
A VIDA DISFARÇADA
DE CONTOS
contos iniciais
SAMBA DA MEIA HORA
— Não vale ficar ciscando no baralho, irmão. Meteu a mão no bolo, tem que comprar! — protestou Valença.
O jogo de pife corria solto no boteco da dona Elvira praticamente todas as tardes no Morro de Villares. Sempre a dinheiro. Enquanto bebericava sua cervejinha, Bebeto Valença esperava confiante a chegada de um valete pra bater aquela rodada. De qualquer naipe. A parceria se reunia ali não só pela jogatina, mas também para atualizar a conversa.
O ritual seguia um protocolo: comprar no baralho, revistar a mesa com os olhos sem levantar a cabeça; se a carta servisse, era encaixada no jogo que estava na mão, se não, era descarregada no bolo. Assim a roda ia girando, um a um tendo a oportunidade de armar seu bote.
— Bati! — surpreendeu Montanha, que até então estava quieto, sem dar qualquer indício de que estava pifado. — Podem pagar o pai aqui! — ordenou animado, chamando a grana com um abre e fecha da mão direita espalmada pra cima.
Enquanto recebiam as cartas para a próxima rodada, avistaram ao longe a chegada de Carlinhos Madrugada, que vinha num balanço sem pressa, assobiando em direção à mesa.
“O que que essa figura tá fazendo aqui a essa hora?”, se perguntou Valença, repartindo o olhar entre o baralho e a rua.
Não fazia muito que Bebeto Valença havia assumido como presidente da Acadêmicos do Império Novo, nomeado sem eleição pelo grupo que, por anos, havia comandado a escola. A ideia era trazer sangue novo para recuperar os bons tempos e dar fim às rivalidades políticas internas. Bebeto era um confesso aprendiz, recém-chegado ao mundo do samba. Mesmo morando há pouco em Villares, havia rapidamente conquistado a comunidade com seu jeito simples. Dizia-se que era um homem de grandes soluções. Gente de confiança. Isso o fez presidente. Dedicava seu tempo entre a administração de sua mecânica e o comando da escola de samba com a qual ainda buscava se familiarizar. Sua oficina era completa. Motor, elétrica, chapeação e pintura. Mesmo sem meter a mão na graxa, tinha fama de entender de tudo um pouco e não cobrar preços salgados. Fazia sucesso entre os bacanas da Zona Sul que o procuravam para restauração de carros antigos.
Depois de interromper sua caminhada para falar com amigos, Carlinhos Madrugada chegou à mesa de jogo. Sempre bem trajado, vestia uma moderna camisa estampada, calça e sapatos brancos. No rosto, um destacado óculos de sol do qual não se separava nem mesmo nos dias nublados. No peito, uma requintada corrente de ouro com a medalha de Nossa Senhora. Um relógio brilhante que fazia par com um vistoso anel de bispo completava o quadro. Era vaidoso o Madrugada. E não era pra menos. Era o puxador de samba da escola e cantor profissional na noite carioca.
— Fala, Valença! Tudo numa boa? Quando terminar aí, vou querer bater um papo contigo, meu velho. Vou dar um alô pra dona Elvira e comer um pastelzinho. Depois volto aqui.
Carlinhos Madrugada havia se criado no Morro de Villares. Ali aprendeu tudo que sabia de samba. E não era pouco. Depois de começar na bateria ainda menino, foi logo possuído pelo sonho de cantar pela escola. Não faltava a ensaios nem às feijoadas dominicais. Antes mesmo de engrossar a voz, já era visto pra cima e pra baixo nas vielas do morro, carregando seu rádio gravador. No estéreo de bom tamanho não tocava funk, música americana, essas coisas. Ali era só samba. Era sempre o primeiro a decorar o enredo das principais escolas. Mangueira, Portela, Salgueiro. Sabia todos. Assim, o menino Madrugada ficou na espreita. Municiado de todo o repertório imaginável, montou campana em todos os festejos até o dia que lhe jogaram o microfone do barracão nas mãos: “Vai aquecendo a bateria até a chegada do velho Clemêncio”, experiente puxador a quem sucederia mais cedo do que imaginava.
Soltou seu gogó de frangote, ainda sem a afinação que anos depois o consagraria. Na hora todos souberam que aquele balanço, aquele canto ritmado e aquele sorriso seriam o futuro da Acadêmicos do Império Novo. Três ou quatro carnavais depois, ele já era o número um na cantoria da escola.
...(segue)