-lo depois de tanto tempo. Um amigo estava com o braço em seu ombro e o apertava com firmeza, criando uma zona de conforto e segurança para o rapaz angustiado; o outro lembrava da infância e dos passeios de bicicleta e os tombos de skate no Parque Marinha.
Foi tanto amor e carinho que meus olhos se encheram de lágrimas que escorriam máscara adentro. Fungando, não consegui nem disfarçar.
O rapaz foi se acalmando e dando risadas das histórias, tanto que passou a lembrar de momentos divertidos e importantes do grupo também.
Chegamos ao destino, os três saíram do carro e entraram no pátio do amigo em recuperação que já aguardava com um sorriso enorme pelo que ia acontecer dali em diante.
E eu segui meu caminho em busca de novos passageiros e novas histórias de vida, com o coração repleto por testemunhar a atitude daqueles anjos disfarçados de amigos.
Em tempo de pandemia, aqueles guris com cabelos compridos e violões a tiracolo espalharam o vírus da empatia e do amor.
Cheguei para uma corrida naquela tarde ensolarada de sábado e encontrei três jovens com dois violões a tiracolo e uma alegre conversa que acontecia na calçada.
Entraram no carro dois caras bem falantes e um mais quieto, que se sentou atrás de mim.
Logo no começo da viagem, o rapaz mais quieto me pede um favor: se eu poderia ir o mais rápido possível porque ele sofre de muita ansiedade e, como não saía de casa há dois anos, tinha medo de entrar em pânico.
Falei para ele que ia fazer o possível e comecei a corrida. Informei que levaríamos dezesseis minutos, mas que ia tentar chegar um pouco mais rápido.
Logo em seguida, em uma bonita estrada de uma só pista aqui de Porto Alegre, a Oscar Pereira, ficamos atrás de um caminhão de lixo, devagarinho, sem nenhuma chance de ultrapassar. Os outros dois amigos conversavam comigo e com seu ansioso colega cheios de entusiasmo, me contando que estavam indo ao encontro de um outro amigo, que estava acamado, para fazerem uma serenata na janela e alegrá-lo um pouco nesta época tão difícil.
Não demorou muito e meu passageiro começou a ficar inquieto e a respirar com dificuldade, e eis que, a partir daí algo inesquecível para mim aconteceu.
Os outros dois começaram a falar com ele, lembrando o quanto ele era corajoso e valente por sair de casa, o quanto era importante este passo depois de dois anos encerrado em um quarto escuro, o quanto eles e outros amigos que estariam na serenata o amavam e estavam alegres por reencontrá-lo depois de tanto tempo. Um amigo estava com o braço em seu ombro e o apertava com firmeza, criando uma zona de conforto e segurança para o rapaz angustiado; o outro lembrava da infância e dos passeios de bicicleta e os tombos de skate no Parque Marinha.
Foi tanto amor e carinho que meus olhos se encheram de lágrimas que escorriam máscara adentro. Fungando, não consegui nem disfarçar.
O rapaz foi se acalmando e dando risadas das histórias, tanto que passou a lembrar de momentos divertidos e importantes do grupo também.
Chegamos ao destino, os três saíram do carro e entraram no pátio do amigo em recuperação que já aguardava com um sorriso enorme pelo que ia acontecer dali em diante.
E eu segui meu caminho em busca de novos passageiros e novas histórias de vida, com o coração repleto por testemunhar a atitude daqueles anjos disfarçados de amigos.
Em tempo de pandemia, aqueles guris com cabelos compridos e violões a tiracolo espalharam o vírus da empatia e do amor.