top of page
fundo-a-madame-de-bengala.png

A MADAME DE BENGALA

capítulos iniciais

Capítulo 1
A viagem

 

     Final de janeiro de 2015. O ônibus lotado fazia zigue-zague na estrada lamacenta, arrancando gritos histéricos de alguns passageiros enquanto outros engoliam o medo. Era o último trecho dos quase 2 mil km do trajeto escolhido por Amadeu, que observava as paisagens correndo lá fora, indiferente à agitação dos tripulantes.
     Ao seu lado um senhor, depois de algumas tentativas frustradas, verbalizou suas intenções, aproveitando o olhar acidental do colega para o corredor. 
     — Aqui quando não é poeira, é lama e buraco demais! Pior fica quando o rio passa por cima da estrada e o povo fica sem saída. 
     E no mapa consta que é asfalto. Esses políticos vagabundos comem a verba e deixam o povo comendo poeira e lama.
     Sua iniciativa de diálogo morreu em um monólogo infrutífero.
     Incomodado, não segurou por muito tempo a curiosidade. 
     — Desculpe minha intromissão, vejo que o senhor não é daqui, então se precisar de ajuda pode me procurar no Bar do Caetano. O boteco é meu. 
     Amadeu virou-se. 
     — Onde encontro um quarto e refeições?
     — Na primeira parada tem uma pousada...
     — Quero simplicidade e preço justo.
     — Então procure Dona Nalva... na primeira rua à esquerda depois da segunda parada... ela vai tá na padaria ou na pensão...
     — Obrigado, Caetano!
     — Como sabe meu nome?
     A resposta foi o silêncio e o olhar perdido nas pastagens, cafezais e eucaliptos que ficavam para trás rapidamente. “Que sujeito mais esquisito”, murmurou.
Mochila nas costas, guarda-chuva na mão, mala de viagem grande, desceu na segunda parada e seguiu as orientações do informante. Adiante um transeunte apontou o local. Na esquina, uma fachada sobre duas portas de aço identificava a padaria Pão de Mel. Lá dentro, uma senhora ocupava o vão da porta entre os ambientes. Nos fundos, um balcão embranquecido servia de suporte para alguns equipamentos e cestas de pães.
     — O saco de trigo estourou e o ventilador espalhou por todo canto...
     — A senhora tem quarto para alugar?
     — Bem, eu estou com os quartos ocupados, mas...
     Ele girou e deu alguns passos em direção à porta, quando a voz da senhora roçou em seus ouvidos.
     — Calma, moço, por que tanta pressa, aqui você está 
no paraíso...
     — A senhora tem o quarto? 
     — É que eu...
     Ele tirou e colocou o chapéu repetidas vezes.
     — Posso desocupar um... — respondeu apressada e desarticulada. — O moço pode olhar primeiro... se gostar posso limpar...
     — Tem cama, armário, mesa, cadeira e banheiro?
     — Vou ajeitar para você.
     — Qual o valor? 
     — Dois terços do salário-mínimo.
     O visitante tirou o dinheiro da carteira, contou as notas e entregou na mão da senhora, sob o olhar atento dela. 
     — O senhor não quer dar uma olhada?
     — Preciso de poucas coisas, senhora. Que horas fica liberado?
     — Dentro de duas horas deixo tudo pronto. — Enfiou as notas no bolso de sua comprida saia.
     — Confere o dinheiro.
     — Confio no senhor.
     — Peço que conte.
     Diante do olhar firme de seu interlocutor, tirou o dinheiro e conferiu. 
     — Está certo. Aceita um café? Sirvo marmitex também, se o moço precisar.
     — Qual o valor do menor?
     — Minha comida é muito boa... está R$ 5,00 — apressou-se em responder ao sentir o olhar pesado do novo hóspede.
     — Enquanto isso vou conhecer um pouco da Vila.
     Andou pela empoçada rua Primus, passando pelo restaurante Carabel, distribuidora de Bebida Doce Vila e Bar do Caetano, onde lhe ofereceram um aperitivo. Negou, balançando a cabeça. Adiante, o Museu histórico de Vila Itasununga e no fundo à direita o imponente farol. Depois, os campos de futebol — areia 
e gramado.
     Mais alguns metros adiante, encontrou a praça Caboclo Berhart, com banhistas transitando e vendedores de comidas e acessórios em geral. Passeou pelo local, prendendo sua atenção em uma barraca de artesanatos e objetos bizarros.
     O homem alto, forte, de cabelos compridos e a barba russa alcançando o tórax surgiu da tenda para oferecer os produtos 
e serviços. 
     — Pode olhar à vontade, tem acessórios para todos os gostos, aceito encomendas, faço tatuagem.
Amadeu permaneceu imóvel, olhando os artigos. Depois 
seguiu seu caminho sem dizer uma palavra.
Tirou do bolso uma anotação, conferiu e seguiu para rua à esquerda. No segundo quarteirão, todo murado, caminhou pela calçada, parando em frente à Escola Estadual de Ensino Médio Caboclo Berhart. Deu alguns passos em direção ao portão, desistindo para pegar outra via.
Encontrou Dona Nalva sentada à frente da padaria, que o recebeu com um sorriso largo e balançou a chave com a mão direita. 
     — Está pronto! Vou te mostrar. — Com um andar arrastado e balançando o quadril, ela o conduziu, oferecendo seus serviços.
     — Faço faxina... quando precisar me avise e deixa a chave
     ... eu só tenho essa...
     — Eu mesmo faço a limpeza. Quero o marmitex para a janta.
     — A cozinha funciona das 5h às 7h da noite.
     — Pego às 17h30 na padaria.
     — Posso trazer aqui para o senhor.
     — Eu busco.
     — Este é o quarto. Deixei aberto para ventilar um pouco. Está com cheiro forte porque ficou muito tempo fechado. Qual o nome do senhor?
     Ele entrou e ela estacionou na frente da porta, pousando as mãos sobre o quadril.
     — Amadeu Afonso Moreira.
     — Veio a trabalho?
     — Sim.
     — Por quanto tempo?
     — Muito tempo.
     — De onde você vem?
     — De longe. — Fechou a porta, raspando no nariz dela.
     “Que sujeito petulante. Vontade de devolver o dinheiro dele e tomar a chave...É, esse dinheiro veio em boa hora... pagar a parcela do freezer.”
     Organizou suas roupas, calçados, acessórios e livros no armário. Colocou a mochila e o porta-retrato na mesa. Deitou-se e murmurou “macio”. No horário combinado pegou o marmitex e jantou no quarto.  Consumiu o tempo lendo até o sono chegar e foi dormir mais cedo.
     Acordou e foi caminhar na areia molhada, sentido o frescor do mar em seu rosto. Fez algumas paradas para alongamento e encerrou a atividade em menos de 90 minutos para um banho e o desjejum. Quando terminou o café, sob os olhares de Dona Nalva e sua ajudante, registravam-se 6h30 no relógio pendurado atrás do balcão.
     De calça jeans e camiseta, pegou a mochila e foi para a Escola Estadual de Ensino Médio. Na recepção pediu para falar com a diretora ou coordenadora pedagógica. O guarda interfonou e autorizou o estranho entrar.
     — Então você é o professor de Geografia e História, classificado em primeiro lugar nas duas disciplinas. — Diante do silêncio dele, ela continuou. — Parabéns e seja bem-vindo!
     — Obrigado!
     — As aulas iniciarão somente amanhã.
     — Sim. Eu vim para conhecer o ambiente, a equipe pedagógica e as orientações.
     — Eu vou te apresentar à coordenadora. Eu tenho que resolver uns problemas administrativos.
Amadeu conheceu boa parte dos profissionais, as normas de funcionamento, código de ética, o formato das avaliações e regras sobre o uso de equipamentos tecnológicos. Confirmou seu horário, pegou o plano de ensino e o calendário do ano letivo. No vespertino, 12 períodos de Geografia e à noite 20 períodos de História.
     No primeiro dia de aula, comunicou sobre sua forma de avaliação, conteúdo programático e disponibilidade do material utilizado. Postura que desenvolveu no decorrer da carreira iniciada aos 16 anos de idade no Recife, em Pernambuco.
     — O aluno deve sanar suas dúvidas em sala da aula. — Dava passos curtos pela sala, sem perder os alunos de vista, fazendo movimentos com as mãos. — Vocês podem interromper minha explicação sempre que precisarem. — Calou-se porque um aluno se movimentou na cadeira. — Pode perguntar — falou ele, mas o aluno respondeu que não era nada. — Ao término de cada unidade, teremos uma aula de fixação. Quem tiver mais domínio do conteúdo ajuda aqueles com dificuldades.
     — Professor, de onde você veio? —  A voz veio do fundão.
     — Minha trajetória geográfica não faz parte da grade curricular.
     — Caraca! Pegou pesado, hein — murmurou o outro colega.
     — Você pode passar seu telefone de contato, caso algum aluno precise de alguma orientação?
     — As dúvidas serão resolvidas durante a aula.
     — É que talvez... revisando a matéria em casa...
     — Se o aluno prestar atenção e tirar suas dúvidas na sala 
não precisará.
     — Na sua aula pode usar o celular?
     — Quais são as normas da escola?
     — É liberado o uso somente no intervalo — respondeu o garoto sentado na primeira cadeira.
     — Mas os alunos não respeitam.
     — Eu cumpro o regimento.
     — E se o aluno usar... você vai tomar o aparelho? — 
     O grave da voz vindo do canto esquerdo combinava com a estatura do garoto.
     O professor foi até o aluno e respondeu-lhe olhando firme:
     —Experimente e você terá a resposta. — Um silêncio rompante tomou conta da sala. — Toda primeira aula da semana vocês terão 15 minutos para compartilharem qualquer assunto, desde que não agridam as normas da escola. Nas demais, as discussões serão somente sobre o conteúdo aplicado.
     — Legal, professor! — aprovou uma aluna, apoiada por uns e vaiada por outros.
     — Isso vai virar uma bagunça — comentou um aluno.
     — O primeiro que zombar terá que discorrer sobre um dos assuntos abordados, escrevendo uma lauda com no mínimo 20 linhas.
     — Professor pega pesado — soprou alguém.
     — O aluno tem o professor que merece. Essa sala pode ser um local aprazível ou infernal, depende de nós. Se quiserem um ambiente agradável, terão.
     O primeiro dia deixou os alunos atordoados. Teve até quem ameaçou deixar a escola. A maioria não conseguiu digerir a postura do novo professor. Num clima de desconfiança, medo, insegurança e rigidez, veio a segunda, a terceira, assim por diante e os alunos foram se adaptando, seguindo os procedimentos estabelecidos com naturalidade.
     As aulas eram dinâmicas, com exposição do conteúdo, apresentação de vídeos, uso de material e atividades em grupos, com o aprendizado garantido. O professor Amadeu virou assunto nos grupinhos e nas reuniões de líderes. Suas qualidades eram enaltecidas na mesma proporção que sua esquisitice.
     Afastava quaisquer iniciativas de aproximação afetiva com os alunos e colegas de trabalho. Em sala de aula, oferecia o seu melhor para garantir a aprendizagem do aluno; nas reuniões, interagia amistosamente com os colegas, mas limitava-se aos temas curriculares. Protegia sua privacidade. “Ele é um bom profissional, mas socialmente é muito estranho”, comentou a coordenadora pedagógica com a diretora. “Alguns professores estão enciumados e querem um motivo para pedir a transferência dele.”

Capítulo 2
O sumiço do Barba-Russa

 

     Durante a semana Amadeu dedicava-se às aulas, estudos, pesquisas, preparação de textos e leitura. O final de semana era reservado para exploração ecológica. A caminhada — alternada com corrida — era diariamente em horários diferenciados entre 5h e 8h. A bicicleta era seu único veículo de transporte e bem utilizada para suas demandas de locomoção: trajeto da escola, padaria e supermercados, passeios pela vila e trilhas. Ao final do primeiro bimestre, já conhecia toda a geografia da cidade, ruas, praças e padrões sociais.
     No Bar do Caetano, as mesmas figuras noturnas ocupavam as mesas na calçada e no interior; na praça, os vendedores assíduos: 
a Mariquinha do cachorro-quente, o gringo do malabarismo, a índia Araci de artigos indígenas, o Jota das bebidas quentes e excêntricas; os que apareciam ocasionalmente: Barba-Russa e a Mônica da barraca de roupas. 
     Aos sábados a praça tornava-se um centro comercial. A feira começava a partir das 5h, com a comercialização de produtos da roça: queijo, ovos, milho verde, coco, cereais e verduras. Havia espaço par os artesãos com seus artigos: peças de crochê, amigurumi, laços de fitas e biscuit; os ambulantes de salgados — empadas, pastéis, batata fritas e doces, como pé-de-moleque, cocadas, bolos etc. E a fila grande para comer a pipoca customizada do Baiano.
     Às vezes Amadeu passava pela feira antes de seguir para a floresta como pesquisador botânico. Na mochila o necessário — provisões e ferramentas — para explorar a vegetação. Por onde passava atraía olhares, talvez por causa da reputação ou pelos trajes incomuns para o local: calça de brim caqui e camisa na mesma cor. Passava o dia pesquisando, coletando material e fotografando.
     Durante uma expedição na Reserva Tupiniquim, esbarrou com o Barba-Russa enfiado em um amontoado de vestimentas feito um cabide ambulante. Soltou seu sotaque aportuguesado: 
     — O que faz aqui, professor? Peixe fora d’água não sobrevive muito tempo.
     — Qual seu interesse? 
     — Só estou apanhando matéria-prima para meus produtos.
     — Por que investigou sobre mim?
     — Não sei do que você está falando. — Os rostos rentes, feições contraídas e olhos nivelados se consumiam. Um colar de concha do mar se enroscava nos fios longos e espessos de Barba-Russa.
     — Então, por que a insinuação?
     — Sua fama ultrapassou os muros da escola. — Envolveu um feixe de pelos compridos com a mão esquerda, descendo até o tórax repetidas vezes, deixando visível o pingente. Na outra mão guardava os materiais coletados.
     — A curiosidade matou o gato. — O professor alertou-o e tentou seguir em frente, deslocando-se para direita. O outro fez o mesmo movimento, colidindo-se frontalmente.
     — Não vamos criar casos... pode seguir... se precisar você me encontra na praça. Cuidado com os animais ferozes.
     — Guarde seus conselhos. — Alargou os passos, dando as costas para seu interlocutor, que deu o recado assim mesmo:
     — Aparece lá! Se eu não tiver o que precisaa, douuu umm jeeitoo. — Foi diminuindo a intensidade e o ritmo da fala até seu ouvinte desaparecer na trilha. Depois falou para si: “Ele deve saber o que está fazendo. Tenho outras urgências.”
     Antes do pôr do sol, Amadeu retornou, passando novamente pela praça bem movimentada nesse horário, não escapando dos olhares curiosos. Alguns ambulantes organizavam suas bancas. Barba-Russa não estava. O professor ajeitou a mochila nas costas e endireitou sua camisa cor de caqui, cheia de bolsos com abas e botões e seguiu pela avenida Pavuna.
     No seu quarto, limpou as pedras e objetos coletados. Posicionou o porta-retrato em cima da mesa e ligou o notebook.  Descarregou as fotos e repassou todas demoradamente. Tirou os resíduos do corpo com uma ducha fria. Organizou material de aula e dedicou um tempo à escrita.
     Recomeçou sua rotina semanal, alternando seus itinerários: pensão, caminhada, escola, floresta. Vida social restrita à sala de aula, planejamento escolar, reuniões pedagógicas. Na praça, comprou um colar de pedra ametista presa por um cordão encerado. “É presente?” A resposta foi um sim com a cabeça.
     Elevou o porta-retrato rente aos seus olhos e fitou-o por alguns segundos. Com o colar envolveu um canto da moldura. Levemente deslizou a mão sobre o rosto de uma menina. “Feliz aniversário!” Colocou-o de volta no lugar.
     Depois dessa aquisição Amadeu e o vendedor de artesanato passaram a trocar cumprimentos e breves diálogos em encontros ocasionais — na praça, nos arredores ou na floresta — durantes seus afazeres. O professor, como pesquisador da natureza, e o Barba-Russa, na coleta de matéria-prima.
Na sala de aula, os 15 minutos de interação serviam para Amadeu conhecer a dinâmica social da vila.  A vila sediava as etapas do Campeonato Nacional de Surf, a festa cultural em homenagem ao Caboclo Berhart e a comemoração do índio com banda nacional. Nessas datas Itasununga recebia turistas de diversos estados brasileiros, incluindo celebridades.
     Amadeu conduzia sua vida sem sofrer os efeitos desses eventos. Isolado no seu mundo, realizava suas atividades discretamente. Compartilhava os espaços sociais no ambiente de trabalho, respondendo e perguntando o necessário.
     Encerrada a aula de Geografia, retornou para a pensão. Num movimento habitual escorregou a mochila para um lado do ombro, pegou a chave e entrou. Colocou parte de suas coisas na cama e o relógio de pulso na mesa, quando sentiu falta do colar. Levantou o porta-retrato, descobrindo a bijuteria. Observou os materiais didáticos desalinhados sobre a mesa.
     Vistoriou janela, fechadura, armário e parou no meio do quarto com o olhar distante. Socava levemente a mão esquerda contra o próprio queixo em movimentos repetitivos. Esperou alguns minutos e foi para o chuveiro. Tinha outro turno de trabalho pela frente, não havia tempo para entender o que acontecera.
     No dia seguinte foi o primeiro cliente a entrar na loja de material de construção. Mostrando o miolo da fechadura, perguntou ao atendente se ele tinha igual. Pagou, pegou o objeto e saiu indiferente aos argumentos do atendente na tentativa de ampliar as vendas.
     Dias depois Dona Nalva interrompeu o fornecimento de marmitex, justificando problemas de saúde e indicou sua conhecida Elisa, que atendia na rua à esquerda da primeira parada de ônibus. O professor aceitou a indicação e sua próxima refeição foi no local sugerido.
     O humilde restaurante funcionava numa extensão da casa. Um espaço pequeno, organizado e asseado. Estrutura simples e poucos frequentadores.  Funcionava no sistema prato-feito.
     Dona Elisa era alegre, discreta e trabalhava sozinha. Conversava o necessário e não fazia perguntas. Amadeu gostou do ambiente, da comida e do atendimento, por isso optou por fazer as refeições no local.
     Passou a perceber o comportamento dos clientes. Um era diarista, de segunda a sexta; alguns somente em dias específicos; outros esporadicamente. Amadeu, a neta de Dona Elisa, Ana, 
e a amiguinha Carol almoçavam e jantavam todos os dias. O garoto Kauam, afilhado de Dona Elisa, era imprevisível. Durante os primeiros dias, Amadeu era um intruso. As crianças olhavam de longe para ele.
     — Vó, aquele homem é esquisito.
     — Não. Ele é só caladão, mas parece ser gente boa. Dona Nalva falou que ele é professor.
     — Coitados dos alunos.
     — Menina, fala assim não.
     Sem especulações, aos poucos foi conhecendo a família de Dona Elisa e os agregados: o esposo Zeferino, o filho caçula Rafael, de 17 anos, a filha Magda, o filho mais velho, Fabrício, o pai da neta e o atual genro. Mãe e neta moravam nos fundos. Félix, o cachorro do Kauam, quando não estava com ele, ficava nos arredores do restaurante, cativando o professor.
     Dona Elisa contou que o menino vivia pela rua e muitas vezes ficava sem se alimentar. O pai, surfista profissional, estava preso por traficar drogas e a mãe estava no mesmo caminho. 
     — Já tive vontade de trazer ele para morar aqui, mas 
     Zeferino e meu filho não aceitam. Então ajudo como posso. 
     O Cacau é um bom garoto e muito inteligente, precisa de amor e orientação.  A mãe exagera nos castigos e deixa muito solto. Quando está zangada, e é quase sempre, fala que o menino é um imprestável, que é um peso na vida dela... xinga ele de tudo quanto é nome feio...  Dá castigo.
     A lista do repertório de punições era grande. Dentre elas constavam as proibições de fazer o que ele mais gostava: surfar, soltar pipa e jogar bola. Quando escapava dos castigos, corria para a casa da madrinha, que o acolhia dando afeto, comida e conselhos.
     Ela incentivava o menino a estudar para conseguir um bom emprego no futuro; no entanto ele não se empolgava. Sua vontade era ser pipeiro e surfista. Quando tinha oportunidade corria a pegar ondas. Dona Elisa tinha medo e pedia para ele não ir sozinho surfar, por isso, quando Zeferino ou o filho estavam de folga, acompanhavam o garoto. Na maioria das vezes, Cacau só contava com a companhia de Félix.
     Amadeu simpatizou com o garoto e o cachorro Félix, tanto que numa certa manhã aceitou o convite do menino para empinar pipa, iniciando uma sequência de muitas outras. Cacau ensinou tudo sobre essa ciência: os diversos tipos — pipa, papagaio, raia — a técnica para confeccionar, os macetes dos pipeiros e os termos usados. Mas o aluno-professor ficou reprovado na maioria das lições.
     No futebol, Amadeu se sobressaiu tecnicamente, mas na parte física o garoto era mais ágil. No surf, o professor não se arriscou. O máximo que fez foi carregar a prancha para Cacau e assistir ao que ele sabia fazer nas águas. Em alguns momentos menino e onda viravam uma coisa só. Amadeu aplaudia e Félix abanava o rabo.
     Félix acompanhava Cacau em quase todas suas andanças: no surf, no futebol, soltar pipa e na escola. Enquanto estava na sala de aula, o cachorro o esperava deitado embaixo de uma árvore. Essa lealdade e companheirismo de certa forma confortavam Dona Elisa por representar proteção para Kauam na ausência de um adulto.
     Em seu itinerário, quando encontrava com o cachorro, Amadeu descia da bicicleta para brincar e afagar os pelos de Félix, que correspondia pulando e lambendo o professor. E depois cada um seguia seu rumo: o do professor era escola, pensão ou restaurante; o de Félix, perambular pela rua para outros encontros.
     Amadeu caminhava pela praia quando Félix interceptou-o, saltando com as patas sobre seu peito. Ele latia, rosnava e com a boca puxava o braço do professor, que se incomodou com a insistência do animal. “Félix, saia, saia! Vá pra lá! Você está grudento hoje. Vá embora, eu preciso caminhar.”
     Félix se afastava alguns metros e voltava, repetindo esse movimento até Amadeu mudar a trajetória para segui-lo. Quando se aproximava do cachorro, este corria mais. Se diminuísse os passos, ele mordia levemente os braços do professor e tentava arrastá-lo. Numa certa altura Félix avançou na água. Amadeu observava as ondas na mesma direção. Com os olhos aguçados, avistou uma prancha. Num ímpeto saiu correndo e entrou no mar. Pouco depois voltou com Cacau no colo desacordado.
Sob a pressão das mãos do professor em seu peito, Kauam jorrou jatos de água salgada, recuperando a consciência. “Não conte nada para a madrinha Elisa.”
     — Fique calmo.
     — Se minha mãe souber, ela me dá uma surra e me deixa de castigo... e eu nunca mais pego onda...  — Ofegava. — E aí adeus ao sonho de ser surfista. Por favor, professor, não conte nada para ela.
     — Não vou contar se você prometer que vai obedecer a 
sua madrinha.
     — Prometo.
     — Já esqueci o que aconteceu aqui. Vá para casa — aconselhou Amadeu.
     — Meus colegas caçoam de mim porque sou amigo de um estranho esquisito... Você é muito legal professor. — Colocou a prancha embaixo do braço e saiu a galope, enquanto Félix, com a língua de fora, olhava para Amadeu.
     — Vá! Seu dono precisa de você. — O cachorro latiu e correu atrás de Kauam.
     Na hora do almoço, quando chegou no restaurante, o professor não viu Félix. Entrou e esperou seu prato. Perguntou pelo menino e Dona Elisa explicou que ele estava proibido de sair de casa.
     — Molhado e com os olhos vermelhos não conseguiu enganar a mãe, que colocou ele de castigo por sair sem falar nada.
     — E o cachorro?
     — Com ele. Até parece que sofre junto. Tenho muita pena do meu afilhado.
     — É um bom menino. Muito ativo.
     — Se Zeferino concordasse a gente podia adotar ele. Mas da última vez que toquei nesse assunto meu marido ficou dias sem falar comigo.
     — Eu preciso ir. Está na minha hora.
     — Desculpe professor. Eu me empolguei com o assunto.
     — Kauam é garoto que tem sonhos. As pessoas quando param de sonhar deixam de viver.
     Dona Elisa atravessou três quarteirões para levar um marmitex e as guloseimas que preparou para o Kauam. As palavras do professor martelavam em sua cabeça. Convenceu a mãe para liberar o menino do castigo.
     — O professor foi almoçar?
     — E já foi embora.
     — Aquele cara é muito esquisitão?
     — O pessoal pode achar ele estranho... ele é só reservado, mas é boa pessoa boa.
     — Como você pode ter certeza?
     — A vida nos ensina mais do que a escola.
     — Por isso que não gosto muito de estudar. — Kauam surgiu na porta do pequeno cômodo que funcionava como sala e cozinha. O outro era o quarto de Cacau e sua mãe. Os espaços eram separados por um guarda-roupa, sendo que na parte menor mal cabia a cama do filho.
     — Espertinho, hein...
     — Já de volta pro seu canto. — Ameaçou dar-lhe umas palmadas, obrigando-o a voltar à solitária doméstica.
     Rita ouviu os conselhos da comadre e suspendeu a punição. Liberado do castigo, Kauam teve uma semana que ele chamou de segundo Natal. Foi pescar com o padrinho Zeferino e levou a prancha. Rafael, o filho caçula de Elisa, aproveitou a folga e passou a manhã na praia com Cacau. No dia seguinte foi de novo, desta vez com o vizinho de Dona Elisa e os filhos. 
     Os efeitos das palavras de Dona Elisa ressoaram na consciência de Rita durante os próximos dias. Pela primeira vez foi com o filho ver o nascer do sol, sem entender os motivos desse pedido estranho. Quando chegaram na praia, o céu estava turvo. Era final de outono e logo o sol daria sinal, brilhando sobre as águas.
     — Kauam, o sol nasce nesta direção.  — Apontou para o leste. — Por que está olhando para o outro lado?
     — Quero ver se tem algum colega caminhando.
     — Você vai aonde, Cacau?
     — Professor, eu vim ver o nascer do sol com minha mãe.
     — Legal. Aproveite bem.
     — Eu contei que a onda me pegou, mas escondi um pouco da verdade para ela não ficar mais furiosa. Ela não sabe que você me salvou.
     — O importante é que serviu de lição.
     — Ah, minha mãe me deixou almoçar todos os dias na madrinha. Te vejo no almoço.
     — O sol está nascendo.
     — Vem, Cacau, olha que maneiro, que colorido bonito.
     — Lindo mesmo, mãe!
     — Você estava falando com quem?
     — O professor.
     — Esse professor não deve ser boa companhia... é muito misterioso.
     — Ele é meu amigo.
     — Mas não quero ver você andando com ele.
     — Olha mãe, as cores do mar.
     Outras experiências agradáveis vieram e os próximos dias foram melhores para Kauam. Sua mãe estava mais prestativa e amorosa. Ele almoçava todos os dias na madrinha. Mas de repente os ventos trouxeram a realidade de volta, com toda enciclopédia de xingamentos e insultos. E o plebeu retornou a sua rotina de tormento. 
     Nas últimas semana do primeiro semestre, o professor 
concentrou-se nas atividades avaliativas e provas. Durante o recesso dedicou-se à leitura, produção de textos e intensificou suas pesquisas botânicas, passando mais tempo distante da sociedade.
     Sua vida social continuava restrita aos mesmos ambientes. Nesse período, poucas pessoas conseguiram entrar em seu casulo e criar um vínculo afetivo. Dentre elas Kauam, com quem revivia a pureza da infância nas travessuras; Barba-Russa, com diálogos rápidos e ocasionais; Dona Elisa, com suas histórias fabulosas.
     Sua austeridade e competência na sala de aula impuseram respeito e admiração. Era alvo de críticas e de elogios, afirmando-se como professor exemplar pela conduta, didática, domínio do conhecimento e oratória. Seu prestígio tornou-se público.
     Esse reconhecimento facilitou os trabalhos do semestre seguinte. Sua didática já estava pacificada na sala de aula e não era mais motivo de questionamentos, comentários e especulações, porém continuava misterioso. Uma incógnita para muitos.
     O segundo semestre transcorreu com regularidade, chegando ao final do ano num piscar de olhos e, com ele, a correria para dar conta das avaliações: preparar, aplicar, corrigir e lançar as notas. Os alunos eufóricos pela chegada do recesso e agitados por causa das provas. Tudo correu bem, exceto para uns poucos que ficaram de recuperação.
     Os alunos concludentes, com apoio da equipe pedagógica, organizaram uma despedida com solenidade e entrega de diplomas. O recesso escolar foi recebido com alegria por alunos e professores.      Cada um com suas motivações e expectativas: pacotes turísticos comprados, temporada na casa de parentes, cursos de aperfeiçoamento, mais tempo para a família etc. Para Amadeu era simplesmente o encerramento de um ano letivo, seu primeiro na Escola de Vila Itasununga.
     Nas últimas semanas de dezembro, não encontrou Barba-Russa. Perguntou aos ambulantes, mas não teve notícias, por isso foi em seu recanto, um casebre improvisado nos fundos de uma casa abandonada. 
     A quadra era afastada da civilização, sem iluminação na rua. O único imóvel daquele quarteirão era uma casa em ruínas. 
     O casebre ficava atrás da casa velha, cercado de mato e arbustos. Usou um galho para afastar o capim alto que atravessava o caminho. Na frente, o telhado cobria uma pequena área com um tanque de lavar roupa, cheio de rachaduras. 
     Uma corda espichada segurava algumas peças de roupas ressequidas. Sentiu nos dedos a textura do tecido enrijecida pelo calor de dias. Clareou o interior com a lanterna, pela fresta da janela, enxergando um armário, cama, mesa de cabeceira e objetos de artesanato. Do outro lado, pela báscula, viu um fogão e geladeira enferrujados em várias partes. Havia também uma mesa pequena de madeira, sobre a qual pendia uma lâmpada presa ao teto por um fio de energia.
     Incluiu a rua da casa velha em seu itinerário, mas continuou sem notícia do Barba-Russa. No sábado saiu para sua expedição, onde passou horas explorando detalhes do ambiente selvagem e suas espécies, algumas medicinais. A região tinha uma flora e fauna diversificada. Corriam na vila boatos da existência de animais ferozes. 
     Quase na saída da trilha, achou uma concha de ostra. Era um artesanato com o nome Nana & Nino. Lembrou do colar no pescoço do Barba-Russa. “Acho que eu deveria chamar a polícia. Mas vou alegar o quê? É melhor esquecer isso.”

Capítulo 3
A madame e o vaqueiro

 

     Janeiro de 2016. Após mais de dez horas de asfalto, deparou-se com um trecho de estrada de chão. Parou o automóvel. Tomou água. Pegou o celular e não gostou do que estava no visor. O desenho minúsculo das barras na parte superior do aparelho estava vazio e o da bateria, vermelho. Conferiu as horas no relógio em seu braço. Aproximava-se das 16h. Procurou o carregador no porta-luvas, no banco e outros espaços. “Será que coloquei na mala ou deixei em casa? Deixa pra lá.”
     No céu nuvens carregadas anunciavam mais chuva. Comprovou no mapa que estava na rota certa. Só não entendia por que constava rodovia asfaltada. Por segurança pediu informações a um motoqueiro. Ele confirmou que ela estava na estrada certa e tinha mais de 60 km de muita lama pela frente.
     — Fique tranquila que a estrada é baixa, não tem ribanceira, o carro dança um pouco, mas é só manter a calma.
     — Obrigada. Você é muito gentil. — Fez um gesto para ele esperar. — A estrada toda é sem cobertura?
     — Desculpe, eu não entendi.
     — Sinal de celular.
     — Poucos trechos pegam sinal. Você tem que ficar caçando com o aparelho ligado.
     — É melhor eu prestar atenção só na estrada. — Sorriu.
     O motoqueiro desapareceu na curva enquanto Gisele experimentava as primeiras emoções causadas pela estrada lamacenta. Lembrou dos muitos encontros de jipeiros que ela e o namorado deixaram de participar. Suas lembranças mergulharam mais fundo na memória e voltaram à infância vivida na fazenda de seu avô. Ela e as primas brincavam no barro, chegando em casa cobertas de lama de cima a baixo, para desespero da vovó Mariquinha. 
     Um caminhão passou jogando lama para todos os lados, despertando a moça. Fez o sinal da cruz e começou a rezar. Encarou a estrada, apertando o volante com as duas mãos. A cada deslize do carro, ela soltava um grito. Voltou a chover. Os veículos que trafegavam, e as rodas dianteiras do seu próprio carro, jogavam lama no para-brisa, obrigando o limpador a trabalhar.
     Punhos cerrados, olhos arregalados e corpo esticado para a frente, monitorava o trajeto da estrada.      Com frequência acionava o jato de água para remover a sujeira do vidro. Depois de tantas vezes acionado, já não saía água. Apertou o dispositivo até perceber que o recipiente secara. A frente do automóvel estava coberta de barro. Não enxergava nada adiante. Pediu a Deus para o celular funcionar. Bateria com 5% de carga. 
     Nenhum sinal.
     — Estou perdida, meu Deus!
     Abriu a porta e desistiu diante do lamaçal. Socou o volante, fechou os olhos, enfiou o rosto nas mãos. Depois pressionou-as sobre a boca e os olhos fixos no painel do carro.
     “Por que aceitei essa proposta? Agora estou aqui. Nem retornar eu consigo e não vai demorar a escurecer. Meu Deus, estou ferrada. Será que vale a pena viver essa adrenalina?”
     Abaixou o vidro para pedir socorro. O primeiro automóvel lançou jatos de lama pela janela, respingando na sua blusa e no interior do carro. Rapidamente suspendeu e recostou a nuca no suporte do banco. A temperatura estava amena. Desligou o motor para esperar por uma providência divina.      Sentiu sede. Sua garrafa estava vazia. A bexiga estava cheia e pressionava o ventre. Ouviu pisadas na lama, seguidas de um toque na janela e uma voz grave abafada. Ligou o carro, ergueu a cabeça pela janela e olhou para o homem montado num animal.
     — Precisa de ajuda, madame?
     — Muito. Já estou em desespero.
     — O que aconteceu, senhora?
     — Fiquei sem água
     — Ah, isso é fácil.
     Ele olhou para a motorista e a frente do veículo. Enfiou o calcanhar na anca da égua e frouxou as rédeas, distanciando-se sob o olhar de Gisele, que só compreendeu a atitude dele quando o avistou de volta com um bujão plástico na mão. Ele apeou, lavou o vidro e pediu para ela abrir o capô.
     — Guarde o restante e, enquanto estiver por essas bandas, carregue sempre cheio.
     — Obrigada, caubói. Estava morrendo de medo de ter que passar a noite na estrada.
     — E aqui é bem perigoso à noite.
     — Gostaria de pagar pelos seus serviços.
     — A dona me ofende, assim.
     — Não foi minha intenção. Gosto de recompensar os préstimos recebidos.
     — Não sou socorrista de estrada, madame.
     — Desculpe mais uma vez. Não precisa se aborrecer, só estou querendo retribuir o favor. Me chamo Gisele Silva Lopez... para os amigos somente Leli. E qual o seu nome?
     — Manoel Antônio Siqueira, mas pode me chamar de Noé.
     — Você mora perto?
     — Sim. — A égua pisoteava a lama e ele a controlava na rédea. — Dona, se você não quiser pegar noite na estrada, é melhor ir.
     — Por que está apressado?
     — Tenho muito o que fazer, madame...
     — Vou me estabelecer numa casa perto da padaria de Dona Nalva, conhece?
     — Conheço tudo em Vila Itasununga.
     — Está convidado para um café. Pode me procurar a qualquer hora que será uma alegria.
     Os olhos castanhos do vaqueiro encontraram o azul dos olhos de Gisele. Ele desviou, deu um tapa na traseira do animal e saiu galopando. Ela acelerou na tentativa de segui-lo. O carro dançou, obrigando-a desistir.
     As nuvens carregadas que encobriam o céu anteciparam a noite. Logo avistou as luzes da Vila Itasununga e, sem auxílio do celular, descarregado, pediu informações. Soube que estava duas ruas antes do seu destino. Seguiu pela rua Primus e dobrou à direita, na esquina da pensão da Dona Nalva.      Parou em frente à casa com muro de vidro e, apoiada em sua bengala, tocou a campainha. Minutos depois uma mulher com uniforme branco apareceu no portão.
     — Olá! Sou Gisele Silva Lopez e você deve ser a enfermeira Zulmira?
     — Sim. Pediram para eu chegar cedo...
     — Atrasei na viagem.
     — Vou ajudar você com as malas. Não é bom que faça muito esforço.
     — Obrigada. Fiz paradas durante o trajeto e tive um pequeno incidente, que se não fosse um vaqueiro, não sei o que iria acontecer... — Descansou a respiração. — Não esperava encontrar estrada de chão ... muita lama... faltou água no reservatório e eu não enxergava nada.
     — Eu passei por isso... acredito que a maioria dos visitantes também.  Aqui chove muito, mas o pior é quando alaga a estrada...
     — Como assim?
     — Vamos entrar e organizar suas coisas. Teremos muito tempo para conversarmos. Você precisa descansar... viagens longas não fazem bem para sua saúde.
     — Eu quis trazer meu carro...
     — Eu também não gosto de dirigir outros carros.
     — Quero uma boa ducha e um sono reparador. — Atravessaram o espaço de entrada e alcançaram a sala. — A casa está organizada e bem arrumada....
     — Contratei uma pessoa para faxinar duas vezes por semana... ela veio ontem e fez tudo.
     — Obrigada. Átila não exagerou ao credenciar você. Já gostei.
     — Sou dedicada ao que faço, principalmente na minha área.
     — Átila falou que você tem experiência administrativa também?
     — Tenho curso de Administração e Enfermagem.
     — Há quanto tempo mora na região?
     — Quase três anos... sou mineira como você. Só não sou cruzeirense.
     — Átila é danado, falou mais do que devia...
     — Exigência minha, gosto de conhecer as pessoas com quem trabalho: seus gostos, manias, comportamentos e caráter... 
     — Gosto disso... vamos nos dar bem, mesmo você sendo atleticana...
     — Sou flamenguista. Herança do meu pai, que é carioca.
     — Bem melhor.
     No quarto, colocou a mala no chão, próxima do armário, jogou sua bolsa sobre a cama, tirou o casaco e estirou-se para sentir o contato e o cheiro do lençol.
     — Vou aferir sua pressão.
     — Já?
     — São os procedimentos.
     — Ainda não me acostumei.
     — Os resultados dependem de seu comprometimento.
     — Sou muito disciplinada.
     — Confiança e fé ajudam na recuperação de pacientes. — Prendeu o braço da moça com a pulseira elástica do aparelho e verificou os batimentos.
     — Com esforço e a vontade de Deus, vou alcançar essa Graça.
     — Pressão normal.
     — Tem se mantido assim desde a última crise.
     — Quer ajuda para desfazer a mala?
     — Se eu precisar te chamo.
     — Está com fome? Quer um lanche?
     — Prefiro jantar.
     — A cozinheira só começa amanhã... Vou pedir.
     — Prefiro sair para me socializar.
     — Que bom. A vila é pequena, mas com boas opções noturnas. E muitos eventos que acontecem durante o ano, que atraem personalidades importantes.
     — Como uma boa mineira, quero ir à praia... quero ver o sol nascer.
     — É um espetáculo.
     — Vou apressar para jantarmos.
     Foram recebidas pela proprietária do restaurante Carabell, que as encaminhou para uma mesa, designando um garçom para servi-las. “Nossa equipe é muito boa, mas esse rapaz tem um atendimento diferenciado. Fiquem à vontade!” A receptividade e a qualidade do atendimento, especialmente as opções do serviço de bar, foram os motivos para que elas deixassem o local quase à meia-noite.
Isso não atrapalhou os planos traçados e, antes do sol aparecer, as duas chegaram na praia. Na junção água e céu, o colorido tingindo a imensidão do mar impressionava Gisele. “Que fenômeno maravilhoso! Somente uma obra divina para ter essa grandeza.”
     Os dias seguintes foram dedicados à caminhada e passeios pela vila. Conheceu a praça, o projeto      Tartura, o Museu Cultural, a Academia, o supermercado e a Loja de Açaí. No sábado visitaram a feira de produtos agrícolas. 
     — Helena pediu para comprar ovos e verduras.
     — Vamos visitar as barracas, talvez a gente encontre um queijo bem gostoso.
     — Na Arca do Noé, costuma ter.
     Havia muita diversidade de produtos de origem vegetal e animal, de pequenos agricultores da redondeza e de alguns de municípios vizinhos. A Arca do Noé era customizada, a única com o nome estampado em uma faixa, um cartaz com os preços e uma estrutura de lona que cobria os produtos expostos em bancas de madeira.
     Uma jovem exuberante, alta, de curvas bem delineadas e lábios grossos sob o batom vermelho, atendia no caixa enquanto o rapaz de pele mais branca, com aparência de alguns anos mais velho, organizava as mercadorias, ajudava pesar, embalar e cuidava da limpeza.
     — Tem queijo?
     — Vendeu tudo. — Desviou o olhar da banca para a cliente.
     — Madame! — Desceu o olhar sobre a bengala, pensando no quanto a mulher ficava ainda mais charmosa. 
     — Vaqueiro!
     — Vocês se conhecem de onde? — perguntou Zulmira.
     — Este é meu anjo da guarda. — Os olhos se encontraram. Silêncio. — Digo, o vaqueiro que me ajudou a sair da lama.
     — Se você quiser encomendar, eu já deixo reservado para a senhora pegar no próximo sábado — interferiu a moça do caixa.
     — Pode ser – concordou Zulmira.
     — Podemos buscar, Zulmira, assim vou conhecer mais um pouco da Vila — sugeriu Gisele animada.
     — Mas talvez ele tenha que produzir ainda — lembrou Zulmira.
     — Não trouxemos todo o queijo —respondeu a moça enquanto pesava a mercadoria de outro cliente. — Eu sou Luiza.
     — Prazer. Sou Leli e essa é minha amiga Zulmira. Podemos ir buscar.
     — É bom que daí vocês conhecem a fazenda e tomam um café. — Sorriu. — Vou explicar como vocês fazem para chegar lá... Atende aqui, Noé, que estou ocupada. Pegou um pedaço de papel de embrulho e desenhou o mapa de localização.
     — É fácil para chegar até lá... vocês vão gostar muito ... é roça, mas muito gostoso.
     — Podemos ir lá amanhã — disse Gisele.
     — Combinado. — Reassumiu sua função para Noé continuar com as tarefas dele, enquanto as duas amigas separavam os itens que precisavam. 
     — A moça é bonita, hein? — Os lábios de Luiza roçaram no ouvido de Noé.
Pegaram as sacolas e seguiram em direção ao carro. Quando estavam distantes, Zulmira soltou a língua.
     — Você viu como o vaqueiro te olhava?
     — Eu vi o ciúme da mulher.
     — Ela foi bem atenciosa, Leli! Não acho que foi ciúme.
     — Será que eles são casados, Zulmira?
     — Não vi aliança no dedo dele.
     — Amanhã vamos saber.
     — Você tem muita disposição para quem está com a saúde debilitada. — Riram.
     — Fazer amigos e ter uma vida social dinâmica são recomendações do médico...
     — Esperta, hein garota. Já ouvi dizer que vaqueiro tem uma pegada muito forte... Isso pode não fazer bem... Ele pode literalmente deixar você sem ar. — As duas gargalharam.
     — Você é minha enfermeira ou uma bruxa malvada?
     — Prezo pela sua saúde plena.
     — Não deve ser ruim morrer de uma pegada forte. — Riu.
     — Este trabalho está se revelando como o melhor dos últimos tempos.
     — Parecemos duas amigas em férias numa vila de pescadores movimentada por turistas.
     A mesa do café da tarde tinha queijo de Minas, bolo feito pelas mãos de Helena, pão francês e cavacos da Dona Nalva, leite e café.
     — Helena, você está aprovada como uma excelente cozinheira...
     — Também concordo.
     — Obrigada, Zulmira, e obrigada, madame! Bondade da parte de vocês.
     — Por que estão me chamando de madame? Não me chame assim, basta o vaqueiro. Esse termo me deixa distante das pessoas, e o que mais quero é me aproximar, interagir. Eu gosto de gente.
     — Você é elegante e se veste muito bem, é simpática e educada.
     — Helena é uma ótima observadora, viu Leli.
     — Sim. Vejo o quanto ela é atenta e cuidadosa..., mas me chame de Leli.
     — Está bem, Dona Gisele.
     — Somente Leli.
     Ajustados os tratamentos cada uma assumiu seus afazeres. Helena cuidou das atividades domésticas e Zulmira dos monitoramentos clínicos de Leli, que logo depois recolheu-se em seu quarto, trancou a porta e passou horas em frente ao notebook, lendo e respondendo mensagens e áudios. Enquanto isso Zulmira saiu para acompanhar a movimentação da vila.
     Gisele abriu o fundo falso da sua mala de viagem e retirou uma pasta cheia de papéis. Foi repassando lentamente cada documento, prendendo a atenção em alguns. “Acho que eu não estava em meu juízo perfeito quando aceitei o pedido de Átila!” Ainda sentada em frente à tela do seu notebook, colocou os documentos em seu colo e pegou a bengala encostada no móvel.  Esfregou a mão esquerda suavemente em movimentos lineares de uma extremidade a outra.

Gostou e deseja continuar a leitura?
bottom of page