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CADERNO DE RASCUNHOS
e outras crônicas

crônicas iniciais

Pequenos Tesouros

 

       Gosto de andar na praia pela manhã, de chapéu e máscara, como convém em tempos de sol forte e pandemia.  A hora não é escolhida ao acaso. É quando posso admirar um bordado de exibidas garças, em busca de alimento, confundindo-se com a espuma das ondas desmanchadas sobre a areia.
       Numa dessas andanças, além do desfile majestoso das aves, vi uma concha muito bonita. Era bem maior do que as demais e estava intacta, com sua coloração madrepérola reluzindo sob o sol. Não costumo recolher conchas na praia, mas quando encontro alguma muito especial, não resisto e, apesar das superstições em contrário, gosto de levá-la para casa e fazer uso dela em algum objeto de decoração.
       Pois bem, voltando à concha. Passei por ela e não a recolhi. Pelo peso e tamanho, pensei que seria mais conveniente fazer isso no retorno e segui minha caminhada. Quanta ingenuidade. Ao retornar, em meio a tanta areia, achar uma simples concha seria tarefa impossível. Na extensa faixa que separa o mar das dunas, o caminho da volta não passaria, necessariamente, pelo caminho da ida.
       Um pouco frustrada pelo pequeno tesouro de madrepérola que não reencontrei, não pude deixar de pensar nos caminhos da vida. Naquela necessidade de vivermos nossos amores, as alegrias com os amigos, os tantos pedidos de perdão, aquela conversa adiada e todas as visitas postergadas. Sobretudo, na importância de prestarmos atenção ao presente e suas infinitas, mas fugazes, possibilidades. Ou, como nos ensina o filósofo Sêneca, de “viver cada dia como se fosse uma vida inteira”. Na necessidade de abraçarmos o “agora” e suas oportunidades mágicas porque, mesmo que retornemos ao ponto de partida, nossos passos de volta trilharão outros caminhos e, na incógnita de muitos futuros possíveis, pequenos e grandes tesouros poderão se perder pela trilha. 


* Publicada no jornal Diário Popular, edição de 19 e 20 de fevereiro de 2022.

O triste sorriso

       Sorrir, verbo irregular. Por definição, rir com um breve movimento da face e dos lábios. Mostrar para alguém um sorriso. Demonstrar alegria e contentamento.
       Ao longo do dia, todos nós sorrimos. Alguns, naturalmente, sem qualquer motivo ou propósito; outros, de modo malicioso, ardiloso e premeditado. Autêntico ou falso, no convívio humano, o sorriso sempre foi uma arma doce, útil e necessária, tanto para o bem quanto para o mal. Sorrir podia ser a estratégia sutil para encerrar uma conversa constrangedora. Por outro lado, mostrar os dentes auxiliava a começar um diálogo necessário, a quebrar desconfortantes silêncios. Um bom sorriso ajudava, e muito, a vender quimeras, vestidos e apólices de seguro. Quando sinceros, os felizes sorridentes atraíam outros da mesma espécie, criando os grupos mais animados de qualquer festa.
       Se, muitas vezes, era demonstração de felicidade e contentamento diante da presença de alguém querido ou amado; ou se, por dever de ofício, precisávamos ser simpáticos e proporcionar uma sensação de bem-estar, salvo algumas prováveis exceções culturais, lá estava ele: o grande sorriso. O ato de rir suavemente, com um breve movimento dos lábios e da face, podia ou não ser retribuído, mas, via de regra, sempre gerava algum nível de empatia. Gerava comunicação instantânea. Era a grande mágica do sorriso.
       Temo que hoje, sorrindo para aparelhos celulares, diante dos cenários mais improváveis, criando fotos que serão publicadas aos borbotões nas chamadas redes sociais, tenhamos nos convertido em manequins de uma imensa vitrine. Manequins sorridentes e ávidos de público.  Narcisos modernos, paralisados diante de um grande lago virtual a refletir nossa bela imagem. Mas ele, o sorriso, embora retratando nosso melhor ângulo ou cativando milhares de seguidores, tenha se tornado oco, solitário e triste, porque lhe falta, simplesmente, a insuperável interação com o outro.


* Publicada no jornal Diário Popular, edição de 23 e 24 de outubro de 2021.

 

Sêneca e o tempo 

       Há muito tempo, cultivo o hábito de começar o ano relendo Sêneca. Gosto, particularmente, das cartas a Lucílio, escritas entre os anos 63 e 65 d.C. O jovem discípulo tratava-se, provavelmente, de personagem imaginário, criado, apenas, para que o filósofo pregasse suas ideias através do gênero epistolar, muito em moda à época.
       Os historiadores não têm consenso sobre a existência real de Lucílio, mas eles concordam em um ponto: Sêneca foi um dos filósofos mais importantes do estoicismo e muitas de suas reflexões permanecem atuais. Em um delicioso estilo coloquial, como convém a toda boa carta, o filósofo fala com o jovem discípulo e, por consequência, com o leitor como se estivesse na sala de sua casa ou caminhando despreocupado, ao seu lado, em um belo parque. Discorre, com bom humor e ironia, sobre uma infinidade de temas. Do dia a dia, hábitos e costumes até dilemas existenciais, como a liberdade, a “brevidade da vida”, a solidão e a morte. 
       Faz exortação à parcimônia em uma crítica bem-humorada aos banquetes romanos, ao citar sua preferência pela comida simples “que não seja pesada nem ao bolso nem ao corpo, que não saia por onde entrou”. Mas de todas as máximas do autor, tenho predileção especial por aquelas que tratam da nossa relação com o tempo. Sobretudo quando ele escreve em uma de suas cartas: “Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte. Então caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã, se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias, só o tempo é nosso.”
       Temo que, talvez hoje, mergulhados em anos velozes e toda a sorte de apelos fúteis, nos falte uma reflexão, sincera e profunda, sobre como usamos nosso tempo, o grande protagonista a bordar, com seu fio implacável, através de breves e indeléveis instantes, o destino de cada um de nós. 


* Publicada no jornal Diário Popular, edição de 16 e 17 de outubro de 2021.

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