
A CASA NO FIM DA RUA
capítulos iniciais
Prelúdio: Alguns anos atrás
A chuva de meteoritos já havia sido divulgada pela maior agência espacial do mundo, mas apesar da previsão da queda de corpos celestes em países dos hemisférios sul e norte simultaneamente, a imprensa não pareceu muito interessada em noticiar o fenômeno, o que particularmente agradou aos irmãos.
Eles estudavam juntos materiais extraterrestres há bastante tempo. Desenvolviam pesquisas para uma divisão governamental sobre a utilização dos metais encontrados em qualquer coisa que invadisse a Terra e sobrevivesse ao atrito com a atmosfera.
Tinham para si que se os portais de notícia e as redes de TV ficassem fora disso, tanto melhor, mais fácil seria o trabalho longe dos curiosos e das incansáveis perguntas dos repórteres.
De frente a um mapa-múndi, que ocupava toda uma parede do laboratório, ambos rabiscavam anotações em seus cadernos e faziam cálculos nos computadores à disposição, trocando informações a todo instante sobre a maior probabilidade de onde haveria contato dos meteoritos com o solo.
- Estamos com sorte – disse um deles – se nada mudar, o norte do país será a região mais atingida.
- Parece que agora em definitivo. Não houve alterações na trajetória nas últimas 24 horas. As equipes de lá estão sob comando de quem? – quis saber o outro.
- Yuri – respondeu, depois de consultar uma pasta.
- Melhor você ir substituí-lo, precisamos de alguém experiente para esse tipo de situação.
- Concordo. Você ficará aqui ou irá comigo?
A resposta não veio imediatamente. O homem ajustou os óculos ao nariz e traçou um risco em forma de parábola com uma caneta sobre a parte de baixo do mapa. Afastou-se um pouco e segurou o queixo com uma das mãos. Balbuciou algo, fez ainda alguns movimentos com o dedo no ar e olhou para o irmão:
- Eu vou para a América do Sul.
- Tem certeza de que cairá algo lá?
- Absoluta ainda não, mas estou disposto a arriscar.
O irmão balançou a cabeça concordando.
- Vai esperar o nascimento de sua neta, ao menos?
- Sim, não perderia isso por nada.
Ficaram ali ainda mais um momento, olhando para o gigantesco mapa, sem saber que, em poucos anos, o trabalho colaborativo e a relação fraterna entre os dois seriam transformados em uma disputa mortal.
Capítulo 1: Os amigos
- Eu já disse, moleque, essa rua é nossa. Se vai passar por aqui tem que pagar pedágio.
O menino tinha cara de mais velho e as penugens acima da boca e na volta do queixo ajudavam a disfarçar para cima os seus quatorze anos. Não era exatamente um brutamontes, mas era bem mais forte do que Guilherme, além, é claro, de ser vários centímetros mais alto.
- Não vi nenhuma placa avisando. – A provocação era ousada, mas ajudava a disfarçar o nervosismo e ganhar alguns segundos para pensar em algo.
À frente, com os braços cruzados sobre o peito, π. Seu nome era Pierre, mas não gostava, achava que o símbolo matemático dava um ar de mistério. Também era mais curto pra pichar. À direita e à esquerda, completando a jovem gangue, Mauro, um garoto que repetiu o quinto ano duas vezes; e Lucas, que sempre usava um lenço amarrado na cabeça para disfarçar o tamanho das orelhas. Os capangas não metiam medo, já π era uma ameaça à integridade física de Guilherme.
- Não precisa placa nenhuma, não viu meu símbolo pichado na entrada da quadra?
- Imaginei que era o início de algum exercício de geometria.
- Cala essa boca, quatro olho!
π tinha sérios problemas com o uso do plural, além disso, adorava essas frases prontas, toda vez que xingava recorria a um repertório de não mais do que dez expressões e “cala essa boca” certamente era a sua preferida.
- Tá bom, quanto é?
- Pra ti, quinze. Cinco pra cada. Pro refri.
- Não tenho dinheiro, pessoal, sinto muito.
- O que tem na mochila, além dos cadernos? – perguntou Lucas, contribuindo para a extorsão.
- Só as coisas do colégio.
- Deixa eu ver.
O garoto começou a espalhar o material de Guilherme pelo chão. Cadernos, estojo, régua, compasso, o pote vazio das bolachas, alguns gibis.
- E isso aqui? – indagou π, juntando as três edições mais recentes dos Vingadores.
- Ah, isso não vale nada pra vocês, caras, são da minha coleção.
- Não sei por que alguém perde tempo lendo, se tem os filmes – desdenhou Mauro.
- Eu poderia te dar uma centena de motivos, Mauro, mas você não entenderia – disse Guilherme, desanimado.
- “Eu poderia… não entenderia” – π imitou com uma voz esganiçada. – Quem da tua idade fala assim, ô nerd? Passa pra cá esses gibis. Mas vou ser legal contigo dando uma dica: se quiser de volta já sabe: tamo indo vender eles no sebo do Silveira.
- Ah, obrigado pela consideração. – Guilherme quase não conseguiu segurar as lágrimas. Nem era tanto pelos gibis, mas por não ter imaginado nada para livrá-lo daquela situação.
- Da próxima vez traz dinheiro, senão a gente vai tomar tua bike também – avisou Mauro.
- Fica frio aí, garoto.
O sorriso voltou de orelha a orelha no rosto de Guilherme ao escutar aquela voz.
- Não te mete nisso, Dão – alertou π.
- O carinha de óculos aí é meu amigo. Vocês não vão tomar as coisas dele.
- Vamos ver, então. Mauro, Lucas, mostrem pra esse trouxa o que acontece com quem se mete com a gente.
Os dois se olharam em dúvida. Dão era muito maior do que todos os três e infinitamente mais forte. Ninguém no bairro sabia de um garoto que tivesse entrado em uma briga com ele e tivesse durado mais do que alguns segundos.
- Tem certeza de que vocês querem encarar?
π ainda deu um passo à frente, mas repensou. Tinha uma reputação que não gostaria de perder. Não por três gibis que o Silveira pagaria uma mixaria. Virou-se para Guilherme e jogou as três edições de Os Vingadores no chão, junto ao resto do material retirado da mochila.
- A gente ainda vai ter nosso momento, Dão. Cê não perde por esperar.
- Junta mais uns três e talvez vocês durem um minuto, π. Agora sumam daqui.
- A gente ainda te pega, quatro olho. Teu cãozinho nem sempre vai tá por perto. Vamos lá, galera. Ainda tem gente na frente do colégio. Devem ter algum dinheiro e não essas porcarias de gibis.
Guilherme largou a bicicleta e começou a juntar suas coisas, lamentando o estrago feito em umas das capas das HQs.
- Valeu aí, Dão. Mais uma vez você me salvou.
Dão pegou uma das revistas e ficou observando a capa.
- Aqueles babacas! Ei, eu não li essa daqui ainda.
- Eu sei, vou te emprestar quando terminar o arco do Thanos. Escuta, posso te convidar pra almoçar? Pra agradecer.
- Comida de casa ou de restaurante?
- De casa. Da mãe.
- Legal. Depois precisamos dar uma olhada numa coisa. Tem um caminhão encostando na casa do velho Vladimir, acho que tá rolando uma mudança.
- Sério? – A animação tomou conta de Guilherme. – Vamos agora lá ver.
- Negativo. Prometeu almoço de mãe, agora paga.
- Tá bem. Vamos nessa.
Capítulo 2: A casa
A casa do velho Vladimir ficava bem no final da rua.
Destoava de todas as outras construções por ser de madeira. Era mal cuidada e o mato havia tomado conta de toda a extensão do terreno. Não recebia nenhum tipo de reforma há pelo menos dois anos, tempo em que não contava também com nenhum morador. O velho Vladimir tinha desaparecido de repente e o chalé estava fechado desde então. Os mais novos mal lembravam do antigo vizinho, mas ouviam que ele era um russo esquisitão, sempre quieto, sempre sozinho.
- Caramba, você tinha razão! – Guilherme parou a bicicleta e colocou a mão no ombro de Dão, observando o entra e sai na residência.
- Quem será que vai morar nesse barraco? Com tanta casa vazia na rua, por que logo essa?
- Vai ver o velho Vlad voltou.
- Que nada, esse velho morreu de tanto beber e enterraram ele como um indigente.
- Que é isso, Dão? Só porque ele era meio doido, não quer dizer que fosse bêbado.
- Tá bem, Gui. Até parece que você não sabe que todo russo é bebum. Tomam vodca desde a mamadeira. Não lembra daquele filme com o careca fortão?
Guilherme não segurou o riso. Seu melhor amigo era um ótimo sujeito, topava todas as aventuras e lhe salvava de muitas encrencas, mas não era, necessariamente, um garoto esperto, acreditava facilmente em tudo que via na TV ou no cinema. Por várias vezes Gui tentou ampliar os horizontes de Dão, conseguiu que ele lesse alguns quadrinhos, mais nada.
- Olha lá, devem ser os novos moradores - Dão apontou para um casal que apareceu na varanda.
Os dois eram muito altos e pálidos, se protegiam da claridade do sol levando a mão sobre os olhos.
- Vamos chegar mais perto? – perguntou Guilherme, já ajustando o pedal da bicicleta para a partida.
- Sei não, Gui. Acho melhor a gente ficar observando de longe, vai que nos chamem pra ajudar. Eu não tô a fim de fazer força, ainda mais depois de todo aquele rango.
- Confia em mim, a gente só vai pra um ponto melhor.
Aproximaram-se uns cinquenta metros e escoraram as bicicletas no poste de luz. Estavam num local privilegiado agora, podiam, inclusive, observar alguns detalhes da mudança que chegava.
- Quanta caixa, Dão!
- Aposto que a maioria é pesada. Tô dizendo, melhor a gente não dar mole, vão acabar nos botando no serviço.
- Quem sabe a gente não se oferece e aproveita pra conhecer os novos vizinhos?
- Ah, tô fora dessa, Gui. Vai você, eu fico aqui cuidando das bicicletas.
Guilherme estava considerando a proposta quando uma menina apareceu junto ao casal na varanda da casa. Trazia em suas mãos garrafas de água, prontamente oferecidas aos dois. O homem tomou um gole e disse alguma coisa que fez com que a garota baixasse a cabeça. A mulher também disse algo e entrou, logo seguida por ele. A menina observou o movimento a sua volta, mexeu em duas ou três caixas que aguardavam carregamento e depois avistou, mais ao longe, dois meninos olhando em direção à casa.
- Ela nos viu, Dão.
- Caraca! E agora?
Guilherme ergueu o braço em um aceno.
Ela devolveu o cumprimento.